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Guerra, paz e luta de classes: marxismo versus pacifismo (parte 1)

A questão da violência é frequentemente colocada como uma questão teórica abstrata. Os pacifistas isolam o conceito de “violência” e o tratam separadamente de todos os outros aspectos das relações humanas. Mas, como disse o teórico militar Carl von Clausewitz: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Declarar oposição à violência “em geral” é tão sem sentido e utópico quanto declarar oposição à política “em geral”. Devemos ser concretos. A que tipo de violência nos opomos? E como podemos lutar contra isso?

A Revolução Sudanesa

Oferecendo um exemplo recente: para a Revolução Sudanesa de 2019, a questão da violência não foi colocada no abstrato. O movimento revolucionário ameaçou a destruição total do antigo regime de Omar al-Bashir. A junta militar governante só poderia se manter por meio da violência.

Depois de uma série de poderosas greves gerais e protestos revolucionários que paralisaram o país, os generais desencadearam uma violenta milícia para varrer os protestos e massacrar as massas em Cartum. Eles usaram o terror para pressionar a liderança revolucionária a aceitar uma “divisão do poder” entre os líderes militares e civis.

Em 2021, um golpe militar contra o primeiro-ministro civil provocou um novo recrudescimento da revolução, que, por sua vez, foi recebido com violência brutal por parte da junta, que voltou ao poder e continua a usar a violência contra o povo até hoje.

Na Revolução Sudanesa de 2019, a questão da violência não foi colocada em abstrato: tornou-se uma questão de matar ou ser morto para os revolucionários

A única forma de as massas se protegerem, e para que os objetivos dessa revolução se realizassem, teria sido armar a classe trabalhadora: que os líderes da revolução lhe dessem armas para se defender e constituíssem comitês de autodefesa e combate contra as milícias.

Para a revolução, era matar ou morrer.

Mas a liderança da Revolução Sudanesa, que, para seu crédito, foi longe na organização da luta, sacrificou a revolução no altar do pacifismo abstrato.

A revista Jacobin publicou uma entrevista com um dos líderes do movimento sudanês em 2019. Ela disse:

“Uma das coisas que nos mantiveram vivos é que éramos pacíficos. Então, não importa o quanto eles tentem nos provocar para usar a violência, as pessoas não o fariam. Não importa quantas vezes eles tentem matar e estuprar meninas e nos colocar na prisão. As pessoas têm muita raiva, decepção, tristeza, mas nos mantivemos em paz. Não foi fácil, mas foi assim”.

Esses calorosos sentimentos pacifistas são de pouca utilidade para todos os trabalhadores que foram e estão sendo espancados, estuprados e mortos durante a luta contra a ditadura militar no Sudão. Esse pacifismo deteve a revolução em suas trilhas e é a razão para o sofrimento contínuo das massas sudanesas hoje.

Os acontecimentos no Sudão provam não em teoria, mas na prática que o pacifismo é um veneno debilitante para o movimento revolucionário. O marxismo e o pacifismo nada têm em comum.

Capitalismo, guerra e violência

Os marxistas consideram o mundo como ele é, não como gostaríamos que fosse. A violência e a guerra não são aberrações estranhas ao capitalismo. Elas não são produto de erros ou acidentes. Elas são produzidas nas bases do capitalismo. Enquanto o sistema capitalista existir, a violência será um fato da vida.

Os marxistas não fecham os olhos aos fatos desejando que não existissem. Tentamos entender por que eles existem e usar isso para produzir mudanças.

Os líderes militares sudaneses usaram de violência contra o seu próprio povo porque queriam proteger os interesses da classe dominante sudanesa e dos seus parceiros imperialistas.

Quando as nações entram em guerra entre si é porque, em última análise, querem proteger os interesses de suas próprias classes dominantes nacionais e suas aspirações imperialistas.

O Estado capitalista trava guerras, às vezes contra seu próprio povo, e às vezes contra estados rivais. Mas em todos os momentos está agindo simplesmente como um comitê para administrar os assuntos comuns da burguesia.

Essa burguesia precisa da violência porque o capitalismo se baseia em antagonismos de classes, enquanto a classe dominante tenta manter a exploração dos trabalhadores. Também existem antagonismos entre diferentes camarilhas de burgueses, representados por seus Estados-nação e impulsionados pela competição capitalista.

