Imagem: Mar Revolto, Morestil (1900), John Peter Russell

“Helgoland”: a cruzada de um físico quântico contra Lênin

Em “Helgoland”, o físico Carlo Rovelli apresenta sua nova interpretação da mecânica quântica, acompanhada de um ataque a Lênin. Como explica Ben Curry, Rovelli sente a necessidade de atacar Lênin — o maior materialista do século XX — justamente porque ele próprio está claramente abandonando o materialismo. E embora tente responder a Lênin, revela-se que Lênin, há muito tempo, já havia respondido aos mesmos erros filosóficos que agora Rovelli comete.

Em 2021, “Helgoland”, de Carlo Rovelli — um livro sobre mecânica quântica e filosofia — foi publicado em inglês. Rapidamente alcançou o topo das listas de mais vendidos e foi escolhido como “livro do ano” por The Times, Financial Times, The Sunday Times e The Guardian.

O livro começa na ilha enevoada e árida de Helgoland, no Mar do Norte, onde o físico Werner Heisenberg buscou refúgio de suas alergias e, em 1925, fez avanços na teoria quântica. Mas, a partir de Helgoland, somos rapidamente transportados de volta — no estilo floreado que é a marca registrada de Rovelli — a um terreno familiar: o mundo do misticismo quântico:

“Observamos o mar. ‘É realmente incrível’, sussurra Časlav. ‘Podemos acreditar nisso? É como se a realidade… não existisse…’”1

Rovelli descreve o mundo quântico, pelo qual promete nos guiar, como “profundamente misterioso, sutilmente perturbador. […] Objetos distantes parecem magicamente conectados. A matéria é substituída por ondas fantasmas de probabilidade.”2

“Misterioso”, “mágico”, “fantasmagórico”, matéria desaparecendo de repente… com certeza já ouvimos tudo isso antes quando se trata da enxurrada de lixo místico que tem sido acoplada ao vagão da mecânica quântica ao longo do último século. Rovelli apresenta sua própria versão disso. Neste livro, ele propõe uma ‘nova’ interpretação da mecânica quântica, que chama de ‘interpretação relacional’.

Mas, em algum ponto no meio de “Helgoland”, Rovelli se aventura por um território aparentemente inesperado. Dos pioneiros da mecânica quântica, somos abruptamente levados a um confronto direto com Lênin, defendendo o materialismo contra o bolchevique transformado em machiano, Alexander Bogdanov.

Tem-se a impressão de que, ao escrever este livro, a consciência filosófica de Rovelli foi cutucada. Sendo um velho esquerdista que circula em ambientes comunistas desde os anos 1970, ele antecipa a necessidade de se defender (não muito bem-sucedidamente, diga-se de passagem) do maior materialista filosófico do século XX: Lênin. O livro é dedicado, nos agradecimentos, ao antagonista de Lênin, Bogdanov — algo incomum para um livro sobre mecânica quântica, talvez, mas de forma alguma inapropriado.

Rovelli começa seu livro com a revolução na mecânica quântica do início do século XX, que revelou novas características da matéria, muito distantes da nossa compreensão baseada no “senso comum”.

Na famosa conferência de Solvay de 1927, estourou um debate sobre a interpretação dessas descobertas entre Niels Bohr e Albert Einstein, marcando uma divisão filosófica que persiste até os dias de hoje. O mundo material existe independentemente do observador consciente? Este é o cerne da divisão entre materialistas, que respondem afirmativamente, e idealistas subjetivos, que respondem negativamente.

Grande parte da controvérsia gira em torno da interpretação de uma característica dos sistemas mecânico-quânticos conhecida como “dualidade onda-partícula”. Para ilustrar esse fenômeno contraditório, deixaremos Rovelli de lado por um momento.

Considere um lago. Pegue uma pedra, jogue-a na água e tente acertar uma vitória-régia. Você só pode acertar uma vitória-régia de cada vez. Nesse sentido, a pedra se comporta como uma partícula: ela é o que os físicos chamam de “discreta” — ou seja, segue um caminho bem definido ao longo de sua trajetória.

Mas se você errar, e a pedra cair na água, ondas se espalham continuamente como ondulações. As ondas podem agir em vários lugares ao mesmo tempo, fazendo com que todas as vitórias-régias subam e desçam simultaneamente.

A mecânica quântica nos diz que, em nível subatômico, os blocos fundamentais da matéria (os chamados “quanta”, como fótons, elétrons etc.) apresentam comportamentos tanto de partícula quanto de onda. Como isso é possível? Como a matéria pode estar isolada em um único ponto como uma partícula e, ao mesmo tempo, ser difusa e contínua como uma onda?

