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Madagascar e o colapso da ociosidade revolucionária

Nas últimas semanas, vimos expressões do nível de descontentamento da classe trabalhadora e de sua juventude em várias revoltas ao redor do mundo, e agora Madagascar é mais uma nação a entrar na categoria do que a mídia vem chamando de “protestos da geração Z”.

As manifestações tiveram início em 25 de setembro, com a falta de água e luz sendo os catalisadores da revolta contra um sistema já muito desgastado, com corrupção e desigualdade aparentes dentro dessa sociedade. De acordo com o Banco Mundial, em 2022 cerca de 75% da população vivia abaixo da linha da pobreza.

O governo inicialmente respondeu impondo um toque de recolher e ordenando à polícia que confrontasse os manifestantes, o que resultou em mortes civis e na construção de barricadas por estes para se defenderem da polícia e continuarem os protestos. Entretanto, o que vimos na última semana foi as próprias forças de repressão se somarem aos protestos e se solidarizarem com as massas em revolta. Isso representa um salto de qualidade para o caráter dessas manifestações e põe em xeque o regime do Estado burguês malgaxe.

O que mais se destaca é que, assim como no Nepal, no dia 29 de setembro o presidente Andry Rajoelina dissolveu o governo numa tentativa não apenas de acalmar os protestos, mas de legitimar uma escalada do controle social e da repressão contra os manifestantes. Rajoelina nomeou como novo primeiro-ministro um general chamado Ruphin Zafisambo, o que continuou a descontentar os manifestantes. Tal indicação unilateral, acompanhada de um pedido de desculpas vazio que terceiriza a culpa como mera incompetência administrativa, e as centenas de mortos e feridos só podem ser vistas como uma afronta e um plano do governo para intensificar o confronto contra a população.

Assim, a resposta estatal não busca restaurar a ordem, mas reafirmar a hierarquia entre governantes e governados, a mesma que mantém, em nome da estabilidade e do capital, uma maioria faminta sob vigilância e silêncio.

Vemos mais um “Estado Democrático de Direito” sucumbir em suas próprias contradições e, em uma medida desesperada de manter o poder, essa mesma democracia torna-se subserviente ao controle estatal em prol do capital e da propriedade privada. Embora as autoridades de Madagascar não confessem a violência empregada, um relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) afirma que “manifestantes e pedestres foram mortos por membros das forças de segurança” e outros “durante a violência generalizada e os saques que se seguiram”.

A cobertura internacional exibe a revolta em linguagem de espetáculo. Os “protestos da geração Z” são enquadrados como desorganizados, irracionais ou ingênuos e responsáveis apenas por causar desordem e violência, uma tentativa midiática de neutralizar a força histórica desses movimentos. O sofrimento é transformado em imagem; a violência, convertida em narrativa, deixa de escandalizar e passa a entreter. Dessa forma, a própria revolta se torna mais uma mercadoria a ser consumida, comentada e esquecida.

É preciso salientar que a crise não é culpa de um governo específico, mas sim resultado das contradições inerentes a um Estado capitalista submetido ao capitalismo em sua fase superior: o imperialismo. A credibilidade do sistema para com a população está relacionada à capacidade que ele próprio tem de manipular e apresentar uma imagem de normalidade cotidiana. Entretanto, frente à incapacidade do sistema e de seus representantes de apresentarem uma saída concreta para a crise que eles mesmos criaram, e que hoje consome a vida e as condições de trabalho da juventude e dos trabalhadores, essa imagem é rasgada, e as revoltas são o exemplo dessa descrença das massas em relação a esse sistema. Quando a fome e a sede rompem o véu da anestesia, o cotidiano implode. O espetáculo, que se alimenta da passividade, vê-se ameaçado por aquilo que sempre tentou ocultar: a real miséria da vida.

Como em tantas outras partes do mundo, as ruas de Madagascar expressam o limite da apatia fabricada pelo capital. A indiferença global, que nos treina para assistir à dor como se fosse distante, cede lugar à irrupção do corpo coletivo. A revolta é o retorno do sensível, o colapso da ociosidade revolucionária. Essa situação revolucionária que se abre é fruto do detrimento das condições de vida não apenas em Madagascar, mas em todo o mundo, e quanto mais exemplos de revolta temos, maiores são as chances de os trabalhadores em outros países também se indignarem com sua própria realidade.

Apresentam-se também os limites das táticas dos liberais e dos reformistas. As instituições do Estado burguês nunca representaram a classe trabalhadora e sua juventude, e a ilusão sobre essas cai por terra. É preciso que a classe trabalhadora e a juventude malgaxe deem um salto à frente: organizar as revoltas em um movimento independente de toda classe, que não se limite apenas a reivindicações de reformas básicas e necessidades imediatas, mas que defenda o internacionalismo operário, a negação do poder estatal em prol do controle direto dos conselhos operários, estudantis e de bairro, a expropriação e o fim imediato de toda forma de propriedade alheia ao controle social, e a oposição a todo movimento contrarrevolucionário, externo ou interno. Sob risco de um retrocesso total, não apenas dos direitos até então obtidos, mas de uma substituição do modelo liberal-democrático de governo por um ainda mais autoritário, visto que o primeiro não foi capaz de manter a sociedade sob controle.

Risco este que está no caminho dos trabalhadores malgaxes, após o Corpo de Administração de Pessoal e Serviços do Exército de Terra (CAPSAT) se envolver nos protestos ao lado de milhares de manifestantes, expulsar o presidente Andry Rajoelina do país e anunciar, em 14 de outubro, a supressão da Constituição e a tomada do poder. Haverá um referendo constitucional que será conduzido pelo conselho militar, que tem dois anos para reconstruir as bases da nação. Para os interesses de quem? Dos imperialistas? Está nas mãos dos milhares de manifestantes uma solução.

Para tanto, é preciso construir e organizar a vanguarda dessa juventude e desses trabalhadores que se lançam à revolta, em um partido realmente revolucionário, que avance para uma mudança não apenas nacional, mas para toda a região, para todo o continente africano e para todo o mundo.