Na manhã de 1º de fevereiro, pouco antes de imagens da rede de TV Al Jazeera mostrarem 2 milhões de egípcios em comício no centro do Cairo, o camarada Alan Woods escrevia as linhas que seguem, com uma análise marxista ácida e perspicaz.
A Grande Pirâmide de Gizé já dura há 3.800 anos. Hosni Mubarak, há um pouco menos que isso, mas ele gostaria de sobreviver mais um pouco. A diferença entre a Pirâmide de Quéops e o regime de Mubarak é que este é uma pirâmide invertida. Toda a sua força está no topo, mas há apenas um ponto minúsculo na ponta. As leis da gravidade e da arquitetura nos dizem que uma estrutura desse tipo é instável por essência. O menor empurrão pode trazer tudo abaixo.
Todo o Egito está agora em um equilíbrio precário. Essa mesma precariedade se aplica ao papel das forças armadas, o único apoio que resta ao regime. No papel é uma força formidável, tão sólida como a pirâmide mencionada acima. Mas os exércitos são compostos por seres humanos e por isso estão sujeitos às mesmas pressões que qualquer outro estrato social ou instituição.
Os manifestantes esperam a cada minuto que o presidente dê a ordem para que o Exército disperse a multidão. “Os soldados não estão aqui pelo povo, eles estão aqui pelo presidente”, disse um homem de meia-idade. Enquanto a escuridão caía, o forte zumbido de helicópteros militares voltaram a ser ouvidos acima da praça central do Cairo. Apesar disso, os rebeldes continuaram a cantar furiosamente exigindo a renúncia do presidente Hosni Mubarak, alguns empunhando a bandeira egípcia. Jatos da Força Aérea fizeram vários rasantes sobre suas cabeças. Mas as tropas em terra não fizeram nenhuma tentativa para interromper os protestos.
Os tanques na praça Tahrir deveriam servir para intimidar os manifestantes. Mas eles foram imediatamente cercados por uma massa humana que os impediu de avançar. Tem ocorrido demonstrações de solidariedade com os manifestantes que dividiam a sua comida com os soldados e em um caso, carregaram um jovem oficial sobre os seus ombros. Quanto mais tempo o exército estiver em contato com as massas revolucionárias, maior será o efeito e mais difícil será para usá-lo para esmagar a revolução.
A exibição de poderio militar era para ter um efeito psicológico sobre as dezenas de milhares de manifestantes reunidos na praça Tahrir. No entanto, os tanques não conseguiram parar os protestos. Mubarak, um ex-oficial da Força Aérea, concluiu que aviões de combate podem obter melhores resultados, pois é difícil confraternizar com um piloto voando no alto. Ontem, caças voaram baixo sobre os manifestantes em uma tentativa de causar pânico. Da mesma forma como eles tinham rapidamente assimilado a presença de tanques nas ruas, os manifestantes não se amedrontaram.
Em vez de medo, no entanto, esse gesto de intimidação causou raiva. “Olha! Eles estão enviando a Força Aérea contra nós! A partir deste momento não temos presidente. Vamos nos livrar de Mubarak ou vamos morrer aqui!” – foi a reação de um manifestante. “No começo, fiquei assustada com o som dos aviões, mas agora é como se eu estivesse ouvindo música”, comentou uma estudante que tinha saído para protestar pela primeira vez. “Está tudo bem, eles não vão nos matar”, disse ela, em seguida, acrescentou, “apesar de que algumas pessoas dizem que o presidente seria capaz de matar todo o país só para se manter no poder”.
Em uma revolução, como em uma guerra, o tempo é essencial. O mesmo é verdadeiro em uma contra-revolução. Uma ação decisiva é necessária para que a ordem seja imposta pela força das armas. Mas aqui não há uma ação decisiva, apenas prevaricação, hesitação e indecisão. Mubarak está ferido e ainda com medo de atacar. Essa é uma receita tiro e queda para minar qualquer autoridade que ainda lhe resta. Maquiavel disse que era melhor para um governante ser temido do que amado. Há Apenas uma semana, Mubarak não era amado, mas era temido. Agora, ele é tratado com desprezo. Ele perdeu a iniciativa e será impossível recuperá-la.
Greve geral
É óbvio que a sociedade não pode continuar assim. Ou a velha ordem vai voltar a impor a sua autoridade – uma perspectiva que está se tornando cada vez mais improvável – ou as massas vão impor uma nova ordem. Fala-se de uma greve geral. Grupos de manifestantes acamparam na capital durante a noite, decididos a não sair até que Hosni Mubarak se vá. A dinâmica do movimento continua a crescer à medida que escrevemos estas linhas. Milhares se manifestaram no fim de semana em Alexandria e houve também manifestações de maior dimensão em Mansoura, Damanhour e Suez.
