Canto de Liberdade do Tuiuti: homenagem a João Cândido

O Paraíso do Tuiuti é uma Escola de Samba do morro do Tuiuti, em São Cristóvão, vizinho da Mangueira. Seus assentamentos informais começaram a ser levantados após os primeiros despejos dos cortiços do Centro do Rio, derrubados com violência na reforma urbana Pereira Passos nos anos 1900. A Escola foi fundada em 1954. E em 2024 é a 7ª oportunidade que tem para desfilar no Grupo Especial com o samba-enredo “Glória ao Almirante Negro”, uma homenagem a João Cândido, um dos líderes da Revolta da Chibata, insurreição de negros contra a má alimentação, maus-tratos e baixíssimos salários na Marinha.

Em 1910, o horror imaginário dos navios negreiros permaneciam. Os marujos, maioria de negros, eram obrigados a se alimentar com sobras de comida, não tinham roupas limpas para trocar e a jornada de trabalho era constantemente estendida provocando mortes por estafa. Vinte e dois anos após a abolição da escravatura, a Marinha conservava condições de trabalho do tipo senzalas submetendo os marinheiros a castigos corporais em espetáculos de tortura no convés, aos olhos de todos, para “servir de exemplo”.

O jovem habilidoso João Cândido, nascido em Encruzilhada do Sul, no RS, tornou-se marinheiro de primeira classe e com apreço dos oficiais comandava o navio Minas Gerais. A serviço da Marinha viajou e conheceu portos de muitos países. E teve contato com reuniões de associações sindicais de militares no exterior. Além de ter sido influenciado pela revolução russa de 1905 com a rebelião do Encouraçado de Potemkin.

João Cândido retornou ao Brasil e ajudou a organizar a luta por melhores condições dignas de vida e trabalho. O debate na base da Marinha se deu de maneira efervescente através dos “comitês revolucionários”, organismos clandestinos e de caráter sindical. A Marinha não previu a organização e o levante dos marinheiros. E em novembro de 1910, mais de 2 mil marujos se insurgem navios assumindo o comando e apontando cerca de 40 canhões para o Rio de Janeiro com uma carta de reivindicações.

Eles conquistam o fim da chibata, mas a um alto preço: o governo não cumpre a anistia aprovada no Senado e uma forte repressão cruel recai sobre os revoltosos. Foram mandados para celas insalubres e superlotadas na Ilha das Cobras e cal foi jogado sobre eles para intoxicá-los, verdadeiras Masmorras do Terror. Em uma das celas, morreram 16 de 17 marinheiros encarcerados. João Cândido foi um dos sobreviventes. Foi julgado, absolvido, diagnosticado como louco e desligado da Marinha. E passou a ganhar a vida com biscates e como pescador.

Os limites políticos do movimento se deram devido as ilusões dos marinheiros na reforma das forças armadas. O programa deles era de mudanças na Marinha sem ligação com a necessária mudança do sistema. E por isso não conseguiram se vincular e se unificar aos demais movimentos e sindicatos operários da época, não avançando na contestação revolucionária ao capitalismo. E um programa reformista somado a falta de clareza teórica de João Cândido provocou enorme confusão política em suas ideias. Na década de 1930, João Cândido e outras destacadas lideranças do movimento negro aderirem ao movimento fascista integralista, inimigo do movimento operário e da luta contra o racismo.

Mas a Revolta da Chibata nos deixou lições como a confiança na luta dos trabalhadores. Ficou demonstrado que a organização faz a diferença, a luta traz conquistas, e também a necessidade da organização em escala internacional para compartilhar experiências. Também fica o alerta para aqueles que ainda hoje mantém ilusões nas instituições como reformar a polícia, reformar do congresso, etc.

Décadas depois a classe dominante ainda temia a Revolta da Chibata e uma canção composta em homenagem ao “Almirante Negro” foi censurada pela ditadura. Com autoria de João Bosco e Aldir Blanc, e cantada por Elis Regina, a música é citada no samba-enredo da Tuiuti, O Mestre Sala dos Mares.

A letra do Tuiuti também faz alusão ao Dragão do Mar. Um dos líderes da greve de jangadeiros no Ceará que conquistaram a abolição no estado 4 anos antes da Lei Áurea. Os jangadeiros se recusaram a transportar escravos, além de comprar a liberdade e escondê-los em casas de pessoas solidárias. Uma demonstração da força e método próprio da classe trabalhadora na conquista de um direito democrático contra a monarquia e os latifundiários em 1884.

Salve o Almirante Negro! Até hoje seu nome é negado e perseguido pela Marinha, mas nós o homenageamos em samba-enredo porque amamos a liberdade e a igualdade!

Parabéns a Paraíso do Tuiuti! Carnaval é festa e alegria que pode ser cantada com consciência de classe, memória, organização dos trabalhadores e luta contra as injustiças!

Samba-Enredo 2024 – Glória ao Almirante Negro

G.R.E.S Paraíso do Tuiuti

Liberdade no coração
O dragão de João e Aldir
A cidade em louvação
Desce o Morro do Tuiuti

Nas águas da Guanabara
Ainda o azul de araras
Nascia um herói libertador
O mar, com as ondas de prata
Escondia no escuro a chibata
Desde o tempo do cruel contratador

Eram navios de guerra, sem paz
As costas marcadas por tantas marés
O vento soprou à negrura
Castigo e tortura no porão e no convés

Ô, a casa grande não sustenta temporais
Ô, veio dos Pampas pra salvar Minas Gerais

Lerê, lerê, mais um preto lutando pelo irmão
Lerê, lerê, e dizer: Nunca mais escravidão
Ô, a casa grande não sustenta temporais
Ô, veio dos Pampas pra salvar Minas Gerais
Lerê, lerê, mais um preto lutando pelo irmão
Lerê, lerê, e dizer: Nunca mais escravidão

Meu nego
A esquadra foi rendida
E toda gente comovida
Vem ao porto em saudação
Ah, nego
A anistia fez o flerte
Mas o Palácio do Catete
Preferiu a traição

O luto dos tumbeiros, a dor de antigas naus
Um novo cativeiro, mais uma pá de cal
Glória aos humildes pescadores
Iemanjá com suas flores
E o cais da luta ancestral

Salve o Almirante Negro
Que faz de um samba-enredo
Imortal

Liberdade no coração
O dragão de João e Aldir
A cidade em louvação
Desce o Morro do Tuiuti

Salve o Almirante Negro
Que faz de um samba-enredo
Imortal

Carnavalesco: Jack Vasconcelos

Composição: Valdir W. Correa / Pier Ubertini / Moacyr Luz / Julio Alves / Gustavo Clarão / Alessandro Falcão / Cláudio Russo