O teletrabalho foi elevado a primeiro plano na realidade de trabalho devido à obrigação de fechamento parcial e temporário da atividade econômica em diversos locais de trabalho, em meio à pandemia de Covid-19. Em especial nas áreas administrativa e de telecomunicações. Esta não é uma mera questão trabalhista, tem um conteúdo político profundo. Este artigo foi publicado originalmente em nossa revista teórica Marxismo XXI, recomendamos a leitura e o debate sobre.
O teletrabalho ganhou destaque na realidade de trabalho devido à pandemia de Covid-19, que obrigou ao fechamento parcial e temporário da atividade econômica nos centros de trabalho coletivo. Dessa maneira, o teletrabalho passou de 4,8% da força de trabalho, antes da pandemia, para 16,2% no segundo trimestre de 2020 e para 9,9% no final de 2020. Com a terceira onda e as restrições no início de 2021, voltou a subir para 11,2%, terminando em 9,4% em meados de 2021.
Ao nos posicionarmos sobre o teletrabalho, temos que definir claramente quais aspectos têm a ver com o assunto em questão e quais não, para não nos desviarmos do ponto a ser discutido.
Nós marxistas admitimos todos os desenvolvimentos tecnológicos, invenções e novas formas de organização do trabalho. Todas que aumentem o domínio do ser humano sobre a natureza, que tenham a capacidade de encurtar o tempo de trabalho e torná-lo menos penoso, e que ajudem a preparar as melhores condições para o estabelecimento de uma economia socialista e do próprio socialismo.
A Internet é uma das maiores invenções da história humana, preparada por todo o longo processo de desenvolvimento anterior. Sua contribuição ao desenvolvimento humano, em todos os aspectos (econômico, cultural, comunicacional e etc.) não necessita de explicação. Podemos dizer a mesma coisa sobre o desenvolvimento informático ao qual está associado e dos chamados telefones inteligentes (Smartphones). Estes exemplos demonstram apenas um um vislumbre do potencial inesgotável da destreza humana e das possibilidades que seu uso adequado acarretaria em uma sociedade socialista.
A possibilidade de reuniões remotas é outro enorme avanço para superar as limitações da distância física entre as pessoas e o antigo sistema telefônico. Isso dá um golpe contundente ao particularismo e ao individualismo nas relações sociais e econômicas e desempenhará um papel decisivo na cooperação humana, no estabelecimento e aplicação de um plano global de planejamento econômico, nas formas de participação, debates e democracia direta a todos níveis etc.
Tudo isto está claro, e, embora seja uma cotação para teletrabalho, o debate que propomos não tem nada a ver com essas análises.
Por definição, o teletrabalho consiste na realização de trabalho produtivo a partir do domicílio do trabalhador, por meio de ferramentas ligadas à empresa para a qual ele trabalha. Na realidade, trata-se da terceirização, geralmente de tarefas administrativas, para a casa do trabalhador. É uma forma renovada de trabalho em casa, tão difundida nos primórdios do capitalismo, normalmente regida pelo trabalho por peça. E não é por acaso que há mais mulheres (10%) do que homens (8,9%) trabalhando à distância no Estado espanhol. Isso envolve principalmente antigos empregos, com jornadas e condições de trabalho mais flexíveis, que exigem menor qualificação, e, portanto, com menor custo salarial para a empresa, o que recai especialmente entre as mulheres.
Podemos dividir esta modalidade em dois tipos de trabalho. Por um lado, existem trabalhos administrativos de rotina, de baixa ou média qualificação, mencionados no parágrafo anterior, que representam o grosso do teletrabalho (tarefas administrativas, trabalho de banco de dados, atendimento ao cliente e trabalho de “Call Center”, etc.), por outro lado, existem trabalhos altamente qualificados, especialmente na área de engenharia, arquitetura, gestão, etc. que geralmente se caracterizam por trabalhos isolados ou em pequenos grupos. Para esse tipo de trabalho, as condições em casa não diferem muito daquelas de um escritório ou departamento de engenharia de uma empresa, já que a equipe já usufruía previamente de condições de trabalho flexíveis.
O teletrabalho não é um método de trabalho universalmente aplicável, apenas afeta processos que incluem equipamentos de informática, especialmente computadores, de modo que seu impacto na produção e na classe trabalhadora é limitado. Ou seja, nunca poderia se converter na modalidade majoritária de trabalho.
O teletrabalho pode ser muito útil para situações excepcionais, como a atual pandemia, catástrofes naturais, situações de emergência de vários tipos, etc. Isso é inegável, não podemos ser contra o teletrabalho nestas condições.