O famoso experimento da dupla fenda demonstra bem esse comportamento. Se pegarmos um feixe fraco de elétrons e o dispararmos contra uma barreira com duas fendas próximas uma da outra, e colocarmos atrás dela uma tela de detecção, um fluxo constante de elétrons chegará, um de cada vez, à tela de detecção. Como eles chegaram lá?

Poderíamos supor que cada elétron tenha passado por apenas uma das fendas a caminho do detector. Afinal, é assim que partículas se comportam — uma pedra só pode atingir uma vitória-régia de cada vez e segue uma linha clara até lá, então uma partícula presumivelmente só passa por uma fenda de cada vez a caminho da tela de detecção.

De fato, cada elétron atinge a tela de detecção em um único ponto, como uma partícula. Mas à medida que mais e mais elétrons atingem a tela, eles formam um padrão que tem a aparência de uma onda que passou pelas duas fendas e interferiu consigo mesma, da mesma forma que uma ondulação em um lago pode bater na borda e interferir consigo mesma para formar um padrão.

Uma onda, sendo contínua (isto é, espalhando-se), pode passar por duas fendas ao mesmo tempo. Mas uma partícula, sendo discreta, só pode passar por uma de cada vez.

Então o que aconteceu? O elétron passou pela fenda A ou pela fenda B como uma partícula que só pode estar em um lugar de cada vez? Ou passou pelas duas? Ou por nenhuma? Se refletirmos sobre os resultados do experimento, concluiremos que a questão está longe de ser trivial.

Negar a solução desse problema alegando que o mundo material, enquanto tal, simplesmente não existe independentemente de nossa observação já é algo bem diferente. No entanto, essa foi a conclusão que alguns físicos quânticos tiraram, incluindo Werner Heisenberg.

De acordo com essa visão, conhecida como “interpretação de Copenhague”, é sem sentido até mesmo perguntar qual caminho uma partícula quântica percorre. Na verdade, tudo o que existe é um conjunto de probabilidades de que a partícula possa aparecer aqui e não ali, quando a observamos.

Segundo essa interpretação, somente ao ser observada é que a partícula adquire uma posição “real”, um momento e outras propriedades. Até ser observada, a matéria existe em um estado indefinido e incognoscível, nem aqui nem ali, nem vindo nem indo. O acaso quântico é apenas uma parte intrínseca da natureza, e traça-se uma linha na areia além da qual a ciência não pode avançar.

O problema é assim “resolvido” (ou melhor, varrido para debaixo do tapete) descartando-se a causa e o efeito — e, de fato, a própria realidade — até que a “observação” traga tal realidade à existência.

Não é difícil ver como essa interpretação, com o “observador” ambiguamente definido como quem traz o mundo à existência, abre as portas para o idealismo filosófico. Agora, dizem-nos, é a observação que traz a própria realidade material à existência. Trata-se de uma observação consciente? Alguns, como o pioneiro da matemática da mecânica quântica, von Neumann, certamente afirmaram que sim. Com essa ideia, a existência do mundo material torna-se dependente do observador consciente, e não o contrário. O idealismo, assim, é permitido infiltrar-se nas ciências.

Essa interpretação filosófica não caiu do céu. O idealismo já vinha estendendo sua influência nos círculos intelectuais e científicos algumas décadas antes da grande revolução quântica, sob a bandeira do “positivismo”.

O centro desse movimento filosófico, no início do século XX, era Viena. Naquela época, o materialismo revolucionário do marxismo avançava a passos largos no movimento operário, particularmente no mundo de língua alemã. A disseminação do idealismo filosófico entre os círculos intelectuais da burguesia, liderada pelo cientista-filósofo Ernst Mach, ocorreu como reação à crescente influência do marxismo.

Rovelli destaca a influência, sobre os cientistas da época, “das discussões sobre a relação entre realidade e experiência que permeavam a filosofia austríaca e alemã no início do século”:

“Ernst Mach, que exerceu uma influência decisiva sobre Einstein, insistia que o conhecimento precisava basear-se unicamente em observações, livre de qualquer suposição ‘metafísica’ implícita. Esses foram os ingredientes que se reuniram no pensamento do jovem Heisenberg…”3

Rovelli omite injustamente o fato de que Einstein mais tarde rejeitaria o machismo em favor de uma espécie de materialismo inspirado na filosofia de Spinoza. Mas a influência de Mach sobre o pensamento de físicos até os dias de hoje é inegável.

Segundo Mach, o papel da ciência não é desvendar as leis de um mundo material que existe independentemente de nossas mentes, mas organizar a “experiência”.

Para os materialistas, a “experiência” — o conteúdo de nossas sensações — é nossa janela para o mundo material, causada pelo impacto da matéria sobre nossos órgãos sensoriais materiais. Para Mach, o que pensamos como objetos materiais são apenas correlações de impressões sensoriais.

