Comecemos lembrando que cultura significou originalmente campo arado e cultivado, em oposição à floresta ou ao solo virgem. A cultura se opunha à natureza, ou seja, o que o homem havia conseguido com seus esforços contrastava com o que havia recebido da natureza. Esta antítese fundamental conserva seu valor atualmente. Cultura é tudo o que foi criado, construído, aprendido, conquistado pelo homem no curso de sua história, diferentemente do que recebeu da natureza, incluindo a própria história natural do homem como espécie animal. A ciência que estuda ao homem como produto da evolução animal se chama antropologia. Mas desde o momento em que o homem se separou do reino animal – e isto sucedeu quando foi capaz de utilizar os primeiros instrumentos de pedra e madeira e com eles armou os órgãos de seu corpo –, começou a criar e acumular cultura, isto é, todo tipo de conhecimentos e habilidades para lutar com a natureza e subjugá-la.
Quando falamos da cultura acumulada pelas gerações passadas pensamos fundamentalmente em seus logros materiais, na forma dos instrumentos, na maquinaria, nos edifícios, nos monumentos… É isto cultura? Desde logo são as formas materiais em que se foi depositando a cultura – cultura material. É ela que cria, a partir das bases proporcionadas pela natureza, o marco fundamental de nossas vidas, nossa vida cotidiana, nosso trabalho criativo. Mas a parte mais preciosa da cultura é a que se deposita na própria consciência humana: os métodos, costumes, habilidades adquiridas e desenvolvidas a partir da cultura material pré-existente e que, ao mesmo tempo em que são seus resultados, a enriquecem. Portanto, consideraremos como firmemente demonstrado que a cultura é um produto da luta do homem pela sobrevivência, pela melhoria de suas condições de vida, pelo aumento de poder. Mas destas bases também surgiram as classes. Através de seu processo de adaptação à natureza, em conflito com as forças exteriores hostis, a sociedade humana se formou como uma complexa organização classista. A estrutura de classe da sociedade determinou em alto grau o conteúdo e a forma da história humana, ou seja, das relações materiais e seus reflexos ideológicos. Isto significa que a cultura histórica possuiu um caráter de classe.
A sociedade escravista, a feudal, a burguesa, todas elas engendraram sua correspondente cultura, diferente em suas distintas etapas e com uma multidão de formas de transição. A sociedade histórica foi uma organização para a exploração do homem pelo homem. A cultura serviu à organização de classe da sociedade. A sociedade de exploradores criou uma cultura a sua imagem e semelhança. Mas devemos estar por isso contra toda a cultura do passado?
Aqui existe, de fato, uma profunda contradição. Tudo o que foi conquistado, criado, construído pelos esforços do homem e que serve para reforçar o poder do homem, é cultura. No entanto, visto que não se trata do homem individual, mas do homem social, visto que em sua essência a cultura é um fenômeno sociohistórico e que a sociedade histórica foi e continua sendo uma sociedade de classes, a cultura se converte no principal instrumento da opressão de classe. Marx disse: “As ideias dominantes de uma época são essencialmente as ideias de sua classe dominante”. Isto também se aplica a toda cultura em seu conjunto. E, não obstante, dizemos à classe trabalhadora: assimila toda a cultura do passado, ou não construirás o socialismo. Como se explica isto?
Sobre esta contradição muita gente tropeçou, e se os tropeços são tão frequentes é porque se enfoca a concepção da sociedade de classes de forma superficial, semi-idealista, esquecendo que o fundamental dela é a organização da produção. Cada sociedade de classes foi constituída sobre determinados métodos de luta contra a natureza, e estes métodos foram se modificando acompanhando o desenvolvimento da técnica. O que está em primeiro lugar: a organização classista de uma sociedade ou suas forças produtivas? Sem dúvida, suas forças produtivas. É sobre elas que, dependendo de seu desenvolvimento, se modelam e remodelam as sociedades. Nas forças produtivas se expressa de forma material a habilidade econômica da humanidade, sua habilidade histórica, para se assegurar a existência. Sobre estes alicerces dinâmicos se levantam as classes que, em sua inter-relação, determinam o caráter da cultura.
E agora, antes de tudo, temos que perguntar a respeito da técnica: é ela apenas um instrumento de opressão de classe? Basta expor tal problema para que se responda imediatamente: Não; a técnica é a principal conquista da humanidade; embora até o momento haja servido como instrumento de exploração é, ao mesmo tempo, a condição fundamental para a emancipação dos explorados. A máquina esmaga ao escravo assalariado dentro de seu punho; mas o escravo somente pode se libertar através da máquina. Aqui está a raiz do problema.
Se não esquecermos que a força impulsora do processo histórico é o desenvolvimento das forças produtivas, liberando ao homem da dominação da natureza, então chegamos à conclusão que o proletariado necessita conhecer a totalidade dos conhecimentos e técnicas criadas pela humanidade no curso de sua história, para se elevar e reconstruir a vida sobre os princípios da solidariedade.
“É a cultura que Impulsiona a técnica ou é a técnica que impulsiona a cultura?”, coloca uma das perguntas que tenho escrita diante de mim. É errôneo colocar a questão de tal forma. A técnica não pode ser confrontada à cultura, já que constitui seu principal instrumento. Sem técnica não existe cultura. O desenvolvimento da técnica impulsiona a cultura. E a ciência ou a cultura geral, levantadas sobre a base da técnica, constituem, por sua vez, uma poderosa ajuda ao desenvolvimento posterior da técnica. Encontramo-nos ante uma interação dialética.
Camaradas, se quereis um exemplo simples, mas expressivo, das contradições contidas na própria técnica, não encontrareis outro melhor que o das ferrovias. Se vires os trens de passageiros da Europa ocidental, verificareis que têm vagões de diferentes “classes”. Estas classes nos trazem à memória as classes da sociedade capitalista. Os vagões de primeira são para os privilegiados círculos superiores; os de segunda, para a burguesia média; os de terceira, para a pequena burguesia e os de quarta, para o proletariado, que antigamente era chamado, com boas razões, de o Quarto Estado. Em si mesmo, as ferrovias supõem uma conquista técnico-cultural colossal para a humanidade e em somente um século transformaram a face da Terra. Mas a estrutura classista da sociedade também repercute na estrutura dos meios de comunicação; e nossas ferrovias soviéticas ainda estão muito longe da igualdade, não somente porque utilizam os vagões herdados do passado, como também porque a NEP prepara o caminho para igualdade, mas não a realiza.
Antes da época das linhas de ferro, a civilização se desenvolvia junto à costa dos mares e às margens dos grandes rios. A linha de ferro abriu continentes inteiros à cultura capitalista. Uma das principais causas, senão a principal, do atraso e da desolação do campo russo é a carência de linhas de ferro, rodovias e caminhos vicinais. Assim, as condições em que vivem a maioria das aldeias são ainda pré-capitalistas. Temos que vencer o que é nosso maior aliado e ao mesmo tempo nosso maior adversário: nossos grandes espaços. A economia socialista é uma economia planificada. A planificação supõe principalmente comunicação; e os meios de comunicação mais importantes são as rodovias e as linhas de ferro. Toda nova linha ferroviária é um caminho em direção à cultura, e em nossas condições também um caminho para o socialismo. Ademais, ao progredir a técnica das comunicações e a prosperidade do país, o entorno social de nossas linhas ferroviárias mudará: desaparecerá a separação em diferentes “classes”, todos poderão viajar em vagões confortáveis…, e isso se nesse momento as pessoas ainda viajarem de trem e não preferirem viajar de avião, quando este se tornar acessível a todos.
Tomemos outro exemplo: os instrumentos do militarismo, os meios de extermínio. Neste campo, a natureza classista da sociedade se expressa de modo particularmente candente e repulsivo. Contudo, não existe substância destrutiva (explosiva ou venenosa), cujo descobrimento não tenha sido em si mesmo uma importante conquista científica e técnica. As substâncias explosivas ou as venenosas também são usadas para fins criativos e abriram novas possibilidades no campo da investigação.
O proletariado somente pode tomar o poder quebrando a velha maquinaria do Estado classista. Levamos a cabo esta tarefa como ninguém o havia feito antes. Contudo, ao construir a maquinaria do novo Estado tivemos que utilizar, em grau bastante considerável, elementos do velho. A futura reconstrução socialista da maquinaria estatal está estreitamente ligada a nossas realizações políticas, econômicas e culturais.
Não devemos destroçar a técnica. O proletariado tomou posse das fábricas equipadas pela burguesia no mesmo estado em que a revolução as encontrou. O velho equipamento ainda nos serve. Este fato nos mostra de maneira gráfica e direta que não podemos renunciar à “herança”. No entanto, a velha técnica, no estado em que a encontramos, é completamente inadequada para o socialismo, ao constituir uma cristalização da anarquia da economia capitalista. A concorrência entre diferentes empresas na busca de lucros, a desigualdade do desenvolvimento entre os distintos setores da economia, o atraso de certos campos, a atomização da agricultura, a apropriação de força humana, tudo isso encontra na técnica uma expressão de ferro e bronze. Mas enquanto a maquinaria da opressão de classe pode ser destroçada por um golpe revolucionário, a maquinaria produtiva da anarquia capitalista somente pode ser reconstruída de forma gradual. O período de restauração com base no velho equipamento não fez mais que nos colocar no umbral desta enorme tarefa. Devemos completá-la custe o que custar.
A cultura espiritual é tão contraditória quanto a material. E se dos arsenais e dos armazéns da cultura material tomamos e colocamos em circulação não arcos e flechas, nem instrumentos de pedra, ou da Idade do Bronze, mas as ferramentas mais desenvolvidas e de técnica mais moderna que podemos dispor, no que se refere à cultura espiritual devemos agir da mesma forma.
O elemento fundamental da cultura da velha sociedade era a religião. Possuiu uma importância suprema como forma de conhecimento e unidade humana; mas, acima de tudo, nela se refletia a debilidade do homem frente à natureza e sua impotência dentro da sociedade. Nós rechaçamos totalmente a religião e todos os seus substitutos.
Com a filosofia, resulta diferente. Da filosofia criada pela sociedade de classes devemos tomar dois elementos inapreciáveis: o materialismo e a dialética. Graças à combinação orgânica de ambos, Marx criou seu método e erigiu seu sistema. E é este o método que sustenta o leninismo.
Se passarmos a examinar a ciência, no sentido estrito do termo, é óbvio que nos encontraremos ante uma enorme reserva de conhecimentos e técnicas acumuladas pela humanidade através de sua longa existência. É verdade que se pode mostrar que na ciência, cujo propósito é o conhecimento da realidade, há muitas adulterações tendenciosas de classe. Se até as linhas ferroviárias expressam a posição privilegiada de uns e a pobreza de outros, isto aparece ainda mais claro na ciência, cujo material é em grande parte mais flexível que o metal e a madeira de que estão feitos os vagões dos trens. Mas temos que reconhecer o fato de que o trabalho científico se alimenta fundamentalmente da necessidade de lograr o conhecimento da natureza.
Embora os interesses de classe tenham introduzido e ainda introduzam tendências falsas até nas ciências naturais, este processo de falsificação está restrito a certos limites além dos quais começaria a impedir diretamente o processo tecnológico. Se examinardes as ciências naturais de cima para baixo, desde a acumulação de fatos elementares até as generalizações mais elevadas e complexas, quanto mais próxima à matéria e aos fatos permanecerem, mais fidedignos são os resultados finais, e, pelo contrário, quanto mais amplas forem as generalizações e mais se aproximar a ciência natural à filosofia, mais sujeitas estão à influência dos interesses de classe.
As coisas são mais complicadas e difíceis ao nos aproximarmos às ciências sociais e às chamadas “humanidades”. Também nesta esfera, naturalmente, o fundamental é conseguir o conhecimento do que existe. Graças a este fato temos a brilhante escola dos economistas burgueses clássicos. Mas os interesses de classe, que atuam muito mais diretamente e com maior vigor no campo das ciências sociais que no das ciências naturais, logo frearam o desenvolvimento do pensamento econômico da sociedade burguesa. No entanto, neste campo os comunistas estamos mais bem equipados que em nenhum outro. Os teóricos socialistas, despertados pela luta operária, partiram da ciência burguesa para depois criticá-la, e criaram através dos trabalhos de Marx e Engels o potente método do materialismo histórico e a esplêndida aplicação deste método em O Capital. Isto não significa, naturalmente, que estejamos vacinados contra a influência das ideias burguesas no campo da economia e da sociologia. Em absoluto. A cada passo, as mais vulgares tendências do socialismo profissional e da pequena burguesia Narodniki puseram em circulação entre nós os velhos “tesouros” do conhecimento, aproveitando para infiltrar sua mercadoria nas deformadas e contraditórias relações da época de transição. Apesar de tudo, nesta esfera contamos com os critérios indispensáveis do marxismo verificados e enriquecidos pelas obras de Lênin. E rebateremos com mais vigor aos economistas e aos sociólogos vulgares se não fecharmos os olhos à experiência cotidiana e se considerarmos o desenvolvimento mundial como uma totalidade, sabendo extrair suas características fundamentais debaixo daquelas que não são mais que simples mudanças conjunturais.
Em geral, nos campos do direito, da moral ou da ideologia, a situação da ciência burguesa é ainda mais lamentável que no da economia. Para encontrar uma pérola de conhecimento autêntico nestas esferas é necessário rebuscar em dezenas de latrinas profissionais.
A dialética e o materialismo são os elementos básicos do conhecimento marxista do mundo. Mas isto não significa que possam ser aplicados a qualquer campo do conhecimento como se tratasse de uma chave mestra. A dialética não pode ser imposta aos fatos; deve ser deduzida deles, de sua natureza e desenvolvimento. Somente um consciencioso trabalho sobre uma massa de materiais possibilitou a Marx aplicar o sistema dialético à economia e extrair a concepção do valor como trabalho social. Marx construiu da mesma forma suas obras históricas e mesmo seus artigos jornalísticos. O materialismo dialético só pode ser aplicado a novas esferas do conhecimento se nos situarmos dentro delas. Para superar a ciência burguesa é preciso conhecê-la a fundo; e não chegarás a nenhuma parte com críticas superficiais mediante ordens vazias. O aprender e o aplicar caminham lado a lado com a análise crítica. Temos o método, mas o trabalho a realizar é tarefa para várias gerações.
A crítica marxista da ciência deve ser vigilante e prudente, doutra forma poderia degenerar em nova charlatanice, em famusovismo [1]. Tomem a psicologia; mesmo a reflexologia de Pavlov está completamente dentro dos canais do materialismo dialético; rompe definitivamente a barreira existente entre a fisiologia e a psicologia. O reflexo mais simples é fisiológico, mas um sistema de reflexos é o que nos dá a “consciência”. A acumulação da quantidade fisiológica dá uma nova quantidade “psicológica”. O método da escola de Pavlov é experimental e consciencioso. Pouco a pouco vai se avançando nas generalizações: desde a saliva dos cães à poesia – aos mecanismos mentais da poesia, não ao seu conteúdo social –, mesmo quando os caminhos que nos conduzem à poesia ainda não tenham sido desvelados.
A escola do psicanalista vienense Freud procede de forma diferente. Dá por sentado que a força impulsora dos processos psíquicos mais complexos e delicados é uma necessidade fisiológica. Neste sentido geral, é materialista, mesmo a questão de não se dar demasiada importância à problemática sexual em detrimento de outras já é uma disputa dentro das fronteiras do materialismo. Mas o psicanalista não se aproxima ao problema da consciência de forma experimental, ou seja, indo do fenômeno mais baixo ao mais elevado, do reflexo mais simples ao mais complexo, mas trata de superar todas estas fases intermediárias de um salto, de cima para baixo, do mito religioso ao poema lírico ou do sonho aos fundamentos psicológicos da psique.
Os idealistas nos dizem que a psique é uma entidade independente, que a “alma” é um poço sem fundo. Tanto Pavlov quanto Freud pensam que o fundo pertence à fisiologia. Mas Pavlov desce ao fundo do poço como um escafandrista e investiga laboriosamente, subindo pouco a pouco à superfície, enquanto que Freud permanece junto ao poço e trata de captar, com mirada penetrante, a forma dos objetos que estão no fundo. O método de Pavlov é experimental; o de Freud está baseado em conjecturas, às vezes em conjecturas fantásticas. A tentativa de declarar o psicanalista “incompatível” com o marxismo e voltar às costas a Freud é demasiado simples, ou, mais exatamente, demasiado simplista. Não se trata de que estejamos obrigados a adotar o seu método, mas há que se reconhecer que é uma hipótese de trabalho que pode produzir e produz sem dúvida deduções e conjecturas que se mantêm dentro das linhas da psicologia materialista. Dentro de seu próprio método, o procedimento experimental facilitaria as provas para estas conjecturas. Mas não temos nem motivo nem direito de proibir o outro método, visto que, mesmo o considerando menos digno de confiança, trata de antecipar a conclusão à qual o método experimental se aproxima muito lentamente.