Multidões se formam novamente na Praça Tahrir, no Cairo, apesar das blitz do Exército destinadas a limitar o acesso. Uma marcha anunciada como o “protesto de milhões” acontece hoje (terça-feira, 01/02/2011). Mais de um milhão de pessoas estão em Tahrir, 300 mil em Suez, em Mahalla 250 mil, 250 mil em Mansoura e 500 mil em Alexandria. Os manifestantes estão em todas as cidades do Egito, cerca de quatro milhões em todo o Egito. É a hora da verdade.
Mesmo sem uma greve geral, a vida econômica e social normal já está paralisada. A montadora japonesa Nissan anunciou que está interrompendo a produção em sua fábrica durante uma semana e recomendou aos funcionários não-egípcios a deixar o país. O impacto já está sendo sentido nos mercados mundiais. O índice Nikkei da bolsa de Tóquio caiu no início do pregão, assim que os acontecimentos do Egito levaram os investidores a vender os chamados ativos de risco.
A maioria das lojas e negócios no Cairo está fechada. As classes médias estão se apressando para retirar dinheiro de caixas automáticos do banco. Os poucos supermercados que estão abertos são esvaziados por compradores que querem se abastecer com alimentos. Nas padarias das áreas mais pobres, os pequenos pães arredondados – item básico da dieta nacional – estão esgotados. As ruas estão com acúmulo de lixo, assim como lojas e hotéis estão ficando sem suprimentos básicos.
Em mais um vacilo, a polícia foi ordenada a voltar às ruas novamente. A televisão estatal alertou que há gangues em fúria, mas alguns acreditam que isso é um exagero para assustar as pessoas. O regime está tentando criar um clima de tensão para justificar a repressão. As forças de segurança à paisana estão empenhadas em destruir propriedades públicas, a fim de dar a impressão de que muitos manifestantes representam uma ameaça pública. Um relatório da Stratfor Global Intelligence (uma agência privada de “inteligência”, de análise política) recentemente indicou que policiais à paisana, do aparato de segurança interna do Egito, são os principais agentes por trás da crescente insegurança nas ruas ao longo dos últimos dias. O relatório diz:
“É importante ter em mente que, historicamente, existe animosidade entre a polícia egípcia e oficiais do Exército. O Ministério do Interior, segundo fontes da Stratfor, queria impedir os militares de impor o controle nas ruas. Parece que a ausência de policiais nas ruas em 29 de janeiro foi – pelo menos em parte – incentivada pelo Ministro do Interior que foi demitido no mesmo dia junto com o resto do gabinete. Integrantes da polícia egípcia à paisana estariam por trás de uma série de desbloqueios, roubos de grandes bancos e da propagação de ataques e invasões em bairros de classe alta. A idéia por trás da campanha violenta era retratar os manifestantes como uma ameaça pública e provocar a repressão do Exército com mão pesada para envolver os militares em uma crise ainda maior.”
A reação do povo foi começar a assumir o controle de suas áreas. Os manifestantes estão formando comitês do povo para proteger a propriedade pública e também para coordenar as atividades de manifestantes, inclusive fornecendo-lhes alimentos, bebidas e primeiros socorros. Em alguns bairros, os moradores estão construindo barreiras improvisadas. Eles se armam com paus e pistolas contra os saqueadores. Alguns equipamentos foram deixados por policiais depois que eles abandonaram os seus antigos postos.
Imagens desses acontecimentos estão sendo transmitidas às casas em todo o Egito e no mundo árabe. Grandes platéias estão assistindo e esperando para ver o que acontece. As autoridades tentam obter um monopólio sobre os meios de comunicação ao restringir a mídia impressa e a internet. O Ministério da Informação fechou o escritório local da Al-Jazeera em uma nova tentativa de controlar as informações. No entanto, tais esforços parecem ser inúteis. Os egípcios, sempre inventivos, continuam a sintonizar a televisão por satélite para ouvir as notícias.