Em seus escritos, Mach se refere a essas “impressões sensoriais” como “elementos do mundo”. Mas apenas substituir por uma palavra com aparência mais científica o termo “sensações” não altera a essência de sua filosofia. Os pensamentos transmitidos à nossa mente pelas sensações são, para Mach, a realidade.

Eu vejo vermelho, sinto uma esfera firme e crocante, e percebo um sabor doce. Chamo isso de uma “maçã”. Para Mach, isso é apenas uma palavra para essa correlação de sentidos, e é sem sentido falar de uma maçã material independente dessas sensações.

Isso é idealismo subjetivo, como Lênin aponta claramente em “Materialismo e Empiriocriticismo”, uma polêmica contra alguns supostos “marxistas” na Rússia, incluindo Bogdanov, que adotaram as ideias de Mach.

Há uma afinidade evidente com a interpretação idealista de “Copenhague”, na qual o observador consciente se torna o componente central da realidade. Nas palavras do co-inventor dessa interpretação, Niels Bohr:

“Em nossa descrição da natureza, o objetivo não é revelar a verdadeira essência dos fenômenos, mas apenas rastrear, na medida do possível, as relações entre os múltiplos aspectos de nossa experiência.”4

Alega-se frequentemente (embora de forma bastante espúria) que uma explicação materialista dos fenômenos descritos pela mecânica quântica está descartada. Durante um século, tentativas de interpretar a mecânica quântica sob uma ótica materialista foram recebidas com hostilidade e desdém pelo establishment científico.

A teoria da “onda piloto”, por exemplo, pioneira de Louis de Broglie e posteriormente desenvolvida por David Bohm, encontra regularmente essa atitude. O próprio Bohm foi até expulso dos Estados Unidos durante a “caça às bruxas” macartista por suas ligações passadas com o Partido Comunista. Suas ideias permaneceram nas margens da física por 70 anos.

Segundo essa teoria — que agora passa por um renascimento de interesse — partículas quânticas estão intimamente ligadas a ondas auto-geradas que guiam seu movimento. No experimento das duas fendas mencionado anteriormente, a partícula passa por uma das fendas. Mas sua onda auto-gerada passa pelas duas e guia seu caminho do outro lado.

Embora essa teoria preveja que as partículas quânticas se comportam de forma caótica, ela é completamente determinista (isto é, baseada em leis, preservando a causalidade) e materialista. É uma hipótese ousada que, em vez de traçar um limite para a ciência, busca ampliá-la — sem exigir a presença de um observador mal definido que traga a realidade à existência.

Qual é a posição de Rovelli diante dessas interpretações conflitantes?

Sobre a interpretação de Copenhague, que efetivamente faz a existência da natureza depender de um observador (presumivelmente consciente), Rovelli pergunta repetidamente ao longo de seu livro: “O que a Natureza se importa se há alguém para observá-la ou não?”5

Até aqui, tudo bem. E quanto às tentativas de interpretar a mecânica quântica de maneira materialista, como fazem De Broglie ou Bohm? Rovelli as rejeita sumariamente.

Ele apresenta sua própria explicação sobre como a mecânica Bohmiana postula a existência de uma partícula material observável e de uma onda material auto-gerada que a guia. Mas em seguida explica que se sente desconfortável com a ideia de tal onda, cuja existência só pode ser inferida indiretamente por seu efeito de guiar partículas:

“Vale a pena assumir a existência de um mundo não observável, sem efeito algum que já não esteja previsto pela teoria quântica, apenas para acalmar nosso medo da indeterminação?”6

Seu argumento, portanto, é que parece muito antieconômico postular a existência de novas facetas da natureza — como ondas que guiam partículas quânticas — quando só podemos ver seus efeitos de forma indireta.

Isso recai sobre um argumento idealista clássico contra o materialismo em geral, que antecede em muito a mecânica quântica. Se tirarmos a linguagem “quântica”, sua pergunta pode ser reformulada assim: “Apenas para preservar a causalidade, vocês materialistas propõem a existência de uma ‘coisa-em-si’ material e incognoscível?”

De fato, Mach usou exatamente esse argumento para rejeitar, em sua época, a amplamente aceita teoria dos átomos.

Nunca podemos “ver” ou “experimentar” diretamente os átomos, mas inferimos sua existência por meio da razão e da experimentação. Por que postular a existência de um mundo “inobservável” de átomos? A ideia do átomo se baseava em muito menos dados experimentais na época de Mach do que temos hoje. Atualmente, microscópios eletrônicos e a cristalografia por raios-X — extensões do olho humano — nos deram uma visão muito mais clara dessas entidades que antes eram descartadas como meras construções intelectuais “inobserváveis”.

