Os números de contaminados e mortos pelo coronavírus crescem, o país volta a ultrapassar o patamar de mil mortes por dia. Enquanto isso, o ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo, pergunta: “para que essa ansiedade, angústia” por um plano de vacinação? Já o seu chefe, Bolsonaro, declara que não vai tomar a vacina e que isso é “problema meu”.
O que as polêmicas declarações tentam encobrir é a incapacidade do governo em garantir a vacina para toda a população, mesmo durante todo o próximo ano. O Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, lançado oficialmente no dia 16/12, não prevê quando começará a vacinação, apesar de países como o Reino Unido, EUA e Canadá já terem começado a imunização. O governo não se preparou e não há estrutura suficiente no Brasil para armazenamento e distribuição da vacina já utilizada em outros países, da Pfizer/BioNTech, que precisa ser conservada a 75 graus negativos. Há atraso até mesmo para a aquisição de seringas e agulhas para aplicação.
Com pesquisadores, sindicatos e a maioria da própria burguesia criticando o plano, poderíamos imaginar que na “esquerda” a crítica seria ainda mais dura. Entretanto, o governador do Piauí, Wellington Dias, do PT, elogiou a primeira versão do plano, divulgada no dia 12 de dezembro, que era ainda mais limitada.
Também no dia 12, a Folha de S. Paulo publicou um editorial furioso contra Jair Bolsonaro, chamando a atitude do presidente, diante da pandemia, de “estupidez assassina”, entre uma série de outras ofensas. O texto intitulado “Vacinação já” conclui que a imunização de todos é a questão mais importante para se resolver no atual momento.
A Folha, órgão da imprensa burguesa, obviamente não está preocupada com o bem estar da população. A preocupação da Folha é com a economia, com os lucros da classe dominante, e revela o descontentamento da própria burguesia com a incompetência do atual governo em tratar de uma questão decisiva.
No dia seguinte (13), o professor universitário e dirigente do PSOL, Gilberto Maringoni, publicou em sua página do Facebook uma saudação ao editorial, mesmo explicando que não devemos “jamais esquecer com quem estamos lidando”.
Maringoni justifica sua saudação explicando que “É muito positivo que a Folha de S. Paulo tenha publicado hoje um violento editorial de capa contra Bolsonaro e sua malta” porque “Como se diz entre a esquerda, ajuda na luta”.
Se há algum aspecto positivo na reação da Folha de S. Paulo, é a evidente ruptura da burguesia em distintas frações. São sinais de que os de cima não conseguem governar como antes. Divisões e conflitos na cúpula são um terreno melhor para o avanço da luta do proletariado. Porém não se trata, para os revolucionários, de saudar uma das frações burguesas desta disputa.
O editorial pressiona o governo, mas em nenhum momento coloca em questão sua permanência até 2022. A burguesia teme as forças, o ânimo de combate das massas que pode desatar se o odiado governo cai agora. A Folha chama então Bolsonaro à responsabilidade: “chega de molecagem com a vacina”! Em outro momento, o editorial diz que “sua cruzada [de Bolsonaro] irresponsável contra o governador João Doria esbulhou a confiança dos brasileiros na vacina”. Citar uma das opções eleitorais burguesas para 2022, como contraponto a Bolsonaro, não se dá por acaso.
A Folha diz ainda que a vacinação começou em “nações cujos líderes se comportam à altura do desafio”. EUA ainda com Trump, Reino Unido com Boris Johnson, seriam estes os exemplos de líderes para a Folha?
Nenhum governante burguês no mundo, nem Doria em São Paulo, são exemplos de combate à pandemia. O estado de São Paulo, governado por Doria, fechou alguns comércios e, apressadamente, flexibilizou as medidas de distanciamento para satisfazer os empresários, a grande maioria da população continuou trabalhando durante toda a pandemia em serviços não essenciais, o transporte coletivo teve sua frota reduzida, o que resultou em aglomerações. A grande diferença entre os “rivais” Doria e Bolsonaro está no discurso: um moderado e outro radical. Doria reúne, com sua figura, a camada da burguesia que teme a explosão social gerada a partir dos discursos desastrosos do presidente, mas que defende o seu programa de ataques aos trabalhadores, cortes e privatizações.
Saudar esse editorial, mesmo com ressalvas sobre “o lugar de fala” da Folha, não deixa de sinalizar aquilo que muitos candidatos, ditos de “esquerda”, fizeram na eleição deste ano: a busca por alianças com setores da burguesia para combater o suposto mal maior, Bolsonaro e sua ameaça à democracia com uma ditadura totalitária. Um espantalho levantado para justificar todo tipo de adaptação à democracia burguesa e à conciliação de classes.
Para conseguir a vacina para todos já, é preciso pôr abaixo o governo responsável pelas mais de 180 mil mortes pela Covid-19, que é também o responsável pelas vidas perdidas pela fome, pelos assassinatos de jovens e trabalhadores dos bairros proletários, na sua maioria negros etc. É preciso combater este sistema que coloca o lucro acima das vidas, inclusive o lucro das grandes farmacêuticas que vão ganhar muito dinheiro público com a compra das vacinas. Esse combate só pode ser vitorioso com independência de classe.
A Folha e parte da burguesia, além de reivindicarem a vacinação massiva para tentar dar novo impulso à economia, temem uma reação das massas diante de uma situação em que o mundo é vacinado e o Brasil não.
É preciso saber diferenciar a posição de um jornal burguês do nível da Folha. Se defender a vacinação para todos é correto, a intenção de uma declaração dessa precisa ser exposta na totalidade, e não devemos simplesmente saudá-la – seja com quatro ou vinte pés atrás. Se há um significado em uma declaração da burguesia sobre uma questão tão séria que é a vacina para a Covid-19, não devemos esquecer que também há sentido em uma saudação da “esquerda”: é que ela está dando passos cada vez mais para a direita.