Foram realizadas eleições presidenciais no Egito na semana passada, de acordo com uma concessão formal à Revolução Egípcia na Constituição de 2014. Foi o primeiro teste eleitoral da autoridade de Sisi desde que ele foi nomeado oficialmente em 2014. Apesar do desprezo visível pela democracia demonstrado por Sisi e seu regime em cada etapa do processo eleitoral, as primeiras estimativas dos resultados indicam que este foi um teste em que ele fracassou completamente.
El-Ahram e Akhbar El-Youm, jornais que seguem a linha oficial do regime, informaram na quinta-feira que o presidente em exercício havia recebido aproximadamente 21,5 milhões de votos. Seu único adversário, Moussa Mostafa Moussa, um político insignificante que questionou publicamente sua própria candidatura e que até recentemente tinha o retrato do Presidente Sisi como sua foto de capa no Facebook, recebeu 721.000 votos. A parte que coube a Moussa é apenas um terço do número de eleitores que anularam suas cédulas de voto, estimados em mais de 2 milhões. Que quase um décimo do total de votos tenha sido anulado ilustra o desdém sentido por todo o Egito pela forma como a eleição foi conduzida.
No entanto, se excluirmos esses eleitores do cálculo do comparecimento, os números mostram que somente 37% dos eleitores votaram nessa eleição. Esse índice marca um declínio dramático quando comparado aos 47,5% que compareceram para dar a Sisi o mandato que o elevou ao poder há quatro anos, e aos 52% que compareceram para votar na eleição presidencial de 2012 no auge do movimento revolucionário. Também é importante considerar que o percentual deste ano está baseado nos números de duas publicações que tentam apresentar o quadro mais otimista das eleições do ponto de vista de Sisi.
Além disso, esse comparecimento extremamente modesto segue-se a dois meses de fanfarras políticas e de campanhas histéricas por parte da camarilha de Sisi dentro do regime e do que resta de seus fervorosos apoiadores fora dele. Placas a favor de Sisi foram pendurados em prédios públicos e praças de todas as cidades e vilarejos, enquanto âncoras famosos e clérigos muçulmanos lançavam mensagens na televisão nacional lembrando aos egípcios que era seu dever cívico votar e fazendo ameaças contra os que não queriam comparecer às urnas. Carros-patrulha da polícia percorreram o Cairo e Alexandria durante os dias da eleição tocando o hino nacional egípcio e outras canções patrióticas através de megafones, junto a mensagens que ordenavam todos os cidadãos adultos a votar.
Ao mesmo tempo, o regime tentou impor uma multa de 500 libras egípcias (mais de um terço do salário médio mensal) aos eleitores que não comparecessem para votar. Nos bairros mais pobres das principais cidades, os partidários de Sisi perambulavam pelas ruas subornando pessoas com cestas básicas em troca de votos. É razoável assumir que grande proporção dos votos dados a Sisi foi comprada com essas cestas básicas.
Os resultados, portanto, não correspondem simplesmente aos 35% em favor da presidência de Sisi – o que por si só, em uma eleição praticamente sem concorrentes, representa um resultado bastante patético. Refletem em grande medida um setor da população egípcia para o qual o resultado da eleição não tem relevância e que está, ao mesmo tempo, tão desesperado pelas carências básicas que se dispõe a vender seus votos inúteis por comida.
A esmagadora maioria dos egípcios não se encontra nessa faixa. Embora muitos deles também enfrentem situações desesperadoras e eles também tenham recebido ofertas de propinas e ameaças por parte do regime, nenhuma coerção poderia forçá-los a eleger um presidente que de forma tão consistente violou seus direitos democráticos. O dano aos seus meios de subsistência e à sua dignidade, que o governo administrou, lhes deu uma motivação adicional para ficarem em casa.
Repressão ruidosa
O frágil mandato que Sisi obteve na ultima eleição reflete o colapso de sua base de apoio entre os egípcios durante os últimos quatro anos. Escândalos nacionais, como o episódio das ilhas do Mar Vermelho, a crise profunda dos padrões de vida e prenúncios de desastre econômico, tais quais a enorme desvalorização da libra egípcia e os aumentos súbitos da inflação, prejudicaram o primeiro mandato do presidente.