Uma “transição ordenada”
Em meio a crescentes temores em Londres e outras capitais europeias de que “os extremistas poderiam tentar explorar a situação”, o premier britânico, David Cameron, conversou no domingo com o rei Abdullah II, da Jordânia, sobre a situação no Oriente Médio e Norte da África. (*) O Secretário do Exterior britânico, William Hague, disse à BBC: “É para evitar esses riscos e atender às reivindicações e aspirações legítimas do povo egípcio que estamos instando as autoridades egípcias… para criar um governo mais amplo”. Ele disse que as reformas devem ser “reais e visíveis” e as eleições “livres e justas”.
Mas há um pequeno problema com todos esses conselhos bem-intencionados. Mubarak parece determinado a não fugir como Ben Ali fez. E, de fato, os americanos não desejam que isso aconteça. Eles vêem que o vácuo de poder seria muito perigoso para eles. Os norte-americanos alertaram vigorosamente o presidente Mubarak de que não deve haver mais mortes. Eles sabem que um confronto sangrento seria suficiente para dividir em pedaços o Exército. Então as comportas se abririam. É por isso que o Exército afirmou que não usará a força para reprimir as manifestações. Esse é o beijo da morte de Mubarak.
El-Baradei e os outros “reformadores” estão sugerindo aos americanos que intervenham: “É melhor para o presidente Obama que não seja o último a dizer ao presidente Mubarak: É hora de você ir embora.” Mas Obama não disse isso – por enquanto. As massas querem uma transformação completa. Mas Barack Obama só quer uma “transição ordenada”. Uma transição metódica… para onde? Nós não sabemos. Mas sabemos que Obama chamou Mubarak a dar início a isso. Ou seja, ele está disposto a dar ao velho ditador um papel fundamental na busca de soluções para o futuro do Egito. Sabemos também que Washington vê o Egito como um “aliado” chave no Oriente Médio. Deu-lhe bilhões de dólares de ajuda, e quer o retorno desse investimento.
A Casa Branca diz que Obama, no fim de semana, fez uma série de telefonemas sobre a situação a líderes estrangeiros, incluindo o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan, o rei Abdallah da Arábia Saudita, e o premiê britânico, David Cameron. Os protestos no Egito estão no topo da agenda de uma reunião de Ministros do Exterior da União Européia em Bruxelas na segunda-feira. Todos estão aterrorizados com o efeito de “contágio” do Egito.
O correspondente da BBC John Simpson diz: “Do ponto de vista americano, a melhor coisa que poderia acontecer seria um fim pacífico para os protestos, a aposentadoria de Mubarak e a continuação de uma parte (pelo menos) do sistema que ele criou – livre, espera-se, da corrupção”. Mas ele acrescenta uma advertência: “Não vai ser fácil e não será atraente para os manifestantes, que condenam toda a estrutura política de Mubarak e querem derrubá-la”.
Os estrategistas do Capital contam com o fato de que as pessoas vão cansar e que haverá um desejo generalizado de voltar à vida normal, e isso levará a um fim gradual dos protestos. Em seguida, o sistema – e talvez o próprio presidente – poderia sobreviver. Mas tudo depende dos manifestantes: se eles mantiverem os protestos, uma “transição ordenada” não será possível, e o movimento pode ir muito mais longe do que qualquer um pode hoje esperar.
Na noite passada, no Channel Four News britânico houve um debate entre dois “especialistas”, um americano e um britânico. O norte-americano – um típico direitista cabeça-dura – estava otimista sobre uma “transição ordenada para a democracia”. O seu colega britânico não estava impressionado. “Esta é uma situação revolucionária”, ele respondeu com sarcasmo gelado. “Você não pode esperar ordem em uma situação como essa.” Não há dúvida de que a última avaliação é a correta.
Enquanto isso, a China se somou ao coro que clama pelo retorno à “ordem”. Um porta-voz da chancelaria chinesa, disse no domingo: “O Egito é um grande amigo da China, e esperamos que a estabilidade social e a ordem voltem para o Egito o mais rapidamente possível”. O regime chinês está interessado na estabilidade econômica mundial, porque quer continuar a ganhar muito dinheiro com as exportações. Mas também teme qualquer coisa que possa servir de estímulo para greves e protestos na própria China. Isso explica por que o regime chinês bloqueou o uso ferramentas de busca na internet para encontrar notícias sobre os acontecimentos no Egito!
As massas lutam, os políticos conspiram
Os americanos fazem manobras desesperadas nos bastidores. Durante a última semana tem ocorrido intensas discussões com os altos funcionários dos EUA, o governo e o alto escalão do Exército. O Exército ganha tempo preparando a saída política de Mubarak. Até que isso aconteça, a agitação nas ruas vai continuar. Mas quem e o que vai tomar seu lugar?
