A relação social que transformou o artesão e o camponês em operário fabril é a mesma que, mais de cem anos depois da fundação da psicanálise, está transformando os psicanalistas em assalariados comuns. Como? Estão crescendo uma série de empresas privadas de serviços terapêuticos, principalmente online, que demandam trabalhadores da “terapêutica” em grande quantidade. Nesse ambiente, é uma oportunidade e tanto para os seus investidores capitalistas se existirem centenas, talvez milhares, de “bacharéis em psicanálise” saindo das universidades e dispostos a nelas trabalharem.
Vamos começar explicando esse fenômeno empresarial pela pandemia. Ela trouxe consigo o aumento do mercado consumidor de “terapias” a partir da difusão de tratamentos exclusivamente online, prática antes marginalizada e até reprimida pelos psicanalistas e psicólogos; que a classificavam como charlatanismo ou pouco eficaz. Ademais, no Brasil, antes da pandemia, já existia há alguns anos a obrigatoriedade, imposta pela Agência Nacional de Saúde (ANS), para que os planos de saúde pagassem por sessões de psicoterapia aos seus clientes; o que aumentou a demanda por tratamentos e fomentou o surgimento de pequenas empresas. Aproveitando a oportunidade de um mercado consumidor crescente, capitalistas de todos os portes passaram a investir em “startups” ou abrir seus próprios negócios.
Ou seja, para que existisse em massa o operário assalariado do século XVII, foi necessária alguma liberdade de comércio, um mercado consumidor capaz de comprar determinados produtos em massa, investidores capitalistas dispostos a fornecer condições práticas para que as mercadorias fossem fabricadas, e, o mais importante, uma massa de despossuídos dispostos a vender força de trabalho para o capital.
Mas, se em dada época, o trabalhador assalariado médio podia ser retratado como aquele que realizava movimentos simples, repetitivos, exercíveis independentemente da idade ou gênero, o avanço das forças produtivas mudou essa realidade. Com as novas tecnologias aplicadas à produção, surgiram postos altamente especializados nas empresas. Consequentemente, os capitalistas demandaram trabalhadores com características específicas para ocupá-los. O trabalhador “bruto”, “in natura”, preparado no seio da família ou das guildas medievais, foi perdendo espaço. Para preparar a nova força de trabalho, o capital funcionaria melhor com o apoio de um sistema educacional voltado às massas, espalhado por todo o território nacional, centralizado e regulado pelo Estado.
Do ponto de vista capitalista, o arranjo institucional que prepara psicanalistas hoje para a clínica simplesmente não atende às demandas dos investidores. O método tradicional de formação prepara em pequena quantidade, logo não constrói considerável exército de reserva, e ainda compete com as empresas de serviços terapêuticos ao fornecer apoio teórico aos jovens, incentivo para a constituição de clínicas próprias e uma série de laços comunitários. Para completar, podemos dizer que a formação “clássica” é do tipo cooperativista e improdutiva: as grandes instituições não usam sua renda como capital e seus diretores são os próprios associados, salvo raras exceções como a IPA (International Psychoanalytical Association), que tem até um CEO profissional contratado.
Para o capital, portanto, é necessário retirar os aspirantes a psicanalistas da mão do que chamaremos de “barões da psicanálise”, que são os diretores das grandes instituições, analistas didatas e intelectuais de renome que influenciam os rumos do movimento psicanalítico. Através deles são construídas editoras, clínicas de variados tipos, institutos de formação e associações de psicanalistas.
É em nome da “tradição” que as maiores instituições e lideranças do movimento psicanalítico vociferam, em uníssono, contra o bacharelado. Não porque elas estejam contra um projeto capitalista de disputa por mercados, posto que comentam pouco ou nada sobre o modo de produção e não têm algo diferente a propor, mas porque estão vendo tudo que cultivaram por tanto tempo, as “tradições desde Freud”, desmanchando-se no ar. O seguinte trecho de Marx é muito adequado para esse contexto:
“A transformação contínua da produção, o abalo incessante de todo o sistema social, a insegurança e o movimento permanentes distinguem a época burguesa de todas as demais. As relações rígidas e enferrujadas, com suas representações e concepções tradicionais, são dissolvidas [grifo nosso], e as mais recentes tornam-se antiquadas antes que se consolidem. Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas [grifo nosso]. A necessidade de mercados sempre crescentes para seus produtos impele a burguesia a conquistar todo o globo terrestre. Ela precisa estabelecer-se, explorar e criar vínculos em todos os lugares” (Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista).
As atuais lideranças estão sendo desbancadas pelo projeto de bacharelado. Agora serão uma série de “professores de psicanálise”, junto à burocracia do Estado, governos e diretores das universidades, que ditarão a base curricular e regras para o ensino. Quando o número de psicanalistas em formação nas universidades ultrapassar o que está realizando cursos nas instituições tradicionais, e o número de clientes das empresas privadas de terapia ultrapassar o número de “clientes” dos consultórios particulares, as atuais associações de psicanalistas terão se transformado em espécies de museus, centros de cultura e formação para aqueles que quiserem se formar “como se fazia antigamente”.
Em suma, o capital chegou para capturar um mercado ainda pouco explorado e para recrutar as novas gerações de interessados na psicanálise para suas instituições lucrativas. Se a psicanálise não pôde ser destruída, melhor é lucrar com ela, e para atingir esse objetivo é urgente dilacerar as baronias, começando por desmoralizá-la. Se, etimologicamente, a palavra barão remete ao “homem livre” que dispõe de um feudo, está chegando ao fim a “era feudal” da psicanálise e de qualquer tipo de liberdade.
Pode ser que o Bacharelado em Psicanálise dê certo para os capitalistas, ou não. As cartas foram lançadas pela UNINTER, que está fornecendo o primeiro curso desse tipo autorizado pelo Ministério da Educação (MEC). Parcelamento da mensalidade no cartão, programas de financiamento estudantil e ensino remoto, não é uma maravilha? Os grandes psicanalistas resmungam há muito tempo sobre o alto custo da formação em psicanálise, sobre como ele limita o exercício da psicanálise a alguns poucos, consequentemente o acesso ao tratamento também, sem resolver ou propor soluções gerais – que ultrapassem as cercas dos seus “feudos”. Quem apareceu para resolver esse problema? Curiosamente, o capitalista que nada entende de psicanálise, mas que muito entende sobre como fazer dinheiro com ela.
A realidade aqui descrita não é nada progressista: é reacionária, vai limitar as liberdades dos psicanalistas ao transformá-los em assalariados comuns, vai enfraquecer as associações para colocar no seu lugar universidades e clínicas privadas. No entanto, hoje a crítica ao bacharelado em psicanálise, em sua maior parte, é uma crítica pequeno-burguesa, que reivindica o retorno às condições anteriores de ensino, pesquisa e clínica.
Além disso, a atual tática das associações de lançar notas de repúdio ao bacharelado e fazer reuniões de cúpula parece não ter causado efeito algum, pois a maioria dos matriculados ou futuros matriculados na UNINTER não as leram, não as lerão, e, mesmo que tenham lido, talvez não se importem com elas. Essa impotência é resultado de décadas de apoliticismo, de antimarxismo e de um liberalismo velado – com caráter de esquerda –, portanto hipócrita, que domina as instituições tradicionais.
É preciso desenvolver uma crítica proletária ao bacharelado em psicanálise, o que começa pela luta pelo direito ao tratamento psicológico para todos (uma luta que pode parecer “fora da caixa”, mas que foi iniciada por Freud em 1918), pela defesa das associações como forma de autorregulação do exercício da psicanálise e base para a formação de novos psicanalistas – reivindicando conjuntamente eleições livres e regulares dentro das mesmas –, assim como pela defesa de que todos os que queiram ser psicanalistas assim possam ser, independentemente da condição econômica, cor de pele, gênero, opção religiosa, orientação sexual, nacionalidade etc. Para atingir esses objetivos precisamos mais do que notas e análises, mas de ação política na luta de classes.
O peso da classe trabalhadora está crescendo no interior do movimento psicanalítico. Uma mudança substancial nos rumos do movimento em breve poderá ser conduzida pelos psicanalistas assalariados e semi-assalariados, que por enquanto não são a maioria na sua direção. Uma mudança desse tipo, sim, deverá ser comemorada. A mudança imposta pela burguesia ávida por lucros quer apenas passar o rolo compressor por cima dos pequeno-burgueses encastelados para transformar a psicanálise em uma profissão comum, com seus assalariados produtores de mais-valia.
Junto ao projeto de capitalização da psicanálise há o estímulo a todos os embriões já existentes de uma psicanálise submissa à ordem, isto é, de uma prática terapêutica que vai contra a ética dos seus fundadores e que se apropriará do nome “Psicanálise”; exterminando-a como a ciência psicológica das profundezas. Se a crítica marxista à ordem social com o apoio da psicanálise foi interrompida já nas suas primeiras gerações, é papel das novas gerações retomá-la.
Através da crítica da economia política poderemos levar o movimento comunista para dentro do movimento psicanalítico, aproveitando a experiência dos veteranos no seu interior para preparar os mais jovens para os embates teóricos e políticos contra os capitalistas e seus apoiadores. Sob um futuro governo dos trabalhadores a psicanálise será capaz de cumprir um papel essencial na construção do humano de novo tipo, necessário para a construção do comunismo. Nós, trabalhadores da psicanálise, nos organizamos e nos preparamos para a guerra – para vencer a guerra –, sejam lá quais forem as condições das batalhas ou seus terrenos.
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