Artigo com um balanço do movimento de ocupações e mobilizações desencadeado com a extinção do Ministério da Cultura (MinC), que alcançou a reativação da pasta.
Mal assumiu o cargo de presidente interino, Michel Temer promoveu, como um de seus primeiros ataques, a extinção do Ministério da Cultura (MinC), vinculando-o novamente à pasta da Educação como na época dos militares. Essa ação desencadeou uma grande mobilização por parte dos trabalhadores da cultura de todo o país, que utilizaram amplamente as mídias sociais, manifestações de rua, escrachos públicos e, no auge da radicalização, ocupações de prédios públicos ligados ao MinC, como as FUNARTEs em São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, o Palácio Gustavo Capanema no Rio, as Fábricas de Cultura de São Paulo e as sedes do IPHAN, no Ceará, Pernambuco e no Paraná. O movimento – que contou também com a participação e apoio de nomes famosos como Chico Buarque, Marieta Severo, Arnaldo Antunes, Otto, Caetano Veloso entre outros – somado a pressões dentro do próprio Congresso Nacional, em menos de uma semana, obrigou o governo interino a recuar e a restituir o ministério.
Sem dúvida foi uma importante vitória do movimento, que desvelou a grande fragilidade da gestão Temer e lhe criou precedentes funestos; um governo que cede desta maneira, em seus primeiros dias, tende a ser pressionado cada vez mais. As ocupações dos equipamentos ligados ao MinC, ainda continuam, embora tenham perdido o fôlego com o ressurgimento às pressas da pasta. A existência de um ministério que cuide exclusivamente da área da cultura é de fato importante, entretanto se faz necessária uma análise honesta de qual foi o seu papel e dos problemas de suas principais políticas, desde seu surgimento até aqui, para muito além da justa luta pelo “Fora Temer” e do esforço de alguns setores deste movimento de trabalhadores da cultura, de reduzi-lo à defesa de Dilma, Lula e do Partido dos Trabalhadores. A partir da análise real dos limites das políticas instituídas pelo MinC, é que poderemos traçar políticas públicas de cultura universais e de interesse social.
O MinC e a Privatização da Cultura:
O Ministério da Cultura surge no processo da queda da Ditadura Militar no Brasil, como resultado da grande mobilização operária que se inicia ao final dos anos 70 que empurra a burguesia a recorrer à abertura política, cedendo alguns de seus anéis para não perder seus próprios dedos. No dia 15 de março de 1985, o ministério foi apartado da pasta da Educação pelo então presidente Sarney, da qual era satélite desde o governo Vargas em 1953. O MinC ficaria responsável, a partir daqui, pelas letras, artes, folclore e outras formas de expressão da cultura nacional e pelo patrimônio histórico, arqueológico, artístico e cultural do Brasil. A criação deste novo aparato não trouxe nenhuma nova política pública para a área e apenas dava sequência às políticas insuficientes do antigo MEC, (Ministério da Educação e Cultura). Isso se deve principalmente à baixíssima dotação orçamentária, (verba prevista como despesa em orçamentos públicos e destinada a fins específicos) da pasta, quase toda comprometida com seu funcionamento administrativo. Em 2 de julho de 1986 é criada a Lei Sarney (Lei 7.505/86), que até 1990 permitiu abater do Imposto de Renda: 100% de doações, 80% de patrocínios e 50% de investimentos em cultura. Esta lei seria reformada na Lei Rouanet (Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991) durante o governo Collor, que extinguiu através de medida provisória órgãos da administração direta e indireta: EMBRAFILME, IBAC (Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural), IBPC (Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultura), Biblioteca Nacional, entre outros institutos e autarquias (MP Nº 151 de 1990) e o MinC (MP Nº 150 de 1990), tornando-o apêndice do MEC novamente. Com a Lei Rouanet, surgiram três formas possíveis de incentivo à cultura no país: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) e o Incentivo a Projetos Culturais por meio de renúncia fiscal (Mecenato).
A renúncia fiscal (quando a iniciativa privada investe e patrocina projetos culturais em troca do não pagamento de imposto ao governo) tornou-se a peça chave na engrenagem política do ministério desde então. No lugar de recolher essas grandes somas de dinheiro, das quais parte deveria ser investida em cultura – como por exemplo, na ampliação de editais por aplicação direta do Estado de recursos no fomento de todas as iniciativas culturais – o governo passou a permitir que os gerentes de marketing das grandes empresas privadas decidam qual projeto cultural, espetáculo de artes cênicas, de música, festival de arte, filme ou exposição, devem ser financiados. Isso permitiu o surgimento de institutos e fundações culturais que levam os nomes de grandes bancos privados ou de grandes empresas, que promovem ações culturais adequadas aos seus interesses, além de beneficiarem-se da ampla divulgação de seus produtos e marcas neste processo. Trata-se da promoção do marketing de grandes bancos e grandes meios de produção privados, feita com dinheiro de impostos que a União deixa de arrecadar ao mesmo tempo que destina menos de 1% do total de seu orçamento para a Cultura. No último ano, o valor correspondia a 0,38% do orçamento federal.