Para responder à pergunta de Rovelli: sim, nós materialistas propomos que existe uma “coisa-em-si” material — a matéria —, mas negamos que ela seja “incognoscível” ou “inobservável”. Com o nível atual de conhecimento, ainda não conseguimos ir mais fundo, mas isso é completamente diferente de declarar que jamais conseguiremos. Declarar tal coisa é anunciar uma paralisação do progresso da ciência — exatamente a visão de Rovelli e Heisenberg.

Idealistas subjetivos frequentemente declaram que seu modo de raciocínio é superior com base no “princípio da economia do pensamento”. O materialismo seria inferior, afirmam, porque além da experiência, ele “antieconomicamente” postula a existência da matéria como substrato da experiência.

Rovelli empunha armas contra “Materialismo e Empiriocriticismo”, de Lênin, mas falha em mencionar que Lênin refutou diretamente esse argumento, junto com outros que também aparecem em “Helgoland”. Nas palavras de Lênin:

“É ‘mais econômico’ pensar no átomo como indivisível ou como composto de elétrons positivos e negativos? É ‘mais econômico’ pensar que a revolução burguesa russa foi conduzida pelos liberais ou foi conduzida contra os liberais? Basta fazer a pergunta para ver o absurdo, o subjetivismo de aplicar a categoria da ‘economia do pensamento’ aqui. O pensamento humano é ‘econômico’ apenas quando reflete corretamente a verdade objetiva, e o critério dessa correção é a prática, o experimento e a indústria. Só negando a realidade objetiva — ou seja, os fundamentos do marxismo — é que alguém pode falar seriamente em economia do pensamento na teoria do conhecimento.”7

Não é apenas a aparente “economia” do nosso pensamento que nos interessa, mas sim o grau de correspondência entre o nosso pensamento e a realidade objetiva — ou seja, a correção de nossas ideias.

Rovelli, portanto, não se satisfaz com nenhuma das interpretações estabelecidas da mecânica quântica. Ele rejeita a noção de que a natureza deveria se importar com o fato de estarmos ou não a observando, mas vê o materialismo como “dogmático”. Sua busca é por uma terceira via, uma alternativa tanto ao materialismo quanto ao idealismo. Assim, ele apresenta sua própria interpretação, o que chama de “interpretação relacional” da mecânica quântica. No entanto, sob inspeção mais atenta, não há nada de novo nela.

Pode-se, com razão, perguntar aos proponentes da interpretação de Copenhague: se a “observação” traz o mundo à existência, o que conta como observador e quão consciente esse observador precisa ser? E se eu estiver dormindo? A consciência de um cachorro é suficiente? Talvez até a de um verme nematódeo baste? Será que um “observador” ainda menos consciente — digamos, um átomo de carbono — pode conceder existência ao mundo?

Ao estender a definição de “observador” a esse nível, Rovelli chega à sua “interpretação relacional” da mecânica quântica: “Se olharmos para as coisas dessa maneira, não há nada de especial nas ‘observações’ introduzidas por Heisenberg: qualquer interação entre dois objetos físicos pode ser vista como uma observação.”8

Mas, para Rovelli, entre interações, essa “coisa-em-si” vive uma não-existência, num limbo indeterminado — exatamente como na interpretação de Copenhague: “Quando o elétron não interage com nada, ele não tem propriedades físicas. Não tem posição; não tem velocidade.”9 Só nos resta acrescentar: “não tem existência”. Felizmente para nós, quando os elétrons desaparecem da existência, eles têm a boa educação de manter alguma memória de que devem reaparecer no momento adequado.

Para Rovelli, elétrons e todas as outras coisas materiais não existem de fato, como tais. O que pensamos como objetos materiais são, para ele, apenas “nós” em uma teia de interações e relações. As relações existem, mas a matéria em si é uma ilusão! Tudo o que existe são aparências — como essa “coisa” aparece para alguma outra “coisa”, algum “observador”, durante os breves momentos em que eles “interagem”, sem nenhum conteúdo real. A realidade é, para Rovelli, “um jogo de espelhos que existem apenas como reflexos de e entre si”.10

O que pensamos como “matéria” seria mais apropriadamente substituído por puro nada, forma sem conteúdo. Isso não é uma ideia nova, e o próprio Rovelli encontra paralelos nos ensinamentos do filósofo budista idealista extremo do século II, Nāgārjuna, que ensinava, nas palavras de Rovelli:

“A realidade, incluindo nosso eu, não é nada além de um véu tênue e frágil, além do qual… não há nada.”11

Rovelli, tendo descoberto que nem mente nem matéria, mas sim o puro nada está na base da realidade, acredita ter superado tanto o materialismo quanto o idealismo. Mas será que conseguiu?