A classe capitalista tem muitas armas para lutar contra os trabalhadores de sua própria nação e contra os capitalistas de outras nações, como a propaganda ou a diplomacia. Mas, em última análise, a história nos mostra que a força bruta é o único método pelo qual o capitalismo pode se manter no longo prazo.

O objetivo de qualquer classe dominante sempre foi manter a vantagem econômica. A violência é apenas um meio de conseguir isso. A guerra não é travada por si mesma, mas para conquistar novos mercados, matérias-primas e esferas de influência e para preservar a posição da classe capitalista.

Se a guerra é a continuação da política por outros meios, e a política, como disse Lenin, é a economia concentrada, então guerra, política e economia estão interligadas.

Trotsky apontou que os objetivos de uma “paz” imperialista não são diferentes daqueles de uma guerra imperialista. Os estados capitalistas, mesmo em tempos de paz, são sistemas organizados de violência para a exploração e opressão da maioria pela minoria, através da polícia, exército, tribunais e prisões. Os métodos violentos de governo de classe para preservar os interesses burgueses internamente encontram seu irmão gêmeo nas guerras no exterior.

Guerra e violência são parte inerente do sistema capitalista. Este último não pode existir sem o primeiro.

Como os revolucionários buscam acabar com a violência e a guerra?

A única conclusão disso é que, para acabar com a violência e a guerra, devemos derrubar o capitalismo. Não podemos persuadir ou convencer os capitalistas a serem menos violentos quando a violência está embutida nas bases de seu sistema. Temos que destruir esse sistema para acabar com a violência.

Em particular, devemos quebrar as instituições da violência organizada da classe burguesa, como a polícia e o exército, usando a força se for necessário. Esta é uma política revolucionária, tanto em tempos de “paz” capitalista como em tempos de guerra capitalista.

Em tempos de “paz” burguesa, as greves podem ser a arma que os trabalhadores usam contra os patrões, eventualmente com comitês de greve e conselhos de trabalhadores como alternativas ao poder estatal burguês. Exigimos a nacionalização sob o controle dos trabalhadores das indústrias-chave; e muitas outras coisas. É assim que quebramos o poder econômico e político da classe dominante que lhes permite concentrar as forças da violência em suas mãos.

Em tempos de guerra imperialista, as nossas políticas têm o mesmo fim, adaptadas às diferentes circunstâncias. Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os trotskistas na Grã-Bretanha adotaram o que ficou conhecido como Política Militar Proletária.

Os trabalhadores britânicos compreenderam instintivamente a ameaça representada pelo fascismo e, portanto, queriam lutar contra Hitler. Era um sentimento progressista que precisava ser estimulado, mas sem dar nenhum apoio a Churchill e à classe dominante britânica.

A Política Militar Proletária foi uma luta em duas frentes. Por um lado, os marxistas convocaram os trabalhadores a se unirem à luta contra os exércitos nazistas, ao mesmo tempo em que agitavam os soldados por seus direitos democráticos, contra o uso do exército britânico por Churchill contra os guerrilheiros gregos, por exemplo, e a todo tempo expondo o caráter imperialista da classe dominante britânica.

Por outro lado, na Frente Interna, os trotskistas se mobilizaram por greves contra os grandes capitalistas que lucravam com o esforço de guerra. A abordagem poderia ser resumida assim: nenhuma confiança na classe capitalista para lutar contra Hitler; os trabalhadores devem confiar em sua própria força para derrotar o fascismo.

Dessa forma, a Política Militar Proletária visava quebrar o poder repressivo da classe dominante, rompendo o controle de comando dos oficiais do exército. Não rejeitou o uso da violência por questões de princípio, porque fazer isso seria se desligar dos saudáveis instintos de classe de muitos trabalhadores. A política em relação à guerra não era pacifista, mas destinada a esmagar o militarismo capitalista.

Em todos os momentos, a abordagem revolucionária para acabar com a violência e a guerra é esmagar o Estado capitalista e derrubar o sistema capitalista como um todo. Esta é a única maneira realista de fazer isso, porque é a única maneira que aborda o problema pela raiz.

Guerra e luta de classes

Isso significa que não somos a favor ou contra a guerra e a violência “em geral”. Baseamos nossa política em uma determinada situação concreta. As guerras pela libertação de classes e pessoas oprimidas são progressistas e nós as apoiamos. Mas as guerras travadas no interesse do imperialismo, mesmo que sejam descritas como “defensivas” ou pelo “direito das nações à autodeterminação”, são reacionárias e nós nos opomos a elas.