Lula, defendido por alguns setores dentro dessas recentes ocupações, criou em seu mandato o PROFIC (Programa de Fomento e Incentivo à Cultura), que trazia algumas modificações, mas mantinha toda a engrenagem da renúncia fiscal. Este mecanismo diminuía a injeção de dinheiro público nos departamentos de marketing dos bancos e grandes empresas e criava algumas normas moralizadoras, maquiando assim as engrenagens de funcionamento das leis de incentivo à cultura, mas sem nenhum real esforço para acabar com elas. Uma possível restituição do mandato de Dilma, ou uma futura volta de Lula à presidência, só iriam representar a sequência dessa política privatista e ineficaz. Em treze anos, os governos do PT nada fizeram de significativo em relação às políticas públicas voltadas para a cultura, a não ser pintar com novas cores o velho modus operandi, por isso não se deve engessar as constantes mobilizações com um eixo de luta em sua defesa. Anteriormente, o governo petista havia utilizado a estrutura do MinC para testar o modelo tripartite (Estado/Patronato/Representantes dos Trabalhadores) de discussão e produção de normas, com a implantação das Câmaras Setoriais de Cultura, que mantinham classes distintas juntas para discutir seus interesses em um falso “pé de igualdade”, enquanto que dividia a categoria de trabalhadores da cultura, em subcategorias de “modalidades artísticas” (artes plásticas, teatro, cinema, música, etc.), como se os interesses dos trabalhadores dessas áreas fossem contraditórios entre si. A tramitação do PROFIC foi barrada pela atuação organizada de trabalhadores da cultura de São Paulo, que ocuparam a sede paulista da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes) em 2009. Essa forma de luta inspirou certamente as novas ocupações que ocorreram em 2013. O MinC então formulou o PROCULTURA, desmembrando o PROFIC em outros projetos de lei mais urgentes, uma vez que sua ênfase na “cadeia produtiva” e “economia criativa” desnudavam a mesma política geral do governo do PT, também para as artes: favorecimento do grande Capital por um lado, assistencialismo do outro.
O novo ministro, empossado às pressas por Temer, Marcelo Calero, fez críticas à Lei Rouanet e a outros mecanismos de financiamento privado. Segundo ele mesmo, a lei “já é muito antiga, então o momento agora é realmente de poder fazer uma ampla revisão”. Para ele, o momento é de “pegar essas diversas matizes e tratar de harmonizá-las da melhor forma possível, entender os prós e contras, de maneira a aprimorar os mecanismos de financiamento da cultura”. A bonita e vazia fala do ministro à imprensa, a natureza desse novo governo e de seus representados, sugerem o aprofundamento, sob outras formas, da privatização da Cultura. Recentemente a Operação Lava-jato, apontou seus canhões para os cem maiores projetos aprovados pela Lei Rouanet com um pedido de CPI, mirando possivelmente artistas e instituições ligadas ao antigo governo, buscando assim criminalizá-los. Essa comissão parlamentar não deve seguir adiante, pois entre esses “100 Maiores da Lei Rouanet” estão fundações e institutos ligados ao PSDB, PMDB e às Organizações Globo. Sérgio Moro, como bom serviçal, engavetou o caso. O próprio Calero, em entrevista à BBC Brasil, criticou a CPI, dizendo que a “lei merece críticas, mas não pode ser satanizada” e ainda a defendeu como “um instrumento que tem se revelado o principal financiador da cultura no país”. Tudo indica que “quem está pagando a banda continuará a escolher a música”. Desde Sarney, passando por Collor, Lula e Dilma a coisa se manteve assim, com mudanças irrelevantes e, se depender de Temer, pode piorar.
O reflexo dessa política, nas esferas estaduais e municipais, está no crescimento de convênios dos governos regionais com as OSs (Organizações Sociais) e criação de fundações para a gestão dos equipamentos públicos de cultura. Parte do dinheiro utilizado nessas gestões, vêm direto do parco orçamento dos municípios e estados destinado à Cultura; a outra parte é captada junto à empresas privadas através do velho esquema da renúncia fiscal, sob as bênçãos do MinC. Além de gerar muito mais custos para a máquina pública, essas gestões têm um largo histórico de sucateamento dos equipamentos e precarização dos contratos de trabalho dos funcionários, onde o acordado supera o legislado, e para além disso, terceirizam as responsabilidades desses governos no que tange ao trato da coisa pública. Com o aprofundamento da crise econômica mundial e a aplicação das medidas de austeridade, os primeiros cortes de verba são feitos na área da cultura, e a consequência disso é simplesmente o fechamento de vários desses equipamentos; as OS e fundações, sem dinheiro para cumprir seus contratos de gestão, cerram as portas e demitem em massa. O estado responde com promessas de investigar possíveis erros ou irregularidades nas gestões, promete reabrir “assim que possível” os equipamentos e tudo fica por isso mesmo. Essa experiência macabra, que serve aos interesses privatistas, já é reproduzida na área da saúde e já é sinalizada sua aplicação, de forma ampla, na Educação.
Este é o eterno círculo vicioso do qual as classes dominantes se servem para nos impor uma arte e cultura, embebidas na sua ideologia. Enquanto isso, artistas independentes de pequenos grupos de teatro, dança, produtoras de filme ou grupos musicais, que não têm estrutura para se adequar às regras do jogo, penam no baixo circuito independente pelo país, sujeitos a péssimos pagamentos – quando são pagos! – e ao constante desemprego. Diante da impossibilidade concreta de viver da sua arte, muitos vão seguir outras carreiras. A impossibilidade material de criar com independência leva ao rebaixamento estético da produção geral, enquadrada em forma que confira público quantitativo às marcas patrocinadoras. Toda arte que busque alguma expressão ou problematização, que desenvolva minimamente o produto estético, fica impedida de circular, principalmente os trabalhos que necessitam de maior mediação de tempo para seu desenvolvimento, impedindo que a maior parte da população possa se apropriar do patrimônio artístico e cultural ou mesmo de ter contato com ele e tomar conhecimento de sua existência.
Por uma arte e cultura revolucionárias:
Nós marxistas, não enxergamos a arte como uma questão menor. Reconhecemos que as classes dominantes e o imperialismo, entre outros de seus métodos, se apropriam da arte, não somente como veículo transmissor de sua ideologia ao difundi-la nos meios de comunicação de massa, mas também como negando às classes subalternas as maiores criações e conquistas das áreas artísticas e científicas, visando assim amansar e acabrestar com mais facilidade as classes exploradas, brutalizando-as, dessensibilizando-as, impedindo seu crescimento humano e desenvolvimento cognitivo pleno: colonizando seus sentidos e razão, mutilando-os enquanto seres humanos. Permitir que o sujeito supere seus limites, afim de se tornar plenamente humano em toda sua potencialidade: esse é o real caráter revolucionário e inspirador que a arte tem; o papel de educar e formar enquanto arte que ela cumpre dentro das grandes lutas da nossa classe. Entendemos que todo ser humano pode se expressar através das mais variadas linguagens artísticas; o que lhes falta é o acesso às técnicas e meios materiais necessários para isso. Temos a plena convicção que inúmeros grandes artistas surgirão – ainda mais em um país de ampla diversidade como o Brasil – com o desenvolvimento de políticas de estado que ofereçam pleno acesso aos conhecimentos e meios necessários para produção e circulação da arte. É necessário que se compreenda que o completo acesso à cultura, um acesso universal e democrático, não se dará dentro do sistema capitalista. Nem os governos de conciliação de classe, muito menos os exclusivamente burgueses, podem isso nos oferecer! Trotsky nos ensina que “a revolução conquistará a todos o direito, não somente ao pão, mas também à poesia”. Nem por isso devemos esmorecer a luta para conquistar políticas positivas e investimento direto do Estado, financiando diretamente equipamentos de cultura e corpos estáveis, mantendo-lhes autonomia criadora. Se faz urgente a aliança entre todos os trabalhadores da cultura de todas as linguagens e áreas de atuação, em torno de suas reivindicações mais sentidas; em pé de igualdade, onde a voz do diretor, ator ou cineasta consagrados não supere a voz do contrarregra, ou do iluminador; essa unidade da categoria é o primeiro passo para a unidade maior que conquistará a universalidade da arte enquanto direito social: a unidade na luta, ombro a ombro, com todo o conjunto da juventude e da classe trabalhadora, pela derrubada definitiva desse sistema moribundo.
Nesse sentido, reafirmamos nossas bandeiras:
– Abaixo a Privatização da Cultura! Pelo fim da Lei Rouanet e das leis de incentivo fiscal! Pelo investimento direto do Estado no fomento à arte e cultura!
– Pela Organização Independente dos trabalhadores da cultura! Não às Câmaras Setoriais Tripartites e aos Conselhos de Cultura Tripartites!
– Arte e Cultura, públicas, gratuitas e para todos!
– Fora Temer e o Congresso Nacional!
– Por uma Assembleia Nacional Constituinte! Por um governo dos trabalhadores!