Se tomarmos dois corpos no nível da vida cotidiana e os examinarmos, descobriremos que suas propriedades descrevem relações com outros corpos: velocidade relativa, tamanho relativo, luminosidade relativa etc. Mas, ao inspecionar mais de perto, vemos que esses corpos são compostos de partes mais básicas, que por sua vez se interpenetram, e então descobrimos que essas partes também possuem seu próprio conjunto de “relações”. Isso está longe de ser uma descoberta nova.

Mas essa ideia enche Rovelli de uma sensação de vertigem. Algo espantoso parece estar ocorrendo: a cada passo, a matéria parece desaparecer do campo de visão, recuando cada vez mais, deixando-nos apenas com essas “relações”. Citando seu colega físico Anthony Aguirre, Rovelli explica:

“Um elétron é um tipo particular de regularidade que aparece entre as medições e observações que fazemos. Ele é mais padrão do que substância. Ele é ordem… Assim chegamos a um lugar estranho. Decompomos as coisas em pedaços cada vez menores, mas então os pedaços, quando examinados, não estão lá. Apenas os arranjos deles estão. O que são, então, as coisas, como o barco, suas velas, ou suas unhas? O que são elas? Se as coisas são formas de formas de formas de formas de formas, e se formas são ordem, e a ordem é definida por nós… elas existem, ao que parece, apenas como criadas por, e em relação a, nós e ao Universo. Elas são, diria o Buda, vazio.”12

Essa ideia de que tudo é forma, forma é ordem, e que nós definimos a ordem, reintroduz o pensador consciente como componente-chave da realidade.

Essa ideia — de que a matéria, enquanto tal, está desaparecendo à medida que a ciência avança — está longe de ser nova ou original. O fato de termos que constantemente reajustar nossa compreensão da matéria com o avanço da ciência é usado recorrentemente pelos idealistas para “refutar” o materialismo e negar a existência da matéria.

Uma carta anterior ao livro de Rovelli, publicada na edição de 4 de janeiro de 2014 da New Scientist, dá um bom exemplo desse argumento:

“Quanto mais de perto você olha para a matéria, mais ela se dissolve diante de seus olhos.

Massa, a quantificação da substância, é na verdade a energia de campo gerada pelos campos de Higgs ou glúons. E pode ser que as partículas fundamentais venham a ser compreendidas como entidades puramente geométricas. Assim, a física se aproxima cada vez mais do idealismo, a ideia de que a realidade é imaterial por natureza.

Então, as pessoas não deveriam se preocupar com a ausência de um fantasma na máquina. A verdade é justamente o oposto: não há máquina. São fantasmas até o fim.”13

O autor dessa carta ao menos tem a virtude de ser honesto e direto quanto ao seu idealismo. Seu argumento, no entanto, é um truque: um truque respondido diretamente por Lênin em “Materialismo e Empiriocriticismo”, onde ele explica que não é a “matéria” que está desaparecendo, mas sim nossa compreensão limitada e unilateral dela, que recua diante do avanço da ciência:

“‘A matéria está desaparecendo’ significa que o limite dentro do qual conhecíamos até agora a matéria está desaparecendo, e que nosso conhecimento está penetrando mais profundamente; propriedades da matéria também estão desaparecendo — aquelas que antes pareciam absolutas, imutáveis e primárias — e que agora se revelam relativas e características apenas de certos estados da matéria. Pois a única ‘propriedade’ da matéria com a qual o materialismo filosófico está vinculado é a propriedade de ser uma realidade objetiva, de existir fora da nossa mente.”14

Cada avanço em nossa compreensão científica da matéria obriga a filosofia a acompanhar esse progresso.

Na Idade Média, prevalecia a ideia de que não existia “espaço vazio”, de que tudo era preenchido por substância. Mais tarde, a antiga ideia grega de átomos e vazio foi revivida pelo materialista francês Gassendi. A existência dos átomos foi demonstrada cientificamente no século XIX com a descoberta do movimento browniano, e por muito tempo esses átomos foram considerados blocos absolutos, duros e impenetráveis de matéria — era a era do materialismo mecânico.

Mas a ciência continuou a avançar, e a antiga verdade mostrou-se, em parte, relativa. Descobriu-se que o átomo é composto em sua maior parte por “espaço vazio”, ocupado por elétrons organizados em camadas que se repelem por meio do que se conhece como pressão de degenerescência quântica. No centro desses átomos estão núcleos compactos compostos por prótons e nêutrons. Com a descoberta da radioatividade, o núcleo também foi penetrado; mostrou-se que prótons e nêutrons são compostos por unidades ainda menores, chamadas quarks e glúons.

Não foi apenas que a matéria antes considerada “sólida” se mostrou muito mais “vazia” do que pensávamos; o vácuo “vazio” revelou-se muito mais “cheio” do que se imaginava. Com a descoberta da “energia do ponto zero”, a ideia de vácuo como “espaço vazio” precisou ser revista.

Não há razão para supor que esse seja o fim da linha. Mas podemos dizer com certeza que, por mais longe que avancemos, nunca encontraremos o pensamento ou “entidades puramente geométricas” na base da realidade. Cada camada da natureza que penetramos revela o caráter unilateral da nossa compreensão anterior da matéria — o caráter limitado e finito de nossos pensamentos, que são apenas aproximações de um universo cheio de riquezas infinitas.

Idealistas utilizam com frequência o truque de alegar que estão apenas combatendo esta ou aquela forma antiquada de materialismo — apenas para introduzir o idealismo pela porta dos fundos.

Rovelli afirma repetidamente que está apenas combatendo o que chama de “materialismo ingênuo” — termo que ele não define. Rovelli explica que “o principal alvo das polêmicas de Mach era o mecanicismo do século XVIII.”15 No entanto, foi sob o disfarce astuto de atacar uma forma desatualizada de materialismo que Mach, na verdade, travou combate contra o materialismo em geral.

Mais uma vez, Lênin explica tudo isso em “Materialismo e Empiriocriticismo”:

“Engels diz explicitamente que ‘a cada descoberta decisiva, mesmo no campo das ciências naturais [“sem falar da história da humanidade”], o materialismo precisa mudar sua forma’. (Ludwig Feuerbach, ed. alemã, p. 19.) Portanto, uma revisão da ‘forma’ do materialismo de Engels, uma revisão de suas proposições filosófico-naturais, não é apenas não um ‘revisionismo’, no sentido usual do termo, mas, ao contrário, é uma exigência do marxismo. Criticamos os discúpulos de Mach não por fazerem tal revisão, mas pelo truque puramente revisionista de trair a essência do materialismo sob o disfarce de criticar sua forma e de adotar os preceitos fundamentais da filosofia burguesa reacionária…”16

A ideia de “relações” desvinculadas da matéria — ou seja, relações sem aquilo que se relaciona — é um absurdo. E, apesar de Rovelli apresentar isso como algo “novo”, Lênin critica exatamente essa mesma ideia em “Materialismo e Empiriocriticismo”.

Devemos dizer aqui que, enquanto Rovelli faz tanto alarde em defender Bogdanov contra Lênin em “Helgoland”, nos espantamos com a superficialidade com que ele leu o livro de Lênin, pois não menciona nenhum de seus argumentos! É notável que ele não tenha percebido a semelhança entre sua “nova” interpretação da mecânica quântica e uma ideia que estava em voga na época de Lênin — e que Lênin combateu diretamente —, a ideia do “energeticismo”.

Mach e seu coautor de pensamento, o químico Wilhelm Ostwald, acreditavam ter feito uma descoberta profunda ao proporem substituir a “matéria” como bloco fundamental da realidade por “energia” ou movimento.

A ideia de que o movimento pode existir sem a matéria, no entanto, é tão absurda quanto a ideia de que a matéria pode existir sem movimento — ou de que “relações” podem existir sem a matéria, como propõe Rovelli.

A famosa equação de Einstein, E=mc², mostrou que massa e energia não apenas estão profundamente interligadas, como são equivalentes e se transformam uma na outra. Matéria e movimento são completamente inseparáveis. Mas Lênin explica que, mesmo que aceitemos a substituição de “matéria” por “energia” feita por Ostwald e Mach, ainda assim não conseguimos escapar da dicotomia entre materialismo e idealismo:

“Se energia é movimento, você apenas transferiu a dificuldade do sujeito para o predicado; apenas trocou a questão ‘a matéria se move?’ pela questão ‘a energia é material?’ A transformação da energia ocorre fora da minha mente, independentemente do homem e da humanidade, ou são apenas ideias, símbolos, signos convencionais, e assim por diante? E essa questão foi fatal para a filosofia ‘energeticista’, essa tentativa de disfarçar antigos erros epistemológicos com uma ‘nova’ terminologia.”17

Se substituímos a matéria por “energia” ou “movimento” como base fundamental da realidade, ainda resta a questão: estamos falando de movimento que ocorre num mundo material e objetivo, independente de nós, ou dentro da nossa mente? Se substituirmos os termos “energia” e “movimento” por “relações” na citação acima, ela soa como uma resposta direta a Rovelli.

Estamos falando de “relações” materiais ou de relações puramente ideais? A pergunta exige uma resposta. Os marxistas respondem categoricamente: as relações da natureza existem independentemente de nossas mentes. Ou seja, são relações materiais. Toda matéria existe apenas por meio de seu fluxo incessante de relações com o restante do universo material.

Rovelli rejeita o que chama de materialismo ingênuo. Ele também afirma rejeitar o idealismo filosófico. Mas, ao rejeitar a existência da matéria, ele abre novamente a porta ao idealismo. No entanto, a ideia de atravessar essa porta parece deixá-lo desconfortável. Algo em sua consciência o alerta sobre o que se encontra além dela: irracionalismo, espiritualismo e um retorno à fé religiosa.