A violência usada pelo dono de escravos para manter um escravo acorrentado não é a mesma para nós que a violência usada pelo escravo para quebrar essas correntes. A violência usada em legítima defesa não é a mesma que a violência do agressor.

A guerra revolucionária, que deveria ter sido travada pelos dirigentes do movimento sudanês contra a junta militar, poderia ter quebrado as forças repressivas do Estado burguês sudanês. E, assim, apesar da violência e do derramamento de sangue, que condenamos como um produto inevitável da sociedade de classes, tal guerra teria sido historicamente progressista.

O que é pacifismo?

Os pacifistas, no entanto, rejeitam essas ideias. Os pacifistas veem a não violência como uma norma moral, obrigatória para todos, para sempre. Mas a sociedade não é governada por uma moralidade fixa e abstrata. É governada pela luta de forças vivas, históricas, expressadas por meio de classes sociais.

Parte do papel dos marxistas é expor as causas da guerra, analisar o significado histórico de uma determinada guerra e dizer a verdade à classe trabalhadora sobre o capitalismo e o imperialismo.

Woodrow Wilson era um “pacifista” até que os interesses burgueses americanos mudaram, quando levou os EUA à Primeira Guerra Mundial / Imagem: Domínio público

Isso é necessário porque a classe dominante obscurece deliberadamente as verdadeiras razões da guerra. Uma ala da classe dominante costuma apelar para a ideia abstrata de “pacifismo” como um engodo calculado para mascarar a natureza de classe de suas ações.

Em 2003, George Bush e Tony Blair disseram que queriam invadir o Iraque para destruir as armas de destruição em massa e garantir a paz mundial. Na verdade, a guerra do Iraque era sobre petróleo. Foi travada no interesse dos capitalistas ocidentais e não teve nada a ver com a preservação da paz.

Da mesma forma, Woodrow Wilson venceu as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 1916 com um programa pacifista. Convinha à classe dominante dos EUA evitar a guerra naquela época, de modo que pudesse lucrar mais com a guerra por meio da venda de armas e outros meios. Nesse sentido, o slogan de Wilson de “paz” foi uma cobertura para os interesses burgueses.

Dentro de um ano, os interesses do imperialismo dos EUA mudaram. Portanto, esse mesmo pacifista, Woodrow Wilson, liderou os Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. Este é o cinismo com que a classe dominante trata a ideia de “pacifismo”.

Os marxistas expõem essa hipocrisia. Mas a pequena burguesia e os reformistas se prostram diante dela. Eles sustentam as mentiras da burguesia sobre seu desejo de “paz”. Eles consideram a guerra como o produto, não das contradições insolúveis do capitalismo, mas da loucura ou dos erros de indivíduos.

É por isso que os líderes da Segunda Internacional – os supostos marxistas que dirigiam os partidos social-democratas – votaram a favor da Primeira Guerra Mundial. Eles apoiaram a propaganda de suas próprias classes dominantes de que estavam travando uma guerra defensiva pela paz contra inimigos estrangeiros sedentos de sangue.

E é por isso que Jeremy Corbyn, ex-líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, defende a mentira burguesa de que as Nações Unidas são uma força pela paz, capaz de persuadir os imperialistas a evitar a guerra.

Os reformistas acreditam que a classe dominante pode ser persuadida a não ir à guerra, pela mesma razão que acreditam que os capitalistas podem ser persuadidos a fazer concessões econômicas à classe trabalhadora.

Fundamentalmente, esses reformistas substituem a análise materialista da sociedade pelo idealismo filosófico. Eles não entendem como o sistema capitalista realmente funciona – que ele não pode permitir concessões de longo prazo ou paz genuína em tempos de crise.

Esses líderes da Segunda Internacional se adaptaram às condições de ascensão capitalista anteriores a 1914. E essa ascensão suavizou as relações entre as classes e entre as nações. Houve lucros suficientes para manter os imperialistas felizes e para fazer algumas concessões à classe trabalhadora, em alguns países. Os líderes social-democratas, portanto, acreditaram que o capitalismo havia resolvido suas contradições. Eles viam a luta, entre classes e entre nações, como algo externo e desnecessário para o desenvolvimento.

As ideias de Jeremy Corbyn, da mesma forma, são produto do boom do pós-guerra, um período em que os antagonismos de classe foram menos agudos. Ele aborda a austeridade e a guerra como questões puramente ideológicas, intocadas pelas leis do desenvolvimento capitalista e da crise.