No entanto, o teletrabalho é uma arma muito poderosa nas mãos dos empregadores para aumentar a exploração; ou seja, extrair mais-valia acima do nível médio, em relação ao método tradicional de trabalho no escritório. Podemos identificar os aspectos mais regressivos do teletrabalho:
- A autoexploração. Desaparece gradualmente o processo de trabalho regulado por tempo (6 ou 8 horas), de modo que é fácil impor o trabalho por peça (isto é, por objetivos de produção em uma jornada de trabalho). O que sempre repudiamos como uma questão de princípios. Somos favoráveis à medição do salário pelo tempo de trabalho necessário com uma intensidade média. O trabalho por peça obriga o trabalhador a uma maior intensidade de trabalho ou a prolongar a jornada normal de trabalho para cumprir os objetivos fixados de cada dia. Isso aproxima o teletrabalho do antigo dever de casa estudado por Marx em O Capital, que mencionamos anteriormente.
- Piora das condições de trabalho. Tal seria a indisponibilidade de equipamentos adequados em casa garantidos (cadeiras ergonômicas, qualidade de conexão à internet), ou a economia de tais equipamentos pela empresa de modo que o trabalhador seja obrigado a usar e gastar seu próprio equipamento, obtido com seu salário; ou seja, a despesa com os equipamentos que a empresa deve assumir é subtraída do salário. Trata-se de uma diminuição real do salário do trabalhador e um aumento da extração de mais-valia.
Poderiam argumentar que a lei, recentemente aprovada, em vigor protege os trabalhadores dos pontos antes mencionados, porém, essa teoria, só poderia ser garantida, a princípio, em grandes empresas com atuação sindical forte, não nas demais. De maneira geral, quando o trabalhador confronta a empresa isoladamente de sua casa para fazer reclamações constantes em casos de descumprimentos, ele fica mais desprotegido. Seria uma fonte permanente de disputas e desgaste emocional para o trabalhador.
- A “voluntariedade” do teletrabalho – conforme exigido, em princípio, por lei – também está em questão. Existem formas sutis de impor o teletrabalho ao trabalhador, quer ele queira ou não; mesmo que a lei diga que deve ser voluntário.
- O teletrabalho, atingido um ponto de extensão, conduz inevitavelmente a reduções salariais e à eliminação de alguns benefícios da empresa. Esta é uma conclusão lógica na aplicação da Lei do Valor-Trabalho de Marx. Já houve casos ou propostas de redução salarial quando o antigo salário incluía um bônus para deslocamento até o local de trabalho ou auxílio almoço, por exemplo na Google[1], e outras. Ao não precisar viajar ou comer nas instalações da empresa, o capital, necessariamente, tentará ajustar o salário às novas condições, eliminando os bônus que considera supérfluos. Como explica a lei do valor-trabalho de Marx, se o consumo de meios de subsistência do trabalhador diminui para realizar seu trabalho, isso, inevitavelmente, será refletido em uma diminuição dos salários reais, pois este nada mais é do que a soma dos meios de subsistência necessários para manter o trabalhador vivo e nas condições necessárias para desempenhar sua tarefa. Sabemos que muitos trabalhadores economizam nas despesas de viagem e alimentação para obter uma renda extra com os bônus da empresa (carona, levar marmita de casa etc.).
- Devemos ter em mente que o teletrabalho não surge espontaneamente como uma demanda de baixo, mas sim sendo promovido pelo empregador com um único objetivo; de economizar custos: salários, aluguel de escritórios, serviço de segurança, etc. Por si só, o teletrabalho não representa uma maior produtividade do trabalho que se realiza, exceto pelo fato de implicar na redução de custos para o empregador e no aumento da exploração da força de trabalho que possa acarretar, como explicamos anteriormente.
- O que acontece em caso de acidente de trabalho em casa, sem equipe médica imediata?
- Acima de tudo, o teletrabalho tem os piores efeitos sobre as mulheres trabalhadoras, que sofrerão uma dupla jornada (trabalho assalariado e trabalho doméstico) sem solução de continuidade, agravada pela combinação do trabalho com o chamado trabalho doméstico, sem desligar um do outro, trancada 24 horas nas paredes da casa, aumentando a ansiedade e o cansaço físico e mental.
- Um aspecto principal dos efeitos negativos do teletrabalho é separar o trabalhador do centro de produção e de seus colegas; atomiza a classe e ajuda a diluir sua consciência de classe. Rompe o vínculo do trabalhador com o seu local de trabalho, de modo a diluir e amortecer o conflito de classe trabalhador-patrão. A noção comunista de propriedade coletiva da empresa é diminuída na consciência do trabalhador por estar fisicamente separada do centro produção coletiva.
- É verdade que, inicialmente, o teletrabalho teve apoio majoritário em todas as camadas. Surgiu como uma novidade, rompendo com a rotina sufocante de longas jornadas e deslocamentos para o trabalho, ocorreu em um ambiente familiar agradável etc. Só pela experiência ficou clara para muitos trabalhadores, e, principalmente, para as mulheres atingidas, a escravidão e o esgotamento psíquico que essa nova forma de trabalho começava a representar. Acima de tudo, o isolamento e a perda do contato físico e social com seus colegas de trabalho salienta uma demanda, expressa uma necessidade intrínseca do ser humano; de interagir fisicamente com seus pares.