Por meio destes exemplos queria mostrar, embora somente de forma parcial, tanto a complexidade de nossa herança científica quanto a complexidade dos caminhos pelos quais o proletariado há de avançar para se apropriar dela. Se não podemos resolver por decreto os problemas da construção econômica e temos que “aprender a negociar”, da mesma forma tampouco pode resolver nada no campo científico a publicação de ordens breves; com elas somente conseguiríamos fazer estragos e manter a ignorância. O que necessitamos neste campo é “aprender a aprender”.
A arte é uma das formas mediante as quais o homem se situa no mundo; neste sentido o legado artístico não se diferencia do científico ou do técnico, e não é menos contraditório que eles. Contudo, a arte, diferentemente da ciência, é uma forma de conhecimento do mundo, não um sistema de leis, mas um conjunto de imagens e, por sua vez, uma maneira de criar certos sentimentos ou atividades. A arte dos séculos passados tornou o homem mais complexo e flexível, elevou sua mentalidade a um grau superior e o enriqueceu em todos os sentidos. Este enriquecimento constitui uma preciosa conquista cultural. O conhecimento da arte do passado é, portanto, uma condição necessária tanto para a criação de novas obras artísticas como para a construção de uma nova sociedade, uma vez que o comunismo necessita de pessoas de mente muito desenvolvida. Mas pode a arte do passado nos enriquecer com um conhecimento artístico do mundo? Pode precisamente porque é capaz de nutrir nossos sentimentos e educá-los. Se repudiarmos a arte do passado de forma infundada, empobreceríamos espiritualmente.
Hoje em dia se adverte uma tendência de se defender a ideia de que o único propósito da arte é a inspiração de certos estados de ânimo e, de forma alguma, o conhecimento da realidade. A conclusão que se extrai disso é: com que classe de sentimentos nos contagiará a arte da nobreza ou da burguesia? Esta concepção é radicalmente falsa. O significado da arte como meio de conhecimento – também para a massa popular e, inclusive, especialmente para ela – é muito superior ao seu significado “sentimental”. A velha épica, a fábula, a canção, os relatos ou a música popular proporcionam um tipo de conhecimento gráfico, iluminam o passado, dão um valor geral à experiência e somente em conexão com eles e, graças a esta conexão, podemo-nos “sintonizar”. Isto também se aplica a toda literatura em geral, não somente à poesia épica, como também à lírica. Aplica-se à pintura e à escultura. A única exceção, em certo nível, é a música, uma vez que seu efeito, embora poderoso, resulta parcial. Também a música, naturalmente, proporciona um determinado conhecimento da natureza, de seus sons e ritmos; mas, aqui, o conhecimento jaz tão soterrado, os resultados da inspiração da natureza são refratados em tal grau através dos nervos da pessoa, que a música aparece como uma “revelação” autossuficiente. Frequentemente se fizeram tentativas de aproximar o restante das formas artísticas à música, considerando esta com a arte mais “contagiante”, mas isto sempre significou uma depreciação do papel da inteligência na arte, a favor de uma sentimentalidade informe, e nesta arte estas tentativas foram e são reacionárias. Naturalmente, o pior de tudo são aquelas obras de “arte” que nem oferecem conhecimentos gráficos nem “contágio” artístico, mas pretensões desorbitadas. Em nosso país se imprimem não poucas obras de arte deste tipo, e infelizmente não nos livros de texto de arte, mas em milhares de cópias…
A cultura é um fenômeno social. Precisamente por isso a linguagem, como órgão de intercomunicação entre os homens, é um instrumento da maior importância. A cultura da própria linguagem é a condição mais importante para o desenvolvimento de todos os ramos da cultura, particularmente a ciência e a arte. Da mesma forma que a técnica não está satisfeita com os velhos aparatos de medição e cria outros novos, micrômetros, voltímetros…, tratando de obter e obtendo maior precisão, assim em matéria de linguagem, da capacidade para escolher as palavras adequadas e combiná-las da forma adequada, se requer um trabalho sistemático e tenaz para conseguir o maior grau de precisão, claridade e intensidade. A base deste trabalho deve ser a luta contra o analfabetismo, do semianalfabetíssimo e do alfabetismo rudimentar. O próximo passo será a assimilação da literatura clássica russa.
Sim, a cultura foi o principal instrumento da opressão de classe; mas também é, e somente ela o pode ser, o instrumento da emancipação socialista.
[1] Famusov, personagem de teatro pequeno-burguês e pedante.
Este texto foi publicado pela primeira vez em 1926-27
Traduzido por Fabiano Adalberto