Nós o encorajaríamos, no mínimo, a ser consistente com sua filosofia. E observamos que há idealistas consistentes que estão pedindo exatamente o mesmo!

Se a linguagem floreada de Rovelli e sua ambiguidade deliberada te deixam em dúvida quanto a qual campo filosófico ele pertence, talvez as palavras de Bernardo Kastrup, diretor executivo do think tank idealista Essentia Foundation, possam esclarecer.

Em seu blog, Kastrup se descreve como “líder do renascimento moderno do idealismo metafísico”. E oferece seu total “endosso, promoção e defesa da Interpretação Relacional da mecânica quântica, proposta pelo físico Carlo Rovelli”. Ele escreve o seguinte:

“Rovelli e eu estamos em total acordo quanto à nossa visão da natureza da realidade física: não existe um mundo absoluto de mesas e cadeiras com massa definida, posição, momento etc., lá fora, mas sim um mundo inteiramente relacional. […] Em resumo, o mundo físico não possui realidade independente.”

E continua:

“… Rovelli defende as conclusões da mecânica quântica discutidas acima, mas se abstém — explicitamente e deliberadamente — de explorar suas implicações filosóficas […] que esse ‘vazio’ é a mente em repouso, um sujeito sem objetos, grávido do potencial para todo relacionamento interno concebível.”18

Não poderíamos ter colocado isso de forma mais clara.

Até agora, falamos pouco sobre o homem a quem Rovelli dedicou “Helgoland”: o discípulo de Mach, ex-marxista Alexander Bogdanov, que se afastou de Lênin em 1909. Rovelli, um homem de esquerda que rejeita o leninismo, tem simpatias políticas, além de filosóficas, claras por Bogdanov. Isso não é acidental. Há uma ligação entre o afastamento de Bogdanov — e, de fato, de Rovelli — do marxismo e suas “inovações” filosóficas.

Rovelli apresenta muitas informações biográficas sobre seu herói:

“Médico, economista, filósofo, cientista natural, romancista de ficção científica, poeta, professor, político, precursor da cibernética e da ciência da organização, pioneiro da transfusão de sangue e revolucionário por toda a vida…”19

Mas sobre esse último aspecto de sua vida — a política de Bogdanov (ou a de Lênin, aliás) — Rovelli faz apenas alguns comentários superficiais e triviais, entregues com a máxima pompa.

Em termos políticos, Bogdanov, somos informados, era um grande democrata. Ele queria “deixar o poder e a cultura para o povo”. Lênin, por sua vez (claro!), era um autoritário incorrigível, culpado de um “dogmatismo político calcificado”. Seu programa político “era reforçar a vanguarda revolucionária, o repositório da verdade que precisava guiar o povo”.20

Estamos novamente em território conhecido. Esse mesmo retrato pode ser encontrado em qualquer livro calunioso e direitista sobre Lênin que você queira escolher: Lênin, o autoritário, sargento dogmático, transmitindo a “linha do partido” ao povo do alto de seu pedestal.

Na realidade, a verdade é o inverso do que Rovelli imagina. Longe de ter um ponto de vista calcificado e dogmático, Lênin era o pensador mais perspicaz e flexível entre os bolcheviques.

O ponto de partida de Lênin era examinar a realidade material — não impor a ela noções preconcebidas, mas sempre retornar a essa realidade material, que é a fonte da objetividade de nosso pensamento. Este é o método materialista, o oposto do sectarismo que caracterizou toda a abordagem de Bogdanov, de impor esquemas e fórmulas pré-fabricadas à realidade, o que o levou a uma série de erros e, por fim, ao rompimento com Lênin.

A ruptura entre os dois esteve intimamente ligada às distintas tendências filosóficas que cada um representava. Lênin estava defendendo o materialismo dialético revolucionário, a pedra angular de uma organização marxista. Bogdanov, que, como Rovelli, era honesto à sua própria maneira, foi incapaz de perceber o conteúdo idealista reacionário escondido por trás dessas novas e modernas ideias emanadas dos círculos científicos burgueses da Europa Ocidental — ideias que, no fim das contas, implicavam a liquidação do marxismo revolucionário.

A luta por uma filosofia clara é de vital importância para a luta pelo comunismo. Existe o preconceito comum de que a busca pela verdade objetiva na ciência a eleva acima das grandes lutas de classe da sociedade. Isso é falso — perigosamente falso. Outros, inclusive os mais perspicazes entre nossos inimigos de classe, compreendem isso tão claramente quanto nós.