Mas o capitalismo não pode resolver suas contradições, ele apenas pode superá-las temporariamente, como nos anos anteriores a 1914 ou nos anos após a Segunda Guerra Mundial na Europa. Quando as contradições inevitavelmente voltam à tona, como aconteceu em 1914, por exemplo, a luta se torna necessária, entre classes e entre nações.

Nessas circunstâncias, os reformistas que se adaptaram ao compromisso de classe e à amável diplomacia internacional encontram o terreno aberto sob seus pés. Mas ainda assim tentam se agarrar à sua teoria de independência da luta.

Eles, portanto, adotam a ideia, para a qual não há base na teoria ou na prática, de que é possível garantir a paz por métodos fora da luta de classes e da revolução socialista, como a “pressão” sobre os imperialistas, por exemplo. Eles fazem isso e se autodenominam de pacifistas.

Na realidade, qualquer verdadeira “pressão” pela paz sempre foi resultado da luta revolucionária da classe trabalhadora pelo poder.

Não foram as petições liberais, mas a Revolução de Outubro de 1917 que retirou os trabalhadores e camponeses russos da Primeira Guerra Mundial. Não foi um apelo pacifista, mas sim a Revolução Alemã de 1918 que levou a guerra ao fim. Não foi pressão moral, mas conselhos revolucionários de ação e uma greve dos estivadores que forçou os britânicos a retirar seu exército invasor da Rússia Soviética em 1920.

O pacifismo, como disse Trotsky, nada mais é do que o servo do imperialismo. Os pacifistas ajudam os imperialistas a encobrir seus crimes, pintando-os como erros ideológicos de indivíduos, em vez de um produto inevitável do capitalismo e do imperialismo. O pacifismo fornece uma saída para o descontentamento, mas não garante nenhuma oposição real.

As Nações Unidas personificam essa impotência pacifista. É um circo em que as pequenas nações expressam suas queixas, enquanto as grandes vetam tudo o que vai contra seus interesses.

A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou repetidamente resoluções condenando a violência de Israel na Palestina, apenas para tê-las vetadas pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança. Que zombaria do assim chamado papel de “manutenção da paz” da ONU!

Da mesma forma, a ONU é impotente para evitar que as grandes potências entrem em guerra quando quiserem. A campanha de bombardeios de 1999 da OTAN contra Kosovo não teve aprovação da ONU. Nem a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido em 2003. Em 1960, a ONU enviou uma força de “manutenção da paz”​​para o que hoje é a República Democrática do Congo, e isso resultou no assassinato de Patrice Lumumba, o primeiro-ministro congolês, e na ditadura de Mobutu, que foi uma ferramenta do imperialismo. Esta é a impotência das Nações Unidas quando se trata de garantir a paz.

A ONU é uma elaborada demonstração de pacifismo, vazia por dentro. Os pacifistas que celebram a ONU são, consciente ou inconscientemente, servidores dos interesses imperialistas que ela oculta. Eles encorajam a perigosa ilusão de que as contradições fundamentais dentro do sistema capitalista são simplesmente pontos de vista ideológicos, que podem ser mudados pela persuasão.

Trotsky foi impiedoso em sua crítica aos pacifistas, que ele considerava estarem desviando a atenção das massas dos processos reais em ação na sociedade. Explicou que não se elimina o perigo da guerra, por exemplo, com o desarmamento, que é um slogan pacifista. Ele disse:

“Um programa de desarmamento enquanto sobrevivem os antagonismos imperialistas é a mais perniciosa das ficções. Os imperialistas não fazem guerra porque existem armamentos; pelo contrário, eles forjam armas quando precisam lutar”.

Poderíamos dizer o mesmo da OTAN ou de outras alianças imperialistas. Existem pacifistas que defendem o desmantelamento da OTAN para evitar a guerra. Mas são as alianças militares que causam a guerra? Ou é a inevitável tendência capitalista à guerra que torna necessárias as alianças imperialistas? Abolir a OTAN não resolverá as contradições fundamentais do capitalismo, que são a força motriz por trás da guerra. Os pacifistas confundem causa com efeito.

Contra os pacifistas, os marxistas dizem: só podemos travar a guerra imperialista com a guerra civil contra a classe capitalista. Nosso slogan não é pela paz, mas pela guerra de classes. Nossos inimigos não são os trabalhadores de outras nações, mas a burguesia internacional, começando pela classe dominante de nossos próprios países.

CONCLUI NA PARTE 2.

TRADUÇÃO DE FAABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM