Desde o dia 31 de janeiro do ano passado, o Reino deixou de fazer parte da União Europeia (UE), o bloco econômico mais poderoso do mundo. A saída de uma das nações mais ricas e importantes do continente já trouxe significativas consequências e trará ainda muitas outras, para ambos os lados do Canal da Mancha e para o mundo inteiro.
Muito além de qualquer impacto econômico ou social, o que se viu com a vitória do “sim” ao divórcio com o bloco europeu é um dos mais sintomas mais escancarados da falência da ordem burguesa. No país onde surgiu o capitalismo moderno, onde as instituições de Estado eram símbolo de estabilidade e exemplo para outros regimes burgueses, os capitalistas foram forçados a aplicar uma política lançada por grupos que não pertenciam ao establishment e cujos efeitos iam contra seus interesses mais diretos.
Desde que o Reino Unido aderiu formalmente à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, organização que antecedeu a UE, em 1973, sempre houve vozes dissonantes e céticas em relação à permanência do país em um bloco econômico continental. Mas ao contrário do que se vê nos tempos atuais, essa oposição partia sobretudo do Partido Trabalhista e outras organizações de esquerda, que denunciavam a piora nas condições de vida dos trabalhadores e a destruição maciça do parque fabril, que gerou problemas endêmicos de desemprego em áreas inteiras do país.
Os efeitos econômicos sobre a classe trabalhadora foram imediatos. Apenas dois anos depois da adesão do país ao bloco, um referendo foi convocado após a vitória eleitoral trabalhista em outubro de 1974. Entre os votos válidos, mais de um terço (8,4 milhões) votaram pela saída do país, um forte indício de que grande parte dos trabalhadores já começava a sofrer os efeitos da nova realidade econômica.
Ao longo dos anos 1970 e 80, e especialmente durante o governo de Margareth Thatcher, os trabalhistas se mantiveram críticos em relação à presença do Reino Unido em uma zona de livre comércio. Nesse mesmo período, os conservadores, também chamados de “tories” no país, mantiveram-se firmes na posição contrária. Afinal, a burguesia britânica lucrava com investimentos de grande vulto nas demais economias do bloco, além de transferir boa parte do que restava da indústria nacional para países onde o custo da mão de obra era consideravelmente mais baixo.
Em novembro de 1993, constituiu-se formalmente a UE, que se diferenciava dos demais blocos por não ser apenas uma união econômica, mas também política, com a criação de instituições que visavam “aproximar” os países europeus e “diminuir as chances” de tensões entre eles. Na realidade, o que surgiu foi um poderoso aparato burocrático controlado pelas grandes potências do continente, sobretudo a Alemanha, para manter as economias e a política das nações menores sob seu estrito controle.
Entre as potências imperialistas que comandavam a UE, estava o Reino Unido. Os poderosos bancos britânicos multiplicaram seus lucros com suas investidas pelo continente europeu. Ao mesmo tempo, as tradicionais regiões industriais do país, localizadas sobretudo nas regiões mais ao norte da Inglaterra, sofreram ainda mais com a perda de postos de trabalho. Cidades como Birmingham, Sheffield e mesmo Manchester, berços da classe operária inglesa e britânica, viram seus bairros proletários se converterem em antros de violência, muitas vezes associada ao futebol, e desemprego perene. Casas, lojas e fábricas se tornaram lugares abandonados.
Mas ao contrário do que ocorrera em décadas anteriores, os trabalhistas britânicos mudaram radicalmente sua posição em relação à União Europeia. Longe da posição crítica ao bloco e em defesa dos trabalhadores, os líderes do Partido Trabalhista, especialmente Tony Blair, adotaram um tom de defesa da UE, muitas vezes apontando a existência do bloco, e também a presença do Reino Unido nele, como um “exemplo de globalização bem sucedida”.
Tal posição representava uma total capitulação aos interesses do grande capital britânico, que pretendia expandir seus lucros às custas da mão de obra dos países mais pobres da Europa, ao mesmo tempo em que desmontava o parque industrial localizado em suas próprias fronteiras, conduzindo milhões ao desemprego ou ao subemprego. Essa conciliação entre o principal partido de esquerda do país e os capitalistas britânicos seria o principal fator responsável pela forma como se deu o Brexit no Reino Unido.
Aproveitando-se da insatisfação de muitos milhões com a situação econômica e social na qual se encontravam, membros da extrema-direita fundaram o United Kingdom Independence Party, ou Ukip (Partido da Independência do Reino Unido), em 1993. O tom irônico do nome, que pede “independência” para uma das principais potências imperialistas do mundo, deu um aspecto cômico ao partido e seus líderes, e por muitos anos estes não obtiveram mais do que ganhos eleitorais marginais.
Esse cenário mudou a partir da crise de 2008, que mudou a correlação de forças em todo o mundo, mesmo nos países avançados. A situação econômica da classe trabalhadora, que já era ruim, tornou-se péssima. Diante de tal cenário, os líderes do Partido Trabalhista, que deveriam defender os direitos dos trabalhadores, fizeram coro aos conservadores na defesa do status quo político e econômico, que incluía a permanência na UE.
Foi a partir daí que o Ukip, outrora tratado quase que como uma piada, passou a ser uma força política relevante no país. Na eleição de 2015, o partido conseguiu 3,8 milhões de votos, tornando-se a terceira força na política britânica. Sua popularidade chegou a tal ponto que os conservadores, então liderados por David Cameron, resolveram incluir a proposta principal do partido em sua plataforma de governo: um referendo sobre a permanência do país na UE. Contra todas as expectativas, o voto pela saída do bloco venceu, para o choque do establishment e mesmo dos líderes trabalhistas.
A trajetória que conduziu o Reino Unido à situação atual tem sua origem na traição dos dirigentes do Labour Party, que preferiram atuar em defesa da ordem tão odiada por milhões de trabalhadores. Muitos dos que votaram a favor do Brexit foram chamados de “fascistas” pelos liberais e mesmo certos “marxistas” britânicos. Ao contrário do que pensam essas figuras, os trabalhadores não são de esquerda ou de direita. A classe operária busca forças que ofereçam respostas radicais à problemas radicais. Se a esquerda não oferece uma alternativa à altura, a direita naturalmente ocupará esse espaço com suas falsas bandeiras. E os insultos aos trabalhadores, vindos justamente daqueles que os traíram, só provam a impotência dos dirigentes reformistas do movimento operário britânico e mundial, que cada vez mais se veem atirados às margens da luta de classes.