Segundo os dados oficiais, na data em que este editorial estava sendo redigido (28/04) mais de 5 mil pessoas haviam morrido em decorrência da Covid-19 (doença causada pelo novo coronavírus) no Brasil, com 474 mortes registradas em 24 horas. Das 5.017 mortes reconhecidas oficialmente, mais de 2 mil ocorreram no estado de São Paulo.
Questionado por jornalistas sobre o fato de o Brasil ter ultrapassado a China em número de mortos pela Covid-19, Bolsonaro retrucou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Um pouco mais à frente, completou: “É o que eu digo pra vocês: o vírus vai atingir 70% da população. Infelizmente é uma realidade”.
Qualquer pessoa sã que escuta a fala do presidente da república há de se questionar sobre qual monstruosidade é maior: a pandemia ou o próprio Bolsonaro. Esse sacripanta degenerado evidentemente tem como objetivo deixar que a epidemia aja livremente. Ele quer que 70% de toda a população se contamine com o novo vírus para criar a chamada “imunidade de rebanho”. A questão é que, em primeiro lugar, ainda não se sabe se as pessoas contaminadas e curadas de fato ficam imunes ao vírus e não podem contrair a doença novamente. E, com a atual taxa de letalidade, contaminar 70% da população no Brasil significaria levar à morte de 3 a 5 milhões de pessoas pela Covid-19, sem falar nas outras mortes em decorrência do colapso dos serviços de saúde e do caos na sociedade. Obviamente, a maioria das mortes se daria entre os mais pobres. Como se ele não pudesse fazer nada, como se não tivesse nas suas mãos as rédeas do Estado brasileiro com um orçamento trilionário, esse monstro pretende deixar que milhões de pessoas morram sob o pretexto de que “não pode fazer milagres”. Hitler, o promotor do genocídio dos judeus na Alemanha e na Polônia, cuja monstruosidade é inquestionável, ficaria admirado com tamanha desfaçatez do presidente brasileiro. Quer promover uma matança de milhões de pobres no Brasil sem responsabilizar-se por isso.
A tragédia da pandemia de Covid-19 é causada pelo capitalismo mundial. Mas no Brasil, não podia encontrar arquiteto melhor que Bolsonaro para ir até as últimas consequências.
A subnotificação de mortes por Covid-19
Desde o início da contagem, no começo de março, é evidente que os dados oficiais reportam números de casos confirmados da doença e de mortes inferiores ao real. Logo no início, não foram poucos os dias em que o Ministério da Saúde divulgava um número total de casos confirmados em todo o Brasil inferior ao número que um único hospital de São Paulo divulgava de pacientes confirmados com a doença.
Serviços funerários em várias capitais começaram a relatar um aumento importante da demanda, óbitos registrados com “insuficiência respiratória” como causa da morte, mas cujos indivíduos não haviam sido testados para o novo coronavírus.
No Portal da Transparência, que reúne os dados do Registro Civil (cartórios) em todo o território nacional, é possível aferir os registros de óbitos com um atraso de 14 dias (tempo que leva da ocorrência até o registro ser computado na plataforma). Aí podemos constatar alguns números que apontam para uma significativa subnotificação dos casos de Covid-19.
Se compararmos o período de 1º de janeiro a 15 de abril deste ano com o mesmo período do ano anterior, é possível constatar, além das milhares de mortes registradas por Covid-19 neste ano que no ano passado não existiam, um aumento de 302% nas mortes registradas por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e um aumento de 35% no número de mortes por causa indeterminada.
Diante da enorme ausência de testes para o coronavírus, há uma grande probabilidade de que o aumento de mortes por SRAG, bem como por causa indeterminada, seja provocado principalmente pela epidemia de Covid-19. Além disso, há muito a ser estudado. Agora especialistas de várias partes do mundo estão constatando um aumento das mortes por AVC de adultos saudáveis entre 30 e 40 anos de idade causadas pelo novo coronavírus.
No estado do Amazonas, por exemplo, onde todos pudemos testemunhar o colapso dos serviços de saúde e funerário de sua capital, Manaus, enquanto os dados oficiais do Ministério da Saúde apontam 351 mortes confirmadas por Covid-19, o Registro Civil aponta um aumento de 1.483% no número de mortes por SRAG se comparado com os primeiros 4 meses do ano anterior (também há um aumento significativo no registro de óbitos por “pneumonia” e “insuficiência respiratória”). Sem testes suficientes para o novo coronavírus, é normal que o diagnóstico seja “pneumonia” ou simplesmente “insuficiência respiratória”. O estado de Pernambuco, talvez o exemplo mais alarmante dessa incongruência, registra um aumento de 4.225% no número de mortes por SRAG em comparação com o mesmo período do ano passado.
O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), anunciou a contratação de centenas de coveiros para dobrar a capacidade de sepultamentos nos cemitérios municipais da capital paulista, além da compra de 4 câmaras frigoríficas com capacidade para armazenar mil cadáveres. Divulgou um plano para abrir 13 mil novas covas em uma semana. Oras, o prefeito da maior cidade do Brasil não toma medidas nessas proporções por conta do seu sobrenome, mas porque tem informações e estudos que apontam a necessidade disso. É evidente que em São Paulo o número de mortes é maior do que divulgam as autoridades.