Em vários momentos parecia que ele não obteria um novo mandato. Sob sua administração, as contradições que levaram à Revolução Egípcia, longe de serem resolvidas, aumentaram em severidade e a luta de classes continuou em fogo brando logo abaixo da superfície.
Vale a pena notar, no entanto, que a maneira ridícula como a própria eleição foi realizada contribuiu para a queda do comparecimento em comparação a eleições anteriores. A abordagem desajeitada dos agentes de Sisi dentro do regime para administrar todo o processo eleitoral foi incomum mesmo para o Egito. Como disse um observador em Alexandria ao The Independent: “Desta vez parece tão evidente. Eles sequer foram discretos a respeito”. Com a Revolução Egípcia ainda assombrando como um pesadelo, a camarilha dominante não podia cancelar a eleição abertamente. No entanto, usaram todos os truques possíveis e imagináveis para garantir que não fosse minimamente contestada.
Khaled Ali, líder do movimento dos trabalhadores que se estava colocando como concorrente para a presidência, foi preso em setembro e acusado de “ofender a decência pública” quando um informante policial alegou que ele fez um gesto obsceno na rua. Seu julgamento foi marcado para começar em 7 de março, convenientemente durante o auge da campanha eleitoral.
Em todo caso, ele se retirou da eleição às vésperas do aniversário da revolução, em 25 de janeiro, depois que outro candidato, Sami Anan, foi preso. Ali havia convocado seus partidários a marchar até o prédio da Suprema Corte no Cairo com uma lista de assinaturas endossando sua decisão de concorrer, em desafio às tentativas do regime de bloquear candidatos por tecnicismos burocráticos e pela força direta. Apesar de ser um tipo de truque, a marcha poderia ter levado certa força de tração às massas, particularmente se a brutalidade policial fosse utilizada para detê-la. No entanto, em 24 de janeiro, Ali anunciou:
“A confiança do povo na possibilidade de se transformar a eleição em uma oportunidade para um novo início infelizmente acabou. Hoje nós anunciamos nossa decisão de não concorrermos nesta disputa e não avançaremos com nossos documentos de candidatura em um contexto onde o propósito se esgotou antes de começar”
Khaled Ali representava a única oposição genuína à classe dominante egípcia na corrida presidencial. Mas Sisi não limitou sua repressão aos candidatos que se opunham abertamente ao regime. Sami Anan, por exemplo, era comandante-geral das Forças Armadas entre 2005 e 2012, um dos pilares do regime de Mubarak e do presidente atual até que foi forçado a se aposentar pela administração Morsi.
O Ministério da Defesa, um setor do governo anteriormente encabeçado por Sisi e que é povoado por alguns de seus mais fortes partidários, afirma que Anan forjou seus documentos de quitação militar para permitir sua inclusão na eleição. Na verdade, sua aposentadoria do serviço ativo deu-lhe o mesmo status que o próprio Sisi tinha quando declarou que concorreria à presidência em 2014.
Hisham Geneina, chefe da campanha de Anan e chefe da unidade anticorrupção de Sisi em 2016 também foi preso, supostamente por defender Anan. No entanto, seu advogado afirma que a prisão veio como resultado dos “supostos documentos e arquivos que ele possuía”. Geneina reivindicou anteriormente a existência de imagens de vídeo implicando o presidente e altos membros do regime em crimes contra o povo egípcio depois da revolução de 2011.
Enquanto isso, Ahmed Shafik, outro veterano do estado-maior militar que também serviu como ministro sob Mubarak e que se postulou como candidato do velho regime em 2012, foi detido nos Emirados Árabes Unidos (UAE) para evitar que retornasse ao Egito livremente depois que anunciou sua candidatura à presidência em dezembro.
O candidato decorativo
No final, o único concorrente de Sisi foi lançado de paraquedas na eleição no dia anterior à data limite do registro de candidatos, com propósitos decorativos. O relativamente desconhecido Moussa Mostafa Moussa era um consistente defensor vocal do presidente em exercício e até parecia não estar convencido de sua própria resposta quando lhe perguntaram em Egypt Today se ele era um candidato falso.
Ao tentar abordar os rumores de que iria ceder a presidência a Sisi mesmo que ganhasse, Moussa essencialmente admitiu que era um candidato falso, dizendo a Ahram Online: “Um referendo [a eleição de um só candidato] é muito perigoso em um momento em que existem conspirações contra o país. Ninguém irá votar se houver somente uma pessoa”.