Os comentários sobre filosofia de outro pioneiro da mecânica quântica, o positivista seguidor de Mach e membro filiado do Partido Nazista, Pascual Jordan, são bastante elucidativos nesse sentido:

“…não apenas a consequente liquidação do materialismo é um resultado suficientemente importante, como também a concepção positivista oferece novas possibilidades de conceder espaço vital à religião sem contradição com o pensamento científico. Lembremos que o positivismo aceita observações e experiências experimentais como a única ‘realidade’ para o físico. A ênfase neste conceito nos leva ao fato de que há experiências possíveis que são bastante diferentes daquelas observações e resultados classificados no sistema do físico.”21

Essas palavras são admiráveis em sua clareza. São palavras de um contrarrevolucionário consciente de classe, que está perfeitamente ciente do conteúdo reacionário desse corpo de ideias. Ele vê nelas possibilidades para o obscurantismo ressurgir, com o total apoio do próprio establishment científico.

Mais do que isso, ele compreendeu sua utilidade na luta contra o comunismo. De fato, ofereceu colocar seu trabalho filosófico e científico a serviço do regime nazista como “antídoto ao materialismo dos bolcheviques”:

“É claro que a derrota do bolchevismo — que agora ameaça erguer novamente a cabeça entre vários povos vizinhos — é, antes de tudo, uma questão de decisão política e de força de combate ideológica e sanguínea, que não pode ser substituída por evidência científica. No entanto, parece ser um sinal significativo dos tempos o fato de que a cosmovisão materialista — vista como teoria científica — está sendo exposta como insustentável e contrária ao conhecimento científico justamente nas áreas da ciência que, desde o Renascimento, foram consideradas seu domínio mais seguro.”22

Devemos concordar com Jordan em ao menos um ponto: é de fato significativo que uma luta contra o materialismo tenha irrompido precisamente na arena da ciência.

Os grandes heróis da Revolução Científica — que coincidiu com a aurora da era capitalista — empunhavam uma ousada visão filosófica materialista em luta contra o medievalismo no pensamento. É um sinal da decadência da classe capitalista, que outrora produziu tais pioneiros, o fato de que o rumo geral de seu pensamento agora é novamente em direção ao medievalismo. Eles se voltam para longe da realidade, obscurecendo e semeando misticismo, a fim de enganar as massas.

A luta contra o idealismo está, portanto, ligada à luta por uma visão científica da sociedade e da natureza como um todo, e está ligada à luta do proletariado para alcançar uma compreensão clara de seus interesses e de suas tarefas históricas. Levaremos adiante essa luta, que é fundamentalmente parte da luta de classes que ocorre em todos os planos — dos quais o plano científico está longe de ser o menos importante.

  1. ROVELLI, C. Helgoland. London: Allen Lane, 2021. p. 1. ↩︎
  2. Idem, p. 2. ↩︎
  3. Idem, p. 12. ↩︎
  4. BOHR, N. Atomic Theory and the Description of Nature. In: BOHR, N. Collected Works, v. 6. Amsterdam: North-Holland Physics Publishing, 1985. p. 296. ↩︎
  5. ROVELLI, C. Helgoland. London: Allen Lane, 2021. p. 20. ↩︎
  6. Idem, p. 56. ↩︎
  7. LENIN, V. I. Materialism and Empirio-criticism. London: Wellred Books, 2021. p. 137–138. ↩︎
  8. ROVELLI, C. Helgoland. London: Allen Lane, 2021. p. 69. ↩︎
  9. Idem, p. 71. ↩︎
  10. Idem, p. 78. ↩︎
  11. Idem, p. 131. ↩︎
  12. Citado em ROVELLI, C. Helgoland. London: Allen Lane, 2021. p. 75. ↩︎
  13. NEW SCIENTIST. Issue 2950, 4 jan. 2014. ↩︎
  14. LENIN, V. I. Materialism and Empirio-criticism. London: Wellred Books, 2021. p. 218. ↩︎
  15. ROVELLI, C. Helgoland. London: Allen Lane, 2021. p. 105. ↩︎
  16. LENIN, V. I. Materialism and Empirio-criticism. London: Wellred Books, 2021. p. 210–211. ↩︎
  17. Idem, p. 227. ↩︎
  18. KASTRUP, B. Here I part ways with Rovelli. bernardokastrup.com, jun. 2021. ↩︎
  19. ROVELLI, C. Helgoland. London: Allen Lane, 2021. p. 114. ↩︎
  20. Idem, p. 111. ↩︎
  21. JORDAN, P. Physics of the 20th Century. New York: Philosophical Library, 1944. p. 160. ↩︎
  22. Citado em HOFFMANN, D.; WALKER, M. Der gute Nazi: Pascual Jordan und das Dritte Reich. Em: Pascual Jordan (1902–1980): Mainzer Symposium zum 100. Geburtstag. Berlin: Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte, 2007. p. 100. [tradução do autor] ↩︎