Em sua busca por uma “transição ordenada”, a mídia ocidental tenta construir a figura de Mohamed El Baradei. As câmeras de televisão de alguma forma sempre conseguem localizá-lo entre uma massa de manifestantes. Mas isso traz à mente a seguinte anedota: Um homem foi visto vagando sem rumo por trás de uma multidão de manifestantes. Quando alguém lhe perguntou quem ele era, ele respondeu: “Eu? Eu sou o líder deles”.
Embora ele não tenha desempenhado qualquer papel na organização dos protestos, ele é apresentado como o líder de uma “coalizão de oposição” misteriosa, que aparentemente inclui o partido islâmico “Irmandade Muçulmana”, que também não desempenhou nenhum papel na organização dos protestos e, a princípio, nem sequer participou delas. Essa “coligação” propõe que um governo de unidade nacional seja criado. Quem estará em tal governo? Ninguém sabe. Quem elegeu esta “coligação da oposição”? Ninguém sabe. No entanto, pelas costas das massas, esses senhores já fazem planos para agarrar as rédeas do poder.
Os líderes estão disputando o poder. O que unifica a oposição é seu ódio por Mubarak, no entanto, quase todo o restante os divide. Já havia sinais de desunião dentro da oposição “unificada”. A Irmandade Muçulmana está cheia de segundas intenções ao dar apoio a Mohamed El-Baradei como o principal negociador com Mubarak.
Um porta-voz da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsy, disse à BBC: “As pessoas não designaram Mohamed El-Baradei, para tornar-se um porta-voz deles”. Isso é bem verdade. O povo não designou Mohamed El-Baradei, mas também não designou a Irmandade Muçulmana como seu porta-voz. Eles não nomearam ninguém, porque eles não foram consultados. Eles estão lutando e morrendo nas ruas e seu objetivo não é promover as carreiras de políticos oportunistas, mas sim mudar suas vidas.
As revoltas na Tunísia e Egito são majoritariamente laicas e democráticas, e muitas vezes deliberadamente excluem os islâmicos. O senso comum de que só a Irmandade Muçulmana pode organizar movimentos populares de oposição no Oriente Médio é falso, como é a idéia de que é a “única oposição de fato”. Os protestos indicam a extensão em que os egípcios têm rejeitado a ideologia jihadista. Eles provam que os islâmicos não têm um monopólio sobre os movimentos populares. As reivindicações básicas dos manifestantes egípcios são por empregos, comida e direitos democráticos. Isso não tem nada a ver com os islâmicos e é uma ponte para o socialismo, que tem raízes profundas nas tradições do Egito e outros países árabes.
A hora da verdade
As tensões estão crescendo entre o Exército e a polícia e entre a polícia e manifestantes. A revolução provocou uma crise no Estado. Há relatos de um grande confronto que ficou às claras entre o Ministério do Interior e as Forças Armadas. O Exército deve tentar acabar com os protestos nas ruas. Mas não será fácil, já que as massas tomaram certa consciência de seu próprio poder.
A estrutura política do Estado está se desintegrando, forçando o Exército a assumir a responsabilidade direta pela gestão da sociedade. As Forças Armadas supostamente são o fiador do Estado. Mas os militares não são uma entidade monolítica. O Exército do Egito não é como o Exército da Grã-Bretanha ou dos EUA. Os escalões mais baixos e médios da casta de oficiais refletem pressões das massas. Toda a história do Egito coloca a possibilidade de golpe de um coronel na agenda. O resultado poderia ser um regime nacionalista como o de Gamal Abdel Nasser, um coronel das Forças Armadas, que derrubou a monarquia apoiada pelos britânicos, em 1952.
Na situação atual, é possível que a história se repita. Porém, qualquer que seja o governo de “transição” formado, estará sob controlo rigoroso. Ele vai se sentir o bafo quente das massas em seu pescoço. A chave para toda a situação é o movimento de massas. Todas as contradições estão vindo à tona. As próximas horas serão decisivas. A hora da verdade chegou.
Londres, na manhã do dia 1º de fevereiro de 2011.
(*) Nota: Sem dúvida, Cameron estava aconselhando o rei da Jordânia sobre o que fazer para aplacar as massas. A última novidade é que o rei Abdullah II da Jordânia já demitiu seu governo. Isso veio na sequência de manifestações enormes inspiradas pelas revoluções na Tunísia e Egito. Essa é a confirmação de que o movimento que começou na Tunísia, após os protestos no Iêmen, Argélia e outros países, pode englobar todo o mundo árabe.