- Até algumas empresas começaram a notar um desempenho inferior, o cansaço das reuniões à distância e a falta do que Marx chamou de emulação e estímulo das energias animais no trabalho, por meio do trabalho cooperativo. O que estamos vendo agora é uma reversão gradual do teletrabalho, embora obviamente esse sistema seja estabelecido para uma camada maior de trabalhadores do que antes da pandemia. Uma parte das empresas vai continuar a utilizá-lo para reduzir custos e são muitos os trabalhadores, sobretudo as mulheres, que não têm outra alternativa senão aceitar estas novas condições de trabalho. Um estudo da Actiu, empresa de relações de trabalho, publicado no site El Correo, revelou “que 56% dos trabalhadores sentiam falta de um melhor relacionamento com os colegas e que 73% prefeririam retornar ao escritório”.[2]
- É verdade que o teletrabalho encontra maior apoio, em geral, na camada superior dos trabalhadores técnicos e qualificados; cientistas da computação, engenheiros, gerentes de área, contadores. Mas o “conforto” para essa camada superior, com salários mais altos, melhores condições de trabalho e horários de trabalho mais flexíveis, que já desfrutavam em seu modo anterior de trabalho, não pode servir de parâmetro para a nossa posição.
- Também é verdade que muitos trabalhadores administrativos comuns achem mais confortável, pessoalmente, trabalhar de casa do que “perder” horas de vida no deslocamento e até economizar na gasolina. Mas não se enganem. Cedo ou tarde, essa situação tenderá a se refletir em queda salarial, principalmente nas novas contratações com esse tipo de trabalho, nas quais a empresa estabelecerá novas condições para burlar a lei.
- A ruptura de vínculos entre os trabalhadores é sempre reacionária, especialmente sua dispersão em diferentes centros de trabalho. Essa situação mina a solidariedade operária, a percepção de interesses comuns e cria melhores condições para a divisão da força de trabalho, quando se trata de lutar pelo seu conjunto de reivindicações. O interesse geral deve prevalecer, isto é, que os trabalhadores sintam que a empresa é deles e assim a ideia de propriedade coletiva é facilitada. Ao invés de favorecer a mentalidade pequeno-burguesa do trabalhador de se sentir um “prestador de serviços” para uma empresa “de fora”, trabalhando de casa.
É por tudo o que foi apresentado anteriormente que apenas podemos concordar com o estabelecimento do teletrabalho em situações muito excepcionais (obviamente se encaixa a pandemia) e com o fundamento de que a vontade do trabalhador deve prevalecer e que, em todo o caso , deve haver a aprovação do conselho de trabalhadores.
Nossa alternativa à natureza alienante do trabalho sob o capitalismo, que é marcado por : longas jornadas de trabalho, perda de tempo de deslocamento etc, não pode ser trabalhar em casa, mas sim redução da jornada de trabalho sem redução salarial, transporte público, gratuito, rápido e eficiente, creches no local de trabalho, centros de trabalho perto de casa, etc.
Há um último aspecto a considerar; como seria essa questão sob o socialismo? O socialismo é vida coletiva por definição, é a unidade do trabalho criativo e do lazer, não haveria separação entre os dois, numa etapa já desenvolvida. Pensar que cada um estaria em sua casa, trabalhando, comendo de maneira isolada, na vida familiar, etc. seria estranho ao modo de vida socialista. Não vamos utopizar em detalhes como seria o socialismo, mas podemos afirmar que os aspectos individualistas do cotidiano atual (e o teletrabalho é um deles) seriam primeiro enfraquecidos e depois extintos.
É claro que o socialismo significaria uma revolução total no campo do trabalho. Não haveria dias exaustivos nem perda inútil de tempo no deslocamento; justamente porque uma parte importante do trabalho da sociedade seria imaginar, testar e inovar um modo de vida saudável também na relação entre o ser humano e o trabalho.
É por todas estas razões que a nossa posição sobre o teletrabalho deve ser, em geral, negativa. Ou seja, salvo em situações excepcionais que o justifiquem temporariamente, e que devem ser avaliadas em cada contexto, devemos nos opor à sua introdução.
Independentemente de tudo o que precede, a verdade é que o teletrabalho é uma realidade que não pode ser suprimida pela nossa simples vontade ou apenas fechando os olhos. À medida em que é uma realidade imposta, devemos completar nossa posição de princípios com uma tabela de demandas. Ou seja, um programa que inclua essas demandas e estabeleça as melhores condições de trabalho e salário para os trabalhadores atingidos.
[1] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11356040/08/21/Teletrabajar-bajara-el-sueldo-de-los-empleados-de-Google-asi-funciona-su-calculadora-que-pueden-aplicar-otras-empresas.html
[2] https://www.elcorreo.com/vivir/teletrabajo-desventajas-20210608182512-ntrc.html
Tradutora: Renata Paradizo