Ele expôs suas esperanças nas eleições em uma declaração que fez à mídia enquanto emitia seu voto, ocasião em que parecia sugerir que sequer votaria em si mesmo: “Seja qual for o resultado, estou satisfeito com ele e o que é necessário é uma grande presença eleitoral”. Infelizmente para Moussa e suas marionetes próximas a Sisi, seu papel decorativo em uma tosca tentativa de legitimar essa eleição saiu estupendamente pela culatra. Sua candidatura simplesmente aumentou a sensação de farsa, expondo ainda mais a podridão do regime que conduz o processo e a abordagem amadora e incompetente de seu líder.
Em termos de protagonistas, a última eleição tem uma semelhança superficial com a eleição presidencial egípcia de 2005. Na época o presidente Hosni Mubarak derrotou seu adversário simbólico, Ayman Nour, predecessor de Moussa como líder do partido de centro-direita El-Ghad, com participação pública mínima.
No entanto, existem duas diferenças muito claras. Em primeiro lugar, no período entre as duas eleições as massas egípcias passaram por experiências revolucionárias prolongadas e estão agora plenamente conscientes de que não têm necessidade de tolerar a condescendência abjeta da classe dominante egípcia em silêncio ou de forma obediente. Em segundo lugar, o monstruoso regime militar-burocrático que parecia invencível há 13 anos foi repetidamente derrubado por ondas após ondas de movimentos de massa revolucionários.
A natureza fechada das eleições em 2005 parecia representar a mão de ferro do regime no poder. Agora os esforços desesperados dos capangas de Sisi para organizar todos os aspectos do processo eleitoral – frequentemente com efeitos cômicos – refletem a situação de debilidade e desordem em que o regime se encontra.
Uma presidência formada pela crise
A aparência maltrapilha da administração Sisi ao lidar com essa eleição não deve surpreender ninguém que testemunhou a sucessão de aparições públicas calamitosas, de discursos desesperados e de iniciativas de propaganda malsucedidas que caracterizaram este regime. Um exemplo particularmente proeminente foi o caótico Fórum Mundial da Juventude que o Egito recebeu em novembro do ano passado. Supunha-se que o evento mostraria o progresso social e político que o Egito havia realizado desde a revolução, com egípcios pacificados por seu novo e benevolente governo e com jovens destacados de todo o mundo livre para debater em um ambiente aberto. Nas mentes dos organizadores, ia ser um anúncio dirigido aos potenciais investidores estrangeiros.
Na verdade, o fórum foi boicotado por muitos de seus convidados, que alegaram os abusos aos direitos humanos e o fechamento democrático no Egito como suas razões. Os que compareceram foram tratados com discussões unilaterais, muito obviamente planejadas para elevar a imagem do governo egípcio, o que levou a brigas, retiradas e frequentes interrupções por parte da multidão. O presidente, por seu lado, de forma infame chegou ao local e saudou os dignitários ao som de “Deus salve a Rainha”.
Os erros superficiais de Sisi iluminam algo de mais fundamental em jogo. Em 2013, ele preencheu o vácuo criado no poder devido à ausência de lideranças revolucionárias no Egito, colocando-se com um homem forte que poderia trazer estabilidade ao Egito ao fazer as coisas acontecerem. Mas, sob bases capitalistas, nunca houve a possibilidade de qualquer líder ser capaz de cumprir esse papel, dada a paralisante crise econômica que aflige o Egito e às brutais condições impostas pelos imperialistas para resgatar o país.
Portanto, temos agora o espetáculo tragicômico de um líder e de um regime tentando com todas as suas forças parecer grande e forte, mas apenas revelando sua fragilidade a cada esforço que faz. Na realidade, o menor empurrão das massas egípcias poderia derrubar não apenas Sisi como também o fétido edifício de todo o regime.
A frente comum da burguesia se desintegrou
Os estrategistas do capital em nível internacional já estavam conscientes desse fato há algum tempo, como advertia The Economist em agosto de 2016: “O senhor Sisi não pode proporcionar uma estabilidade duradoura. O sistema político egípcio deve ser reaberto”. Da mesma forma que outros comentaristas burgueses, a torpeza do presidente os torna desconfiados, um sentimento que claramente penetrou o próprio regime. Um indício de que fissuras estavam se abrindo no seio da classe dominante foi a decisão contra Sisi pronunciada por um dos Tribunais Supremos pela venda das ilhas do Mar Vermelho no ano passado. O parlamento apoiou amplamente o presidente nesse tema, mas também pareceu dividido.
