“Nunca se contaram os mortos da Revolta da Vacina. Nem seria possível, pois muitos, como veremos, foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos.”
A frase acima abre a introdução do livro de Nicolau Sevcenko, A Revolta da Vacina. A primeira frase já nos provoca o desejo de conhecer todo o resgate histórico feito pelo autor.
No último período, desde a chegada de Bolsonaro e seus comparsas na cena política, algumas discussões, aparentemente simplórias, precisam ser retomadas, desde a terra plana até a necessidade de tomar vacina, mas é importante sabermos de onde vem este medo popular, aparentemente ingênuo, a gênese histórica que leva as camadas mais desprovidas da sociedade a terem, ainda hoje, um medo latente das campanhas de vacinação.
Quando chegou à Livraria Marxista este título, imediatamente tive o impulso de adquiri-lo. O impulso estava totalmente correto, a obra, apesar do nome, não foi um simples combate ingênuo contra a vacinação da população como se costuma aprender na escola, mas sim um combate histórico, de classe, da classe trabalhadora contra burguesia (enquanto classe organizada) que se desenvolvia no Rio de Janeiro. Uma grande revolta popular que transformou o centro do Rio em novembro de 1904 em um palco de guerra, como está registrado na citação do Jornal do Comércio em uma das bibliografias usadas por Sevcenko: “Os bondes eram virados, arrebentados e incendiados uns, atravessados outros ao longo da rua para servirem de trincheiras.” Do outro lado todas as forças de repressão do Estado brasileiro foram utilizadas para sufocar em sangue, medo, morte os acontecimentos de 1904.
O livro é dividido em quatro partes. A primeira traz o relato cronológico dos dias do confronto, detalhes muito bem ilustrados com bibliografias pautadas em jornais e literatura da época. A segunda traz os aspectos conjunturais que apresentam os reais motivos que deram origem aqueles acontecimentos, desde o fim da escravidão ou da tardia e débil república que nascia até a negociação da dívida pública, entrega de nosso patrimônio aos credores internacionais, até o processo de queima de papel-moeda, política que resultou numa crise econômica brutal “dispensa maciça de funcionários e operários, suspensão de serviços e de pagamentos, criação de novos impostos e majoração dos existentes. Surgiram, assim, os impostos de consumo e do selo, que aumentaram drasticamente os custos de subsistência, atingindo em cheio a população mais pobre, já duramente castigada pelo desemprego e pela retração financeira.”
O quarto capítulo destina-se a explicar o processo de segregação que foi planejado pelo então governo de Rodrigues Alvez e seus assessores, como Oswaldo Cruz que em 1903 assume a direção da Saúde Pública e vai coordenar o processo de “higienização” do Rio de Janeiro à bala. A justificativa aos crimes atrozes cometidos foi tão somente a necessidade de modernizar o centro do Rio e “erradicar” as doenças. Para isso, seriam criadas leis que permitiriam a derrubada de barracos, a “vacinação” forçada e a prisão de quem se recusasse a aceitar.
O quinto capítulo é o que mostra o tamanho da repressão, humilhação e tortura a que estiveram submetidos aqueles trabalhadores, antes, durante e anos depois da revolta. Muitos dos condenados foram levados aos “navios-prisões” e transportados como nos extintos navios negreiros para lugares que necessitava mão de obra escrava como, por exemplo, o Acre. Os que não morreram no transporte foram levados ao trabalho forçado e esquecidos pela história. Outros eram recolhidos pelas casas de detenção e marcados. Em 1905, Rodrigues Alves declarou “os indivíduos recolhidos à casa de detenção devem ser vacinados e revacinados“, Nicolau explica que a vacina e a chibata passaram a ser a marca dos oprimidos e que para o algoz Rodrigo Alves essa uma ironia que significava extirpar os germes da revolta e os vírus da epidemia.
O livro, apesar de feito em pouco mais de cem páginas, é denso em seu conteúdo, com uma vasta bibliografia, nos leva a conhecer figuras emblemáticas, das quais deveríamos ter orgulho, como símbolo da luta dos trabalhadores, mas que nem ao menos a conhecemos, como Horácio José da Silva, o Prata Preto, um dos líderes da luta popular, lutou até o último minuto e foi preciso cinco homens da polícia e do exército para contê-lo. Por outro lado, a narrativa passa a limpo nomes como de Oswaldo Cruz, o “ilustre” membro da Academia Brasileira de Letras responsável por levar a cabo a política de “higienização” do Rio, o homem que pessoalmente tomou todas as medidas para que novembro de 1904 acabasse em um banho de sangue.
O livro nos dá a certeza de que conhecer a história é fundamental para que compreendamos também o nosso papel na história. Há muito mais que poderia se recordar num incentivo a conhecer a obra, o motim militar e a confraternização em praça com os insurgentes, a divisão da burguesia, a composição do parlamento, a origem das ocupações dos morros do Rio, o ambiente deplorável em que viviam milhares de trabalhadores, as importantes citações do escritor Lima Barreto, mas isso é tarefa da própria leitura do texto.
Fica o convite à aquisição, à leitura imediata da presente obra. Nicolau Sevcenko é um dos importantes nomes dos historiadores brasileiros, encerro com a própria voz do autor: “Até que ponto um homem suporta ser espezinhado, desprezado e assustado? Quanto sofrimento é preciso para que um homem se atreva a encarar a morte sem medo?”
A Revolta da Vacina é uma publicação da Editora Unesp e está à venda na Livraria Marxista pelo valor de R$ 28,00.