O que salta aos olhos é que, diante de uma iminente tragédia com milhares de mortos, em vez de investir em serviços de saúde, em vez de adotar medidas de isolamento social mais efetivas – como fizeram Itália e China, com suspensão da produção não essencial – aqui preferem abrir mais covas, aumentar a capacidade do sistema funerário. É como se esperassem as mortes e não como se tentassem evitá-las.
Enquanto, ao lado do governador João Doria (também do PSDB), o prefeito anuncia esses investimentos funerários, as empresas seguem funcionando a todo vapor no estado mais industrializado do país. Milhões de trabalhadores não estão realizando o isolamento social. Apesar de Doria ter prorrogado a pseudoquarentena no estado de São Paulo até o dia 10 de maio, o comércio reabre em vários pontos da capital e a fiscalização faz vista grossa. O transporte público continua funcionando sem restrições e voltam as superlotações. As aulas na rede estadual continuam suspensas, mas Doria orienta os pais a irem às escolas buscar materiais para que seus filhos façam atividades em casa e coloca os professores para distribuir os materiais nas escolas. No final das contas, o discurso de Doria contra Bolsonaro não passa da mais pura demagogia. Nenhum dos dois está fazendo qualquer esforço para realmente promover o isolamento social. Bolsonaro e Doria são monstros. A diferença é que Bolsonaro não se importa em parecer um monstro. Os dois são servos dos interesses do capital e trabalham com a tese de que quanto mais rápido todos se contaminarem e “morrer quem tiver que morrer”, mais rápido a circulação de mercadorias voltará à normalidade. Ledo engano. E todos aprenderão isso, infelizmente, da maneira mais trágica possível.
Toneladas de alimentos descartadas enquanto milhões são lançados às labaredas da fome
No chamado “cinturão verde” da região metropolitana de São Paulo, cerca de 7 mil médios e grandes produtores respondem por 25% do abastecimento de verduras para todo o país e por cerca de 90% das verduras e 40% dos legumes consumidos na capital paulista.
As medidas ainda muito frouxas de quarentena no estado têm atingido duramente esse setor por conta do fechamento de bares e restaurantes na maior cidade do país. A estimativa é de retração de algo entre 70% e 80% das vendas. Sem conseguir vender, boa parte desses produtores está enterrando parcialmente as culturas para utilizar como adubo. São toneladas de alimentos destruídas.
Um empresário que produz hortaliças, Fábio Sussumu Hagio, declarou ao jornal Folha de S. Paulo: “Eu vendia 10 mil maços de almeirão, alface, agrião e rúcula em uma semana e na outra passei a vender 500. Com essa queda foi inevitável fazer o descarte dos alimentos. Cerca de 70% da produção foi jogada fora.” Uma outra empresária, Simone Silotti, disse ao mesmo jornal: “Eu tenho 4 toneladas de alface, agrião e rúcula que poderiam ser destinadas para doação toda semana, mas não temos como arcar com os custos para fazer com que esses alimentos cheguem até quem precisa.” Aqui esses empresários do setor de alimentos apresentam o nó da questão: a sociedade capitalista não está economicamente organizada para atender às necessidades das pessoas, mas para realizar o lucro dos proprietários. Temos numa ponta toneladas de alimentos frescos sendo descartadas diariamente e na outra ponta milhões de pessoas sem ter o que comer. Muitas vezes a distância entre uma ponta e outra é de apenas alguns quilômetros, mas a solução aparentemente simples não é lucrativa.
Somente a planificação da economia sob controle dos trabalhadores poderia ordenar a produção e distribuição para frear o desperdício e garantir que todos tenham acesso ao que por todos é produzido.
Mas, antes mesmo de tomarmos o poder e planificarmos a economia, algumas medidas poderiam ser tomadas para remediar a anarquia capitalista nesses pontos críticos. A produção desses alimentos poderia ser expropriada pelo Estado e colocada em centros de distribuição gratuita para as famílias desempregadas, por exemplo. Essa operação por si só geraria empregos e o investimento necessário para isso poderia ser retirado do montante que é usado hoje para pagar juros e amortizações da dívida pública fraudulenta que já foi paga e não passa de um sistema de saque do Estado em benefício dos bancos e especuladores.
Enquanto essas toneladas de alimentos estão sendo destruídas, o governo enrola para liberar o pagamento do auxílio-migalha de R$ 600 aos trabalhadores de baixa renda ou sem renda. Acumulam-se aos milhares os casos de pedidos do auxílio negados por motivos absolutamente improcedentes. Não há canal para que se possa recorrer da decisão que é comunicada ao trabalhador pela internet. Os que tiveram seu pedido aprovado minguam numa espera de semanas. A muitos só resta a opção de romper o isolamento social e ir buscar trabalho. Uma enorme parcela da população está submetida ao dilema: morrer de fome ou se arriscar a morrer pela Covid-19.