Atualmente, figuras chave da velha guarda de Mubarak começaram a se opor publicamente a Sisi e tentaram se apresentar como concorrentes na corrida presidencial. Esses altos membros da burocracia militar, que tentam se opor ao presidente em funções, não teriam sido ouvidos em nenhum período anterior da república egípcia. A repressão apressada e desorganizada de tais candidatos com a ajuda da máquina estatal – e, no caso de Shafik, outra máquina de Estado – reflete o temor de Sisi por sua própria posição. A frente única da classe dominante egípcia, que triunfou sobre os ombros da revolução egípcia em 2013 e foi respaldada pelo imperialismo ocidental, aparentemente veio abaixo.
Sob o peso das crescentes contradições na sociedade egípcia, o regime fechou-se em si mesmo e começaram as recriminações. O presidente Sisi encontra-se preso no meio dos setores da classe dominante que estão puxando em diferentes direções. Um deles deseja abrir ainda mais a economia egípcia e torná-la mais atraente para os investidores estrangeiros, sem levar demasiado em conta as implicações políticas dentro do Egito. O outro setor está composto em grande parte por elementos mais tradicionais da burocracia, que protegem os privilégios e a riqueza adicional que acompanham suas posições dentro ou próximo do aparato estatal. Sisi se viu obrigado por necessidade econômica a satisfazer a primeira ala, provocando na segunda um desafio à sua autoridade.
A classe dominante muda seu discurso
No entanto, à medida que as eleições se aproximavam, os representantes mais sérios da burguesia mudavam notavelmente o seu tom em relação a Sisi. Em seu resumo de notícias para o Financial Times no início da semana passada, Josh de la Hare explicava porque pensava que os egípcios sairiam para votar em Sisi:
“Muita gente quer estabilidade. Ainda estão traumatizados pelos transtornos que acompanharam a revolução de 2011. Portanto, não há realmente um estado de ânimo para a dissenção, para protestar ou censurar a falta de liberdade política”
Na quinta-feira, o New York Times mostrava-se otimista sobre a reeleição de Sisi:
“Os empresários afirmam que as duras reformas econômicas, a estabilidade política e as novas infraestruturas dos últimos quatro anos ajudaram suas empresas a se recuperar da queda provocada pela insurreição de 2011”
Que há por trás dessa posição repentinamente positiva acerca da continuidade de uma presidência que essas publicações frequentemente descreviam como, na melhor das hipóteses, pouco confiável? É o espectro da revolução egípcia, cuja memória ainda infunde terror às classes dominantes do mundo. Para elas, um líder débil com suas débeis tentativas de conter a luta de classes no Egito é melhor que qualquer outro dirigente.
A luta de classes é irremediável
Como afirma a The Economist, essa não é uma receita para a estabilidade política. O próprio Sisi respondeu com um tom de pânico e de defesa em sua entrevista de 20 de março na televisão nacional. “Não estamos preparados”, disse sobre a ideia de se ter uma eleição devidamente disputada, “não é vergonhoso?”. É uma grande vergonha para a classe dominante egípcia, cuja decrépita condição se enfatiza cada vez mais, que o regime de Sisi oscile sem ter que enfrentar uma oposição.
No entanto, também é uma vergonha para as massas egípcias que Khaled Ali abandone a disputa eleitoral antes que ela comece oficialmente, sem opor muita resistência. Em vez de se retirar ante as ameaças e a intimidação, poderia ter utilizado qualquer julgamento penal como plataforma política para denunciar o regime. Se ele ou outro candidato real da oposição tentasse levar à frente uma campanha presidencial audaz sobre uma base de classe, essas eleições poderiam ter servido como uma fagulha para reavivar a revolução egípcia.
De qualquer forma, essa fagulha surgirá mais cedo ou mais tarde. O regime pode manipular as eleições presidenciais em seu favor, mas não pode fazer o mesmo com a luta de classes.
Artigo originalmente publicado em 3 de abril de 2018 no site In Defense of Marxism, da Corrente Marxista Internacional (CMI), com o título “Egypt: landslide victory for electoral abstention reflects collapse in Sisi’s authority“.
Tradução de Fabiano Leite