O programa emergencial para a crise no Brasil elaborado pela Esquerda Marxista traz como primeiro ponto justamente o fim do pagamento da dívida pública. É esse programa que está sendo debatido, propagandeado e agitado pelos Comitês de Ação “Fora Bolsonaro” que estamos impulsionando em várias cidades.
Bolsonaro na corda bamba não recua da sua posição de ignorar a pandemia
Toda esta situação tende a se agravar muito. As perspectivas econômicas mundiais são de depressão econômica. Dezenas ou centenas de milhões de novos desempregados. Com esse cenário, não há previsão de recuperação para o Brasil.
Quem viu o pronunciamento de Bolsonaro na tarde de sexta-feira após a saída de Moro do seu governo deve lembrar da imagem que ele tentou construir de fortaleza com todos os seus ministros de pé lhe apoiando. Mas também deve lembrar que Paulo Guedes buscou se diferenciar. Era o único que não usava gravata e paletó e o único usando máscara. Naquele momento, mostrando-se para milhões de brasileiros, nenhum gesto, nada era impensado. O traje menos formal indicava alguém menos comprometido do que os outros. E a máscara, alguém que não concorda com a conduta de Bolsonaro diante da pandemia – ou que pelo menos quer parecer não concordar, como Doria, por exemplo, também o faz.
Aliás, naquele discurso de 45 minutos Bolsonaro nem sequer mencionou a epidemia de Covid-19 no Brasil. Continua tratando como se fosse uma gripezinha. “E daí?”.
E quando não conseguirem mais ocultar as milhares de mortes por Covid-19 que estão ocorrendo por todo o país? E quando o sistema funerário de várias cidades colapsar e os corpos começarem a se acumular? E quando as famílias que estão tendo o auxílio-migalha de R$ 600 negado não tiverem outra opção senão saquear mercados, lojas? E quando Paulo Guedes aceitar a sugestão de vários setores da burguesia e deixar também o governo?
De um lado, Bolsonaro corre o risco de enfrentar uma explosão social. Mas, em vez de buscar acalmar a situação como o faz Doria ou até mesmo o desequilibrado Witzel, Bolsonaro joga gasolina no incêndio com cada declaração que faz. E a burguesia sabe disso. Por isso buscam organizar a saída de Bolsonaro. FHC sugere que renuncie para poupar o Brasil de um longo processo de impeachment. Se avolumam os processos de impeachment protocolados na Câmara. O judiciário se move para enquadrar Bolsonaro e seus filhos em diversas investigações.
Naquela cena do pronunciamento com a qual Bolsonaro tentou passar uma imagem de fortaleza, ao contrário, deixou claro para quem quisesse ver a enorme fragilidade do seu governo. Sem Moro, Bolsonaro fica numa corda bamba. De todos os ministros enfileirados naquele palco, o único que de fato pode dar alguma força de sustentação a Bolsonaro é Paulo Guedes. Em menor medida, o General Heleno também, por conta de sua relação com os militares. Mas se Paulo Guedes abandonar o barco, a classe dominante brasileira abandona inteira o governo.
A burguesia faz cálculos e há posições diferentes entre eles. Há setores que temem remover Bolsonaro, como explica o ministro do STF Gilmar Mendes ao declarar que “não é hora de impeachment”. Temem que se tirarem Bolsonaro, qualquer que seja a solução depois – parlamentarismo, o vice Mourão, o presidente do STF, novas eleições, etc. – pode abrir caminho para um movimento de massas incontrolável. Por isso a saída mais “econômica” ou “segura” ainda é forçar Bolsonaro a abandonar sua política atual. Mas ele não dá nenhum sinal de que fará isso. E se ele se mantém nessa linha, o “Fora Bolsonaro” é que pode tornar-se um movimento de massas incontrolável.
Neste impasse no qual a classe dominante se paralisa, as direções da esquerda reformista – PT, PCdoB, PSOL – tentam a todo custo defender o atual Estado burguês (disfarçado de “defesa da democracia”). É este todo o conteúdo da política de Lula, que organiza um ato virtual no 1º de Maio junto com FHC, Doria, Toffoli, Maia e tutti quanti enquanto busca retomar a influência dominante sobre o movimento de massas no Brasil que já teve no passado para conduzi-lo aos limites da luta eleitoral. Em última análise, são esses partidos (principalmente o PT) e os sindicatos (principalmente a CUT) que “sustentam” o governo ao pedir que os trabalhadores aguentem firme até passar a epidemia. Mas e se o sofrimento dos trabalhadores neste período os levar a perder a paciência? A roda da história é mais forte que os aparatos e ela vai quebrar como vidro fino todos os que tentarem impedir a fúria das massas.
Pesquisas recentes que mostram um apoio de cerca de 50% da população ao impeachment não impedem o curso dos acontecimentos. Com a deterioração da economia e a agudização da crise sanitária, o apoio ao impeachment deve aumentar. Está numa ascendente. As explosões que já ameaçam eclodir de luta pela sobrevivência poderão se tornar explosões políticas assim que for possível tomar as ruas novamente. Explosões com força que há muito não se vê no Brasil. É para isso que nos preparamos. É para isso que estamos construindo os Comitês de Ação “Fora Bolsonaro”, por um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais.