Uma recente série de documentários da BBC intitulada “Donos do Dinheiro” examinou as ideias de três gigantes da história da economia: Keynes, Hayek e Marx. Neste artigo, vamos comparar e confrontar suas ideias no contexto da presente crise do capitalismo, para vermos se algum deles e seus escritos têm realmente respostas para resolver os problemas que a sociedade enfrenta atualmente.
O fato de que uma série televisiva de horário nobre viesse a examinar estes três economistas políticos e suas ideias sobre crise econômica é um sinal muito revelador dos tempos que estamos vivendo. A atual crise – a mais profunda na história do capitalismo – está levando as pessoas a questionar todo o sistema econômico e a procurar por respostas para a questão de como podemos escapar da crise.
Durante décadas as doutrinas econômicas de capitalismo “laissez-faire” e de capitalismo regulado pelo governo foram apresentadas como as únicas alternativas, particularmente depois do colapso da economia planificada na URSS e do suposto “fim da história”. Esta “alternativa” é frequentemente apresentada como uma simples batalha entre dois lados: os que querem regular os mercados e os que exigem deixá-los livres. O nome de Hayek é normalmente associado àqueles que cantam louvores ao mercado livre e pregam a necessidade de se liberar a mão invisível do capitalismo. Entrementes, o keynesianismo volta à tona com os que olham esperançosos para os estímulos governamentais e pedem maior regulamentação da economia. Um “Keynes vs. Hayek rap” [Rap de Keynes contra Hayek] foi até mesmo composto para explicar esta batalha de ideias, com muito êxito de público.
Atualmente, ouvimos clamar por “empregos, investimentos e crescimento”; palavras estas que se tornaram o mantra dos líderes do movimento trabalhista que prometem uma “alternativa à austeridade”. Mas a dicotomia de “austeridade versus crescimento” é falsa. Estas palavras são apresentadas como polos opostos, mas na realidade apenas representam as duas alas ideológicas da mesma classe capitalista – monetarismo e keynesianismo – nenhuma das quais tem uma solução real para a crise – que é uma crise do próprio sistema.
A crise global que começou em 2007-08 – e que continuou e se aprofundou desde então – obrigou a muitos comentaristas a rever e examinar as ideias de Hayek e Keynes, em busca de uma resposta à questão da causa da crise e, o que é talvez ainda mais importante, de como poderemos sair dela. Mas como a crise entra em seu quinto ano, cada vez mais pessoas estão começando a perceber que esta não é somente uma questão de “mercado livre versus regulação” ou de “austeridade versus crescimento”, e estão de fato questionando o próprio sistema capitalista. Em consequência, as ideias de Marx estão ganhando popularidade e um crescente número de pessoas está dizendo “Marx estava certo”.
Quem era Keynes?
É irônico que o keynesianismo tenha hoje se tornado a ideologia dominante do movimento trabalhista, enquanto o próprio Keynes declarava abertamente seus interesses de classe ao afirmar que “a guerra de classe encontrar-me-á do lado da burguesia educada”. Ele era abertamente contrário ao socialismo, ao Bolchevismo e à Revolução Russa e foi consultor econômico e membro vitalício do Partido Liberal, o clássico partido do capitalismo britânico no século XIX e início do século XX.
Como todas as figuras políticas e econômicas, Keynes era um produto de seu tempo; um produto de certas condições materiais históricas. Os primeiros representantes da economia política burguesa, como Adam Smith e David Ricardo, eram produtos de um capitalismo que ainda não se tinha desenvolvido plenamente e que ainda desempenhava um papel progressista. No contexto deste capitalismo imaturo, estes economistas “clássicos” somente podiam adquirir a compreensão e a análise do sistema capitalista até este ponto. Foi somente com o desenvolvimento posterior do capitalismo, e da massa acumulada de evidências e experiências que acompanhou esse desenvolvimento, incluindo a experiência de repetidos booms e recessões, que Marx foi capaz de desvendar a verdadeira natureza do capitalismo, como, por exemplo, os processos e relações reais que jazem por trás do valor e da crise. Como Marx explica em O Capital:
“Teoricamente, partimos do princípio de que as leis do modo capitalista de produção se desenvolvem em sua forma mais pura. Na realidade, trata-se apenas de uma aproximação; mas a aproximação é cada vez mais exata quanto mais o modo de produção capitalista se desenvolve e menos fica adulterado pelas sobrevivências das condições econômicas anteriores com as quais se amalgamaram” (O Capital, Volume III, capítulo 10; Marx).
Em muitos aspectos, Ricardo foi o ponto alto dos economistas políticos burgueses. Marx descreveu os que vieram depois de Ricardo como economistas “vulgares”, devido à forma grosseira como eles iam e vinham em suas tentativas de explicar e resolver as contradições do capitalismo sem por em xeque o próprio capitalismo. Marx explicou as contradições dentro do capitalismo que levavam a crises periódicas; quaisquer tentativas de abolir estas contradições sem abolir o próprio capitalismo estavam condenadas ao fracasso.
Em vez de fazer avançar a economia política e de desenvolver uma maior compreensão do capitalismo, os teóricos posteriores da economia se deixaram ultrapassar. Em particular, com o desenvolvimento histórico do capital financeiro e a crescente separação entre os proprietários de capital e o real processo de produção – um processo que Marx já tinha começado a explicar com grandes detalhes no volume III de O Capital – emergiu uma visão extremamente subjetiva da economia. Esta teoria econômica individualista e idealista, conhecida como teoria marginalista, descartou quase tudo o que era útil das teorias de Smith e Ricardo – uma vez que uma análise aprofundada, baseada nestas ideias, inevitavelmente levaria à conclusão de que o capitalismo estava crivado de contradições, como Marx havia concluído – e, em vez disso, abraçaram uma visão unilateral do capitalismo em que tudo era determinado pela “mão invisível” do mercado e pelas forças da demanda e da procura. Estas ideias refletiam o crescente papel da banca e da especulação – a economia do rendimento, em que a burguesia não era mais a direta proprietária dos meios de produção nem manejava mais diretamente seus próprios negócios, mas que agora se tornara simplesmente investidora, buscando maximizar o retorno de seu capital de qualquer forma possível.
Keynes desdenhou esta economia do rendimento, que ele via como um grande elemento desestabilizador de todo o sistema econômico: “Com a separação entre propriedade e administração que prevalece nos dias atuais e com o desenvolvimento dos mercados organizados de investimento, um novo fator de grande importância emergiu, o qual algumas vezes facilita o investimento, mas que algumas vezes adiciona fortes instabilidades ao sistema”.
E mais tarde:
“Os especuladores podem não causar danos enquanto são apenas bolhas no fluxo contínuo da empresa. Mas a situação fica séria quando a empresa se torna a bolha em um redemoinho de especulação. Quando o desenvolvimento do capital de um país se torna um subproduto das atividades de cassino, o emprego pode se tornar difícil” (A Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, capítulo 12; John Maynard Keynes).
Para Keynes, o problema não era o capitalismo, mas apenas o capitalismo “laissez-faire”, em que os mercados desregulados e os investidores ficam livres para perseguir seu próprio lucro individual sem qualquer cuidado com o restante da sociedade, dizendo que: “De minha parte, acredito que há justificação social e psicológica para significativas desigualdades de rendas e riqueza, mas não para tão grandes disparidades como as hoje existentes” (Ibid., capítulo 24).
E: “De minha parte, penso que o capitalismo, sabiamente administrado, provavelmente será mais eficiente para atingir objetivos econômicos do que qualquer sistema alternativo à vista, mas que deixado à vontade é de muitas formas extremamente censurável” (“O fim do laissez-faire”, capítulo 5, Keynes).
Keynes desejava um retorno aos “bons velhos tempos”, nos quais a classe capitalista era formada por industriais “responsáveis” que investiam para o bem de suas comunidades e para a sociedade como um todo. Em outras palavras, Keynes queria fazer a roda da história girar para trás, para um tempo imaginário de “capitalismo responsável”. A este respeito, pode-se ver a atração que as ideias de Keynes exercem sobre os modernos líderes reformistas do movimento trabalhista, que aceitaram totalmente o capitalismo e abandonaram qualquer ideia de transformação da sociedade (Keynes até mesmo sugeriu um imposto para as transações financeiras, uma bandeira que se tornou um ponto chave no programa dos modernos reformistas). As mesmas frases são hoje ouvidas das bocas destes líderes reformistas, que culpam o capitalismo “neoliberal”, “desregulado” e “selvagem” pela crise. Mas esta é a natureza real do capitalismo, como ele existe; todas as tentativas de regular o capitalismo para torná-lo “afável” ou “responsável” são utópicas, como já explicamos em outras ocasiões.
O que é o Keynesianismo?
As ideias de Keynes foram mudando ao longo de sua vida, como uma resposta aos acontecimentos que mudavam em torno dele, algo de que se orgulhava como a famosa resposta às críticas de que sua visão era inconsequente: “Quando muda minha informação, altero minhas conclusões. O que você faria, sir?”. Atualmente, contudo, o keynesianismo se refere tipicamente às ideias de Keynes dos anos 1930, e em particular a sua “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro” (muitas vezes citada como a “Teoria Geral”), que é a base para a maior parte da economia macroeconômica burguesa.
As ideias apresentadas por Keynes em sua Teoria Geral também foram sendo modeladas pelos acontecimentos históricos; particularmente pela Grande Depressão e pelo açoite do desemprego em massa que se via por todo o mundo industrializado, com permanentes altas taxas de desemprego nesta região entre 10-25%. Keynes buscava encontrar uma explicação para este fenômeno, e, destacadamente, encontrar uma solução. Os economistas burgueses anteriores buscavam justificar o capitalismo teoricamente; estas pessoas eram meros apologistas do capitalismo. Keynes, no entanto, considerava-se um “pragmático”, que não estava simplesmente tentando justificar o capitalismo teoricamente, estava tentando salvar o capitalismo na prática – para salvar o próprio capitalismo.
Keynes via o seu papel e o papel do estado em geral do ponto de vista de membro da “burguesia educada”, para intervir no manejo do capitalismo e regulá-lo – não no interesse da classe trabalhadora, mas no interesse do próprio capitalismo – para superar a contradição entre os interesses de vários capitalistas individuais e o interesse da classe capitalista como um todo. Em outras palavras, Keynes queria o capitalismo sem suas contradições.
Contradições e Superprodução
Esta contradição, que procede da propriedade privada dos meios de produção – que, por sua vez, significa produção para o lucro e concorrência entre diferentes indivíduos privados em busca de seu lucro – está no cerne do capitalismo e é responsável tanto por seu grande e histórico caráter progressista quanto por seu grande caráter destrutivo.
Como aponta corretamente a série da BBC “Donos do Dinheiro”, Marx (e Engels) reconheceram as conquistas do capitalismo, e não enalteceram o feudalismo e a vida rural (de fato, no Manifesto Comunista, Marx e Engels descreveram o capitalismo como “tendo salvado considerável parte da população da idiotia da vida rural”). Sob o capitalismo, a concorrência entre os capitalistas individuais na busca do lucro faz com que grande parte deste lucro seja continuamente reinvestida em novas atividades de pesquisa e desenvolvimento, em nova ciência e tecnologia e em novos meios de produção, para reduzir custos, enfraquecer os concorrentes e conquistar uma cota maior do mercado. Em seus primeiros dias, portanto, o capitalismo foi imensamente progressista em sua capacidade de aumentar a produtividade, desenvolver a capacidade produtiva da sociedade e criar uma imensa quantidade de riqueza. Como Marx e Engels afirmaram no Manifesto Comunista:“[O capitalismo] logrou maravilhas superando de longe as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas”.
Mas este processo de propriedade privada e concorrência contém as sementes de sua própria destruição. É do interesse do capitalista, tomado individualmente, pagar aos seus próprios trabalhadores o mínimo possível para maximizar os lucros. Contudo, estes salários – e os salários dos trabalhadores empregados por outros capitalistas – também criam a demanda para as mercadorias que o capitalismo produz, isto é, o mercado. Cada capitalista, tomado individualmente, adoraria pagar aos seus trabalhadores o menos possível para maximizar lucros; mas, ao mesmo tempo, este capitalista também gostaria que seus colegas capitalistas pagassem aos seus trabalhadores o máximo possível de tal forma que estes trabalhadores pudessem comprar as mercadorias que estão sendo produzidas.
Contudo, todos os capitalistas estão tentando fazer a mesma coisa; dessa forma, enquanto capitalistas isolados que competem uns contra os outros, tentando maximizar seus próprios lucros, cortam os salários da classe trabalhadora como um todo, reduzindo então o mercado e destruindo a base sobre a qual podem vender suas mercadorias e realizar seus lucros. É este processo interativo de concorrência entre muitos capitalistas individuais – cada um deles tomando decisões que são totalmente racionais de sua própria perspectiva individual – que leva a um processo geral que é claramente irracional para a classe capitalista como um todo.
Há muito que Marx descobriu e explicou esta contradição inerente ao capitalismo – a contradição da superprodução, na qual a expansão da produção em busca do lucro leva, ao mesmo tempo, a uma redução da possibilidade deste lucro ser realizado. Os que vieram depois de Marx e que tentaram encontrar uma solução para as crises nos limites do capitalismo foram forçados a ignorá-lo e às suas ideias tanto quanto possível e, em vez disso, procuraram explicar as crises olhando apenas para um dos lados do problema. Para Keynes, o problema principal era a questão da demanda – ou da “demanda efetiva”, como ele se referia; para Hayek, o problema chave era a questão da oferta – em particular da oferta de dinheiro.
A lei de Say
A fim de tentar explicar o fenômeno da Grande Depressão e do desemprego em massa, Keynes teve que romper com muitas hipóteses estabelecidas da economia clássica. A este respeito, atribui-se a Keynes ter causado uma “revolução” na teoria econômica. Na realidade, não há nada de novo no que Keynes disse e a maioria de suas ideias já tinha sido expressa de forma muito mais precisa, minuciosa e clara nos escritos de Marx e Engels; Keynes meramente empacotou suas ideias de uma forma que fosse mais palatável para a burguesia.
Em particular, Keynes atacou o que é conhecido como “Lei de Say”, atribuída a Jean Baptiste Say (embora não tenha sido originalmente “descoberta” por ele), um economista clássico francês do final do século XVIII e início do século XIX. A Lei de Say é comumente referida nos termos da ideia de que a oferta cria sua própria demanda; de que todo vendedor traz um comprador para o mercado. Hoje em dia, esta mesma “lei” é a base da “hipótese do mercado eficiente” – teoria avançada pela maioria dos mais ardentes defensores do mercado livre – que sugere que, se deixadas ao seu livre curso, no longo prazo as forças do mercado vão resolver todos os problemas e sempre encontrarão um “equilíbrio” no qual a oferta e a demanda se encontrem. Mas, como Keynes fez questão de salientar, “no longo prazo todos estaremos mortos”.
Marx refutou a Lei de Say há muito (de fato, a presença de crises periódicas é tudo o que se necessita para refutar a Lei de Say!). No Livro II de O Capital, Marx explicou a acumulação e a reprodução de capital, que ocorre sob o capitalismo, através de um conjunto de esquemas, no qual a economia é dividida em dois setores: o Departamento I, em que os meios de produção – isto é, bens de capital ou “consumo produtivo” – são produzidos; e o Departamento II, em que bens de consumo, para o consumo individual dos trabalhadores (ou dos capitalistas) são produzidos.
Marx mostrou que em um sentido teórico abstrato, a Lei de Say é realmente verdadeira – a economia estaria apta para encontrar o equilíbrio. Mas Marx demonstrou que este equilíbrio somente poderia ser obtido na base do reinvestimento contínuo dos lucros da classe capitalista em novos bens de capital – isto é, em maquinaria, construções e infraestrutura. Por um lado, este processo permitiu ao capitalismo desempenhar um papel progressista histórico durante um período de tempo – para desenvolver os meios de produção, tanto qualitativamente em termos de uma nova ciência e tecnologia (e dessa forma aumentando a produtividade), como também quantitativamente em termos de sua capacidade de produzir uma maior massa total de riqueza.
Por outro lado, este processo também contém contradições inerentes: o “equilíbrio” é um deles inerentemente instável e temporário, uma vez que estes novos meios de produção que são criados devem ser postos a trabalhar para criar uma maior quantidade de mercadorias, que, por sua vez, devem encontrar um mercado (isto é, demanda) para ser vendida e para o lucro ser realizado. Em outras palavras, o capitalismo encontra equilíbrio no curto prazo, mas somente à custa de criar ainda maiores contradições no longo prazo, e, dessa forma, pavimenta o caminho para uma crise ainda maior no futuro. O próprio Keynes admitia isto, dizendo que: “Toda vez que asseguramos o equilíbrio de hoje através do aumento dos investimentos estamos agravando a dificuldade de assegurar o equilíbrio de amanhã” (“A Teoria Geral”, capítulo 8; Keynes).
Contudo, ao contrário de Marx, Keynes não era aprofundado em materialismo dialético, e, dessa forma, não retirou todas as conclusões desta declaração, como Marx tinha feito muitas décadas antes – a conclusão de que uma superprodução é uma contradição inerente ao capitalismo, resultante da propriedade privada dos meios de produção e de estar dirigida à produção de lucros.
Materialismo Dialético
Os esquemas de acumulação e reprodução esboçados por Marx no Livro II de O Capital são precisamente isto: esquemas; generalizações abstratas de um processo complexo; médias de longo prazo, que não podem ser alcançadas através de um processo de mudança lenta, suave, linear, mas unicamente através de um processo dinâmico e caótico – isto é, um processo dialético de contradições e crises. Em outras palavras, estes “equilíbrios” são equilíbrios dinâmicos – sendo constantemente estabelecidos e em seguida rompidos – resultantes de um processo infinitamente complexo, em vez do equilíbrio estático concebido pelos defensores da Lei de Say, que imaginam a economia como um simples sistema mecânico, avançando como um relógio.
Stephanie Flanders, apresentadora de “Donos do Dinheiro”, reivindica que Keynes, Hayek e Marx tinham uma coisa em comum: “eles entendiam tanto o gênio do capitalismo quanto sua instabilidade inerente”. Mas enquanto Keynes e Hayek pensavam que seria possível retificá-lo ou regulá-lo, para separar os elementos do “gênio” dos da instabilidade geral, o marxismo – usando o método do materialismo dialético – mostra que os fatores que causaram o caráter progressivo inicial do capitalismo – isto é, a concorrência e o reinvestimento de lucros em nova tecnologia e meios de produção para gerar ainda maiores lucros – são os mesmos fatores que levam à inerente instabilidade do capitalismo.
A chave da análise de Marx do capitalismo está exatamente na forma como este método do materialismo dialético é aplicado ao campo da economia política. A natureza anárquica do capitalismo – resultante da propriedade privada dos meios de produção e da concorrência ao lucro que isto implica – significa que mudanças na economia devem ocorrer de forma dialética, através de crises, mais do que pela forma plana e gradual como imaginam os defensores das forças do mercado e da oferta e demanda.
Os desequilíbrios vistos sob o capitalismo – isto é, entre produção e consumo; entre as forças sempre crescentes da produção e os limites do mercado para os produtos resultantes destas forças produtivas – fazem parte inerente deste sistema anárquico e são vistas em todas as escalas no capitalismo, como, por exemplo, a desproporção entre os diferentes Departamentos da economia e mesmo dentro de um único setor (daí os gargalos na produção). Mas a única forma para livrar o sistema destes desequilíbrios é exatamente eliminar a anarquia do próprio sistema capitalista – ou seja, dispor de um plano de produção democrático e socializado sob o controle consciente da sociedade, ao invés de sob o domínio das forças cegas do mercado – como Marx explica em O Capital: “O objetivo do capital não é satisfazer as necessidades, mas produzir lucro, alcançando essa finalidade por métodos que regulam o volume da produção pela escala da produção, e não o contrário. Por isso, terá sempre de haver discrepância entre as dimensões limitadas do consumo em base capitalista e uma produção que procura constantemente ultrapassar o limite que lhe é imanente. Além disso, o capital consiste em mercadorias e a superprodução de capital implica, portanto, a de mercadorias. Admira por isso ver economistas que negam a superprodução de mercadorias admitirem a de capital. Dizer que não há superprodução geral e sim desproporção entre os diversos ramos de produção equivale a afirmar que, na produção capitalista, a proporcionalidade entre os diferentes ramos de produção se revela processo constante oriundo da desproporcionalidade, impondo-se aos agentes da produção a conexão interna de toda a produção como lei cega e não como lei apreendida racional e coletivamente, por isso dominada e mediante a qual teriam eles submetido o processo de produção a seu controle comum” (O Capital, Volume III, capítulo 15; Marx).
As limitações dos economistas clássicos e dos modernos defensores do livre mercado – ou seja, os monetaristas – decorrem precisamente de seu tratamento não dialético da economia. Para estes teóricos econômicos, a economia é um sistema simples e mecânico. Suas explicações são ora construídas sobre o modelo “Robinson Crusoé” da economia, em que existe apenas um indivíduo em uma ilha deserta e que é tanto produtor quanto consumidor, ora são semelhantes àquelas de uma simples economia de escambo, consistindo na troca de mercadorias entre os produtores individuais. Em ambos os casos, através da abstração da economia a este nível do indivíduo ou de uma simples troca entre produtores individuais, os economistas burgueses removem toda menção à divisão da sociedade em classes e à resultante luta que se eleva disto pelo excedente produzido na sociedade.
Em lugar de ver os modelos matemáticos da economia como abstrações e aproximações generalizadas de uma realidade infinitamente complexa, o que eles realmente são, os economistas burgueses modernos pensam que as equações são a realidade e que a economia deve estar em conformidade com seus modelos. Em vez de fazer a teoria se ajustar aos fatos, os fatos são forçados a se ajustar à teoria. Tendência idealista similar pode ser vista na moderna física, segundo a qual as teorias são julgadas pela beleza e simplicidade das equações, em vez de quão bem elas se ajustam aos fatos e explicam a vida real atual dos fenômenos existentes.
Em contraste a esta abordagem idealista, a economia marxista – baseada na visão de mundo materialista e dialética – busca chegar a conclusões generalizadoras voltando o olhar para a multidão de eventos e para a experiência histórica sob o capitalismo (e dos sistemas econômicos das sociedades de classe anteriores). Como afirma Engels em sua polêmica contra Dühring: “(…) os princípios já não são o ponto de partida da investigação, mas seus resultados finais; não se aplicam à natureza e a história humana, mas deles são abstraídos; não é a natureza e o mundo dos homens que se regem pelos princípios, mas só estes é que têm razão de ser quando coincidem com a natureza e com a história. Nisto consiste a verdadeira concepção materialista da história, o oposto do que afirma o sr. Dühring, que é idealista e cuja concepção inverte todas as coisas, construindo o mundo real partindo da ideia, de uma série de esquemas, planos, categorias existentes e de valor eterno e anterior à existência do mundo, nada mais e nada menos que…um Hegel” (Anti-Dühring, capítulo III, Engels).
Contudo, também existe uma tendência oposta da ideologia burguesa que tenta negar a existência de quaisquer leis dentro do capitalismo. Para estas pessoas, a história e a economia são processos aleatórios, longe do domínio da investigação científica. Este conceito é igualmente tão idealista quanto à visão mecânica dos economistas clássicos, só que apontando para a direção oposta.
Economia e Ciência
Stephanie Flanders na série “Donos do Dinheiro” sublinha esta tendência compartilhada por Keynes e Hayek de ver a economia como algo inerentemente imprevisível. Ambos os cavalheiros procuraram transformar a economia em uma ciência séria; mas, ainda assim, de acordo com Flanders, ambos viam o capitalismo como um sistema completamente imprevisível, devido a sua natureza caótica e complexa. Esta visão, que é ao mesmo tempo não dialética e idealista, é incompatível com a visão genuinamente científica e marxista, que vê a ordem surgir do caos; uma previsibilidade decorrente da imprevisibilidade como já explicamos em outra oportunidade.
A economia, naturalmente, não é uma ciência exata no mesmo sentido da mecânica, devido à complexidade do sistema envolvido e à impossibilidade de isolar este sistema do resto do mundo. Não podemos criar experimentos repetíveis de laboratório no mundo econômico (embora isto não tenha detido economistas como Milton Friedman da escola de Chicago do monetarismo – um defensor extremo do livre mercado e do laissez-faire capitalista – de tentar criar experimentos sociais com suas teorias econômicas, como foi feito no Chile sob o general Pinochet); no entanto, observando a variedade de eventos e processos que ocorrem, e comparando estes eventos uns contra os outros, em termos de seus resultados, variáveis e constantes, pode-se identificar as contradições dentro do processo e formular leis que descrevem – e preveem – o comportamento básico do sistema em determinada escala.
A este respeito, a economia é semelhante à medicina, à meteorologia ou à geologia. Um médico não pode sempre nos dizer exatamente qual o tipo de doença que temos ou em que momento a morte pode ocorrer; nem podem os meteorologistas ou especialistas em sismologia dizer-nos exatamente como será o tempo nos próximos meses ou quando o próximo terremoto acontecerá. Apesar disto, médicos, meteorologistas e especialistas em sismologia podem fazer previsões – e muitas vezes com muita precisão – em determinada escala, e a precisão destas previsões aumenta continuamente a compreensão científica na base da experiência e da investigação.
Pode-se fazer uma analogia com a termodinâmica. O comportamento de uma molécula de gás individual e isolada pode ser descrito usando-se a mecânica newtoniana; contudo, o comportamento desta partícula individual se torna imprevisível tão logo examinamos um container de muitas centenas de milhares de moléculas de gás, todas interagindo umas com as outras. No entanto, como resultado deste sistema incrivelmente complexo, pode-se ainda encontrar leis simples e generalizadoras que descrevam o comportamento do volume de gás como um todo, incluindo propriedades como a temperatura e a pressão do gás. Da complexidade nasce a simplicidade; como resultado do caos, aparece a ordem.
Da mesma forma, embora só se possa prever o resultado exato da vida de um indivíduo, na escala da sociedade como um todo, leis generalizadoras podem ser extraídas e as previsões podem ser feitas, tais como as leis econômicas da crise capitalista e as leis históricas do desenvolvimento dos meios de produção, da luta de classes e da revolução.
Em última instância, contudo, estas leis generalizadoras e teorias econômicas, que são captadas da experiência e da investigação histórica, devem ser aplicadas às condições concretas que enfrentamos para se obter uma compreensão adequada de determinada situação; estas condições incluem uma série de fatores políticos. Não se deve nunca esquecer que a economia não é um sistema simplesmente mecânico que pode ser representado por abstrações e equações; ela é um campo de batalha de forças vivas, e, em última análise, é o equilíbrio de forças de classes que determina o resultado de qualquer situação econômica determinada.
Deve-se creditar a Keynes e a Hayek o fato de que, como Marx, procuraram tratar a economia como uma ciência, olhando para as leis que governam a economia através de um cuidadoso estudo dos fatos. No entanto, diferentemente de Marx, nem Keynes nem Hayek eram pensadores materialistas, ou dialéticos. Em consequência, suas explicações teóricas frequentemente caem nas armadilhas descritas anteriormente: ou do idealismo, apenas olhando para um dos lados do múltiplo e complexo problema, e assim fracassando em proporcionar uma explicação material para o fenômeno; ou do materialismo mecânico, procurando explicar a economia como um sistema simples de um relógio em que causa e efeito são lineares e agem apenas em uma só direção.
A Teoria Geral
Keynes desprezou igualmente a natureza idealista e dogmática dos economistas burgueses seus contemporâneos, que, enfrentados à crise da Grande Depressão e ao claro fracasso do livre mercado, recusaram abandonar suas hipóteses, incluindo àquelas da Lei de Say, e sua fé na mão invisível. Em sua crítica dos economistas clássicos, Keynes disse que:
“Os escritores da tradição clássica, tendo em vista o pressuposto especial subjacente de suas teorias, inevitavelmente chegam à conclusão, perfeitamente lógica em seus pressupostos, de que o desemprego aparente (além das exceções admissíveis) deve se dever no fundo a uma recusa dos desempregados em aceitar uma recompensa que corresponda a sua produtividade marginal…
“… Os teóricos clássicos se assemelham a geômetras euclidianos em um mundo não euclidiano que, descobrindo que na prática retas aparentemente paralelas muitas vezes se encontram, repreendem as linhas por não se manter retas como o único remédio para as desafortunadas colisões que estão ocorrendo. Mas, na verdade, não há nenhum remédio exceto descartar o axioma das paralelas e trabalhar com a geometria não euclidiana. Algo semelhante se exige hoje na economia” (A Teoria Geral, capítulo 2, Keynes).
Em resposta aos seus pares do cenário político e econômico que buscavam soluções aos problemas do desemprego em massa e da recessão pelo “lado da oferta” – ou seja, eliminando as barreiras ao livre mercado, tais como os sindicatos, que na visão desses economistas restringiam a capacidade do mercado para encontrar o “equilíbrio natural” para os salários – Keynes “inclinou a vara” na direção oposta e simplesmente focalizou a questão da demanda, ou da “demanda efetiva” como ele se referia – ou seja, a capacidade dos produtores de mercadorias de encontrar a vontade compradora que seja capaz de pagá-las (em oposição à demanda no sentido das “necessidades” ou “desejos” na sociedade).
Como já explicamos anteriormente, Keynes via a crise da Grande Depressão como um círculo vicioso no qual o alto desemprego resultava em uma demanda efetiva reduzida por mercadorias, o que, por seu lado, levava as empresas a reduzir ou fechar, e dessa forma aumentar o desemprego ainda mais. Em tal situação, Keynes acreditava que estímulos governamentais eram necessários para dar um impulso à demanda efetiva e, dessa forma, transformar o círculo vicioso em virtuoso, com demanda crescente do governo levando a uma expansão da produção e do emprego, e, dessa forma, salários mais elevados e maior demanda por bens de consumo etc., etc.
Para Keynes, qualquer estímulo seria suficiente, como ironicamente comenta em A Teoria Geral: “A construção de pirâmides, os terremotos e mesmo as guerras podem servir para aumentar a riqueza, se a cultura de nossos estadistas sobre os princípios da economia se mantiver em um caminho algo melhor…
“(…) Se fosse para deixar o Tesouro cheio de notas bancárias, seria mais adequado enterrá-las em velhas garrafas nas profundezas das minas de carvão em desuso, que são atualmente preenchidas até a superfície com o lixo urbano, e entregá-las às empresas privadas com seus preciosos princípios de laissez-faire para extrair mais uma vez as notas (o direito de fazer isto seria obtido, naturalmente, através de concurso para arrendamento da área minerável de notas), não haveria mais desemprego e, com a ajuda das repercussões do fato, a renda real da comunidade, e sua riqueza de capital também, provavelmente se tornariam um bom negócio, maior do que realmente é. Seria, de fato, mais recomendável construir moradias e coisas semelhantes; mas, se houver dificuldades políticas e práticas neste último caminho, a recomendação acima seria melhor que nada” (A Teoria Geral, capítulo 10, Keynes).
O New Deal dos EUA nos anos 1930 é frequentemente citado como um êxito das políticas do keynesianismo, mas, como o episódio de “Donos do Dinheiro” sobre Keynes sublinhou, foi somente a militarização da economia durante a II Guerra Mundial que deu um fim à Grande Depressão, um processo que terminou em milhões de mortos, na destruição de gigantescas quantidades de capacidade de produção da sociedade e levou a uma dívida pública de mais de 200% do PIB em países como a Grã-Bretanha – dificilmente isto pode ser considerado um êxito!
Subconsumo e superprodução
Essencialmente, a explicação keynesiana da crise é uma teoria de “subconsumo” – ou seja, de uma falta de demanda dos consumidores para as mercadorias que são produzidas. Como já explicamos em outra ocasião, o marxismo, em contraste, vê a crise capitalista como uma crise de “superprodução” – ou seja, que o capitalismo é inerentemente incapaz de encontrar um mercado para todas as mercadorias que são produzidas. Isto decorre do fato de que o capitalismo é produção para o lucro, e este lucro é simplesmente o trabalho não pago da classe trabalhadora. Em outras palavras, a classe trabalhadora é sempre paga em salários menos do que o valor que ela cria no processo de trabalho; dessa forma, sua capacidade de comprar as mercadorias que produz é sempre menor que o valor total destas mercadorias. Mercadorias são produzidas, mas não podem ser vendidas; o lucro não pode ser realizado; a produção cessa e o sistema entre em crise.
A ideia keynesiana de criar demanda através de estímulos governamentais é basicamente idealista e antidialética. Uma só questão deve ser respondida: onde os governos obtêm o dinheiro para estes estímulos? Se o dinheiro vem dos impostos, então isto quer dizer: ou tributar a classe capitalista, o que significa uma mordida em seus lucros, criando uma greve de capital e, dessa forma, reduzindo investimentos; ou tributar a classe trabalhadora, o que reduzirá o seu poder de consumo e, dessa forma, reduzindo a demanda – o oposto do que os estímulos governamentais pretendiam fazer!
Em tempos modernos, o governo foi recorrendo cada vez mais ao empréstimo de dinheiro do mercado financeiro, através da venda de bônus governamentais. Mas com o socorro financeiro dos bancos e com o colapso das receitas fiscais, os países foram deixados com grandes dívidas e déficits, e os mercados financeiros globais, em vez de financiar os empréstimos do governo, estão insistindo para que os governos cortem o gasto público.
Para os keynesianos e líderes reformistas do movimento dos trabalhadores, que se inspiram nas ideias keynesianas, a resposta é simples: devemos tributar os ricos e aumentar salários! Mas sob o capitalismo, como explicamos acima, a produção é para o lucro e a classe trabalhadora nunca pode receber em salários o valor pleno das mercadorias que produz, como Marx explicou em O Capital em resposta às teorias subconsumistas de seus dias: “É mera tautologia dizer que as crises decorrem da carência de consumo solvente ou de consumidores capazes de pagar. O sistema capitalista não conhece outra espécie de consumo além do solvente, excetuados os casos do indigente e do gatuno. Ficarem as mercadorias invendáveis significa apenas que não encontraram compradores capazes de pagar, isto é, consumidores (sejam as mercadorias compradas, em última análise, para consumo produtivo ou para consumo individual). Mas se, para dar a essa tautologia aparência de justificação mais profunda, se diz que a classe trabalhadora recebe parte demasiado pequena do próprio produto, e que o mal estar seria remediado logo que recebesse parte maior, com aumento dos salários – bastará então observar que as crises são sempre preparadas justamente por um período em que os salários geralmente sobem e a classe trabalhadora tem de maneira efetiva participação maior na fração do produto anual destinada a consumo. Esse período, de acordo com o ponto de vista desses cavalheiros do ‘simples’ bom-senso, teria, ao contrário, de afastar as crises. A produção capitalista patenteia-se, portanto, independente da boa ou má vontade dos homens, implicando condições que permitem aquela relativa prosperidade da classe trabalhadora apenas momentaneamente e como sinal prenunciador de uma crise”).
Igualmente, a explicação keynesiana para a crise não é, na verdade, uma explicação das causas da crise capitalista. Na melhor das hipóteses, é uma explicação da continuação ou aprofundamento de uma crise que já existe na economia, ou uma recomendação de como os governos podem tentar escapar de uma crise sem sair dos limites do capitalismo. Se uma carência de demanda solvente – ou seja, o subconsumo – é a culpada da crise, então apenas se pode perguntar: o que levou a este subconsumo em primeiro lugar? Como Engels afirmou em sua polêmica contra Dühring: “[O] subconsumo das massas, a restrição do consumo das massas do que necessitam para sua manutenção e reprodução, não é um fenômeno novo. Existe desde que há classes exploradoras e classes exploradas…
“(…) O subconsumo das massas é condição necessária a todas as formas de sociedade baseadas na exploração, consequentemente também à forma capitalista; mas é a forma capitalista a que primeiro causou crises. O subconsumo das massas é, portanto, uma condição pré-requisito das crises e desempenha nelas um papel que é reconhecido há muito tempo. Mas isto nos diz muito pouco por que as crises de hoje não são como as crises anteriores” (Anti-Dühring, Parte III, capítulo 3, Engels).
Em outras palavras, uma vez que a classe trabalhadora nunca pode comprar todas as mercadorias que ela produz, por que o capitalismo não está sempre em crise?
Historicamente, esta contradição da superprodução tem sido superada através do papel do investimento, através do qual os capitalistas gastam e investem continuamente uma grande porção de seus lucros em novos meios de produção – em pesquisa e nova maquinaria, para elevar a produtividade, reduzir custos, ganhar uma maior fatia do mercado e aumentar os lucros ainda mais. Como explicado anteriormente, é este investimento, decorrente da concorrência e da busca de lucros, que permite ao capitalismo desempenhar um papel historicamente progressista no desenvolvimento dos meios de produção. Mas, como também foi explicado anteriormente, este reivestimento de lucros, em vez de resolver a contradição da superprodução e restaurar o equilíbrio econômico, somente cria forças produtivas ainda maiores – produzindo maiores quantidades de mercadorias e valores, que devem ainda ser vendidas em um mercado continuamente restrito – dessa forma, exacerbando as contradições e preparando o caminho para maiores crises no futuro.
O investimento improdutivo – tal como o exemplo anterior dado por Keynes de enterrar garrafas velhas cheias de notas bancárias – também foi usado no passado para proporcionar demanda e criar empregos. Por exemplo, havia um determinado número de supostos marxistas durante o boom do pós-guerra que acreditava que o gasto militar do governo poderia ser usado para se evitar, de forma permanente, uma crise. Mas, como já foi apontado, os governos não podem simplesmente “criar” demanda; na realidade, eles devem levantar seu dinheiro tomando um pedaço da riqueza ou dos capitalistas ou dos trabalhadores. Este investimento improdutivo é gasto sem se produzir qualquer valor real e serve como capital fictício, que, no final das contas, gera inflação – ou seja, aumenta a circulação de dinheiro na economia sem gerar um valor equivalente que também está na circulação. Isto é exatamente o que foi visto no final do boom do pós-guerra, por meio do qual as políticas keynesianas levaram à crise dos anos 1970, em que a estagnação econômica veio acompanhada do aumento da inflação – um fenômeno nunca visto antes conhecido como “estagflação”.
Tudo isto mostra a natureza antidialética e mecânica do keynesianismo e outras soluções reformistas das crises, que não segue através das implicaçãoes de suas sugestões até a sua conclusão lógica. Se o investimento é utilizado para evitar uma crise, isto significa investir em algo material – ou seja, em meios de produção, que logo devem produzir mais mercadorias, dessa forma aumentando a crise de superprodução. Se os salários devem ser aumentados para aumentar a demanda, isto significa uma mordida nos lucros dos capitalistas; mas isto, por sua vez, reduz os investimentos, que, sob o capitalismo, são guiados para fazer lucros. Se a demanda deve ser “criada” através de estímulos governamentais, isto, na realidade, significa ou tomar dinheiro dos capitalistas e dar uma mordida em seus lucros, ou tomar dinheiro da classe trabalhadora e reduzir a demanda do consumidor.
Em contraste à economia burguesa, o marxismo busca examinar a economia dialeticamente – quer dizer, o marxismo busca explorar todas as implicações de qualquer ação; ver a interconexão e a retroalimentação entre diferentes processos e fenômenos; examinar o sistema em seu movimento e em toda a sua complexidade. A economia marxista vê as contradições dentro do processo em jogo e mostra como estas contradições sempre podem ser resolvidas, mas unicamente criando novas contradições no processo. Este é o caso com o capitalismo: uma crise sempre pode ser evitada temporariamente, mas isto só serve para fortalecer as contradições e pavimentar o caminho para uma crise maior no futuro.
Em adição, diferentemente da economia burguesa, os marxistas não separam sua análise econômica de sua análise geral da sociedade. A economia é feita de seres humanos vivos e que respiram; como Lênin declarou, “política é economia concentrada”. A classe dominante sempre poderá restaurar a estabilidade na economia, mas unicamente à custa de criar instabilidade política e luta de classe na sociedade.
Em última análise, a crise do capitalismo não é simplesmente o resultado deste ou daquele processo; desta ou daquela contradição. As crises são o resultado de muitos processos interativos e contradições dentro do próprio capitalismo. Como disse Marx em O Capital: “A produção capitalista procura sempre ultrapassar esses limites imanentes, mas ultrapassa-os apenas com meios que de novo lhe opõem esses mesmos limites, em escala mais potente.
“A barreira efetiva da produção capitalista é o próprio capital; o capital e sua autoexpansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção ser apenas meios de acelerar continuamente o desenvolvimento do processo vital para a sociedade dos produtores. Os limites intransponíveis em que se podem mover a manutenção e a expansão do valor-capital, a qual se baseia na expropriação e no empobrecimento da grande massa dos produtores, colidem constantemente com os métodos de produção que o capital tem de empregar para atingir seu objetivo e que visam ao aumento ilimitado da produção, à produção como fim em si mesma, ao desenvolvimento incondicionado das forças produtivas sociais do trabalho. O meio – desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais – em caráter permanente conflita com o objetivo limitado, a valorização do capital existente. Por conseguinte, se o modo capitalista de produção é um meio histórico para desenvolver a força produtiva social e criar o mercado mundial apropriado, é ele ao mesmo tempo a contradição permanente entre essa tarefa histórica e as relações sociais de produção que lhe correspondem” (O Capital, Livro III, capítulo 15, Marx).
Keynes, Lucro e Investimento
Como o episódio de “Donos do Dinheiro” mostrou, Keynes foi capaz de reconhecer a interconectividade do sistema capitalista, segundo a qual os custos salariais de um capitalista são o mercado de outro capitalista, e, portanto, o que pode ser racional e necessário para um capitalista – cortar custos salariais – não é necessariamente racional para os capitalistas como um todo. Vitalmente, contudo, Keynes não vê o relacionamento interconectado entre salários e lucros – que estes correspondem às duas faces da mesma moeda, ambos meramente representando a divisão proporcional do total do valor criado pela classe trabalhadora através da aplicação do trabalho – e que se um aumenta o outro necessariamente diminui, e vice-versa. Daí, a incapacidade dos Keynesianos de ver que a superação do “subconsumo” – ou seja, a superação da falta de demanda efetiva – através dos aumentos salariais e dos estímulos governamentais apenas pode criar novas contradições pela redução dos lucros dos capitalistas e conduzindo a uma greve de capital – isto é, a uma redução do investimento.
Keynes definiu a demanda total da sociedade, também conhecida como “demanda agregada” na macroeconomia, como sendo igual à renda total, que é também igual ao produto total. Esta demanda agregada se compõe antes de qualquer coisa de duas fontes, de acordo com Keynes: o consumo doméstico e o investimento das empresas. Esta definição é similar aos dois Departamentos de Marx, como definidos no Livro II de O Capital, o de produção de bens de capital (Departamento I) e o de produção de bens de consumo (Departamento II). Contudo, diferentemente de Marx, Keynes não os subdivide em seus vários componentes de valor: constante, variável e excedente.
Por todo O Capital, Marx frequentemente sublinha a necessidade de se examinar a economia em sua totalidade, ao invés de simplesmente isolar aspectos específicos do sistema ou de se concentrar no comportamento de simples indivíduos e transações. Contudo, Marx também demonstrou que era a interação dialética entre opostos dentro desta totalidade – entre trabalho e capital; entre salários e lucros; entre o Departamento I e o Departamento II – junto aos padrões que emergem das ações anárquicas e caóticas (e, mesmo assim, racionais) de muitos capitalistas diferentes, que era a chave para se entender a natureza dinâmica e dominada por crises do capitalismo.
Como mencionado anteriormente, os economistas clássicos que precederam Marx foram incapazes de entender a origem do lucro, devido ao seu tratamento da economia, ou como um sistema de ilha deserta tipo “Robinson Crusoé”, no qual um homem é ao mesmo tempo produtor e consumidor, ou como uma simples transação entre um comprador e um vendedor, segundo a qual os lucros eram simplesmente criados no processo de circulação através de comprar barato e vender caro. Em ambos os casos, pela redução da economia a um ou a um par de indivíduos, a divisão da sociedade em classes se perde.
Em contraste, o keynesianismo, no qual a moderna macroeconomia está baseada, chega a um resultado similar ao dos economistas clássicos pré-marxistas, mas de uma direção oposta: através de simplesmente agregar a economia em uma só equação ou esquema de demanda total, o keynesianismo perde de vista a luta de classe e a interconectividade entre salários e lucros, e, de fato, muitas vezes termina ignorando totalmente o papel do lucro. Pode-se ver a natureza mecânica do esquema keynesiano pelo exemplo da “Phillips machine” or “MONIAC”, um modelo físico da economia baseado nos princípios macroeconômicos keynesianos que usa o estoque e fluxos da água para representar os estoques e fluxo de capital e dinheiro, e que se supõe ser capaz de prever o comportamento da economia real sobre esta base.
Como resultado desta visão agregada, antidialética e mecânica, o keynesianismo e a moderna macroeconomia não podem explicar a base material por trás do investimento sob o capitalismo. Na melhor das hipóteses, a macroeconomia burguesa descreve os investimentos como uma função da taxa de juros, com baixas taxas de juros proporcionando um incentivo para os investidores gastarem em vez de pouparem. Mas nos tempos atuais, as taxas de juro estão quase em zero por cento, e ainda não se veem os investimentos. Na pior das hipóteses, enquanto o consumo doméstico é materialisticamente explicado como uma função da renda disponível, o investimento por parte das empresas é idealisticamente explicado como simplesmente devido à “ao instinto animal”. Ultimamente, uma explicação idealista similar para o investimento é dada em termos da necessidade de “confiança empresarial”.
Apelos ao “instinto animal” e “confiança” são coisas que claramente nada explicam. Deve-se perguntar: o que causa a confiança? O argumento dado em resposta é tipicamente de natureza redundante: as empresas investem se há confiança; há confiança se a economia está crescendo; há crescimento econômico se há investimento; e assim por diante. Apesar de ser verdade que confiança, incerteza e risco desempenhem um papel em determinar as decisões dos investidores, esta confiança e incerteza devem ter uma base material. Sob o capitalismo, o investimento é feito na busca de lucro; se as mercadorias não se podem vender com lucro – ou não vendidos de forma alguma, como é o caso na presente crise de superprodução – então a produção e o investimento em nova produção não ocorrem.
Não é a falta subjetiva de confiança que causa a crise, mas a crise objetiva do capitalismo que causa falta de confiança. Como já se viu recentemente em numerosas ocasiões, tem havido frequentes manifestações do mercado de ações em resposta aos mais recentes “planos” dos políticos para “resolver” a crise; subindo como um foguete e caindo como uma pedra, enquanto as contradições reaparecem e a crise reemerge no horizonte.
Os números da presente crise sublinham a contradição da superprodução em relação ao investimento: em 1990, o investimento empresarial no Reino Unido era de aproximadamente 14% do PIB ao ano, mas caiu para menos de 8% atualmente; mas, enquanto isto, as empresas britânicas estão agora sentadas em mais de 700 bilhões de libras de poupança. Ao mesmo tempo, as empresas que sobreviveram à crise estão informando lucros recordes, como The Economist (de 31 de março de 2012) explica: “Os últimos quatro anos foram maus para os trabalhadores e poupadores, mas muito bom para o setor corporativo. As margens de lucro do setor corporativo americano são mais altas do que em qualquer outro momento nos passados 65 anos (…).
“(…) As margens foram impulsionadas pelo rigoroso controle das empresas dos custos de mão-de-obra e por uma redução nas despesas em juros causada pelas políticas dos bancos centrais através do mundo rico (…).
“(…) Contudo, o presente alto nível de lucros não está levando a uma recuperação no investimento. Em relação ao PIB, os investimentos das empresas americanas estão próximos do nível de 30 anos atrás (…).
“(…) a grande participação dos lucros no PIB é apenas um simples corolário da pequena participação do trabalho (…).
“(…) As empresas americanas e europeias estão preferindo gastar seu dinheiro em fusões e na especulação em vez de despesas de capital”.
Em outras palavras, em vez de investir em novos meios de produção, que devem produzir novas mercadorias que devem encontrar um mercado e serem vendidas, as empresas estão reconhecendo que há uma sobrecapacidade crônica no sistema, e estão, em seu lugar, gastando seu dinheiro na compra de empresas já existentes – isto é, de meios de produção que já existem. Este processo leva à concentração de capital, mas sem criar qualquer valor novo. Em vez de ser usada para desenvolver os meios de produção e proporcionar mercadorias e serviços socialmente necessários, a riqueza que foi acumulada pela classe capitalista está sendo dissipada.
The Economist (21 de julho de 2012) continua a realçar a crise de superprodução como causa do baixo nível de investimento:
“A grande diferença no momento é entre trabalhadores e corporações. Embora a taxa de desemprego continue bastante elevada e os aumentos de salário difíceis de encontrar, os lucros das empresas estão tomando uma maior parcela do PIB americano do que antes da crise financeira (…).
“(…) Um alto retorno sobre o capital encorajaria uma onda de investimentos. A resultante expansão da capacidade incrementaria a concorrência e reduziria o retorno. Mas isto já está acontecendo: as empresas estão juntando dinheiro (…).
“(…) as empresas estão relutantes em investir face à fraca demanda. Os consumidores domésticos estiveram sob a pressão da austeridade e dos preços mais altos das mercadorias; a crise da zona do euro e a desaceleração das economias em desenvolvimento estão pesando nas perspectivas de exportação. As empresas exploraram tudo o que puderam com o aumento da produtividade. A ironia aqui é que a alta participação dos lucros no PIB automaticamente resulta em baixa participação dos salários e, dessa forma, pode finalmente ser auto-limitante – uma consequência positivamente marxista”.
Hayek, o crédito e a crise
Diferentemente de Keynes, que via o problema como de demanda efetiva durante a crise, Hayek via o problema como de política monetária no período antes da crise. Em particular, Hayek argumentava que era a interferência do governo na oferta de dinheiro – por exemplo, através do abaixamento das taxas de juro, da emissão de muito mais moeda e do encorajamento da expansão do crédito – que criava bolhas e distorcia o mercado, levando a crises quando as bolhas explodiam e o boom se via fortemente baseado em capital fictício.
Da mesma forma que Keynes, Hayek somente vê um lado da questão – ou seja, o lado da oferta, ao contrário de Keynes e seu problema de demanda. E, da mesma forma que Keynes, Hayek não ia até as consequências lógicas de sua análise para fazer a pergunta óbvia: que teria acontecido se os governos não tivessem intervido através da baixa das taxas de juro e do encorajamento à expansão do crédito? Primeiramente, contudo, deve-se fazer a pergunta mais simples: o que é o crédito?
Marx explica o papel do crédito sob o capitalismo em O Capital, explicando que o crédito cumpre uma dupla função. Por um lado, crédito de relativo curto prazo se requer para superar gargalos na produção e para manter o fluxo e a circulação de capital. Por exemplo, as empresas necessitam tomar dinheiro emprestado para pagar salários e matérias-primas enquanto esperam que as mercadorias produzidas anteriormente cheguem ao mercado e sejam vendidas. Alternativamente, o crédito pode ser usado para permitir às empresas expandir sua produção quando não têm capital suficiente para fazer isto.
Por outro lado, o crédito também desempenha o papel de expandir artificialmente o mercado – isto é, a demanda efetiva – e, dessa forma, ajudando a adiar a crise. Como anteriormente explicado, sob o capitalismo, a classe trabalhadora nunca pode comprar de volta o valor total das mercadorias que ela cria devido à natureza fundamental do capitalismo de produção para o lucro. Como também foi explicado antes, o capitalismo tradicionalmente supera esta contradição da superprodução reivestindo a mais-valia criada em novos meios de produção em busca de maiores lucros. Isto, contudo, somente serve para criar ainda maiores forças produtivas, e, dessa forma, uma ainda maior massa de mercadorias que deve encontrar um mercado, e, dessa forma – em vez de resolver a contradição – somente exacerba a superprodução.
O crédito, que se forma pela concentração de poupanças e depósitos das pessoas e empresas nos bancos, é usado para aumentar artificialmente a capacidade de consumo das massas, e, dessa forma, para superar temporariamente a superprodução, permitindo que as forças produtivas continuem a se expandir. Como já explicamos em outra ocasião, a expansão do crédito nos últimos 20 anos – e particularmente desde a virada do século – criou a maior bolha de crédito na história e foi o fator primário em adiar a chegada da crise.
Esta expansão do crédito se requeria para sobrepujar a crescente proporção da riqueza que vai para o capital em vez de ir para o trabalho, que se tornou crescentemente desigual com os ataques à classe trabalhadora que se seguiram à crise dos anos 1970 e continuou nos anos 1980 com as políticas de Reagan, Thatcher e de outros políticos representantes do capitalismo. Esta sempre crescente exploração da classe trabalhadora continuou nos anos 1990 e no século XXI através da intensificação da jornada semanal e aumento das horas-extras, ataques aos salários e condições de trabalho e com muitos trabalhadores sendo forçados a ter dois empregos apenas para conseguir sobreviver. Ao longo desta crescente exploração, o crédito foi massivamente expandido através do uso de hipotecas, cartões de crédito, empréstimos estudantis etc.
As ideias de Hayek contêm um elemento de verdade ao dizer que a expansão do crédito causa crises. Na verdade, contudo, a expansão do crédito não causa a crise; antes, ela adia a crise através da expansão artificial do mercado no curto prazo, mas à custa de exacerbar o problema da superprodução, levando a uma crise até mesmo maior no futuro. De forma similar, taxas baixas de juro foram usadas para dar fôlego ao boom além de seus limites, ao incentivar os investimentos e os gastos dos consumidores – consumo este que, da mesma forma, era dependente do crédito.
A expansão do crédito, contudo, é um processo dialético: a expansão do crédito permite o crescimento das forças produtivas; o crescimento das forças produtivas alimenta a expansão do crédito. Como explica Marx: “O crédito aí é, portanto, indispensável; crédito que tem o montante aumentado, com o aumento crescente da magnitude do valor da produção, e a duração distendida com o afastamento cada vez maior dos mercados. Há aí efeitos recíprocos. O desenvolvimento do processo de produção amplia o crédito, e o crédito leva à expansão das operações industriais e mercantis” (O Capital, Livro III, capítulo 30; Marx).
Durante o boom, ninguém questiona este aparentemente virtuoso círculo. A burguesia está embargada de sentimentos otimistas. E tudo vai muito bem pelo melhor dos mundos possíveis. Mas, como ocorre em todo processo dialético, em certo ponto deve haver uma transformação da quantidade em qualidade: de um lado, a vasta concessão de crédito que, agora, por outro lado, aparece como uma tremenda pilha de dívidas; o consumo restrito das massas, mais uma vez, aparece, e os limites restritivos da expansão das forças produtivas reafirmam-se; a superprodução é evidente e a crise irrompe. Como explica Marx, esta superprodução é, em última análise, a causa da crise:
“A razão última de todas as crises reais continua sendo a pobreza e a limitação do consumo das massas em face do impulso da produção capitalista: o de desenvolver as forças produtivas como se tivessem apenas por limite o poder absoluto de consumo da sociedade” (O Capital, Livro III, capítulo 30; Marx).
Marx também já respondeu a muito a quem afirma que é a contenção do crédito – familiarmente conhecido hoje em dia como “aperto no crédito” – o que causa crises, demonstrando que, de fato, não é a carência de crédito a responsável pela crise, mas que é a crise que leva a uma carência de crédito:
“Enquanto o processo de reprodução mantém a fluidez e assim assegura o retorno do capital, esse crédito perdura e se expande, e essa expansão é baseada sobre a do próprio processo de reprodução. Quando os negócios estancam, por se retardarem os retornos de capital, por se abarrotarem os mercados, por caírem os preços, há tal pletora de capital industrial que ele não pode desempenhar sua função. Amontoam-se massas invendáveis de capital-mercadoria. O capital fixo está em grande parte desocupado em virtude de estagnar-se a reprodução. O crédito contrai-se 1) porque o capital está desocupado, isto é, parado numa das fases da reprodução, não podendo completar sua metamorfose; 2) porque se quebrou a confiança na fluidez do processo de reprodução, e 3) porque diminui a procura desse crédito comercial.
“(…) Perturbada a expansão dos negócios ou mesmo a intensidade normal do processo de reprodução, sobrevém escassez de crédito; fica mais difícil obter mercadoria a crédito. Mas, a exigência de pagamento de contado e a precaução na venda a crédito caracterizam particularmente a fase do ciclo industrial que sucede a quebra…”.
“(…) Fecham-se as fábricas, as matérias-primas se amontoam, os produtos acabados são mercadorias que abarrotam o mercado” (O Capital, Livro III, capítulo 30: Marx).
Não é, portanto, nem a expansão do crédito durante o boom, nem sua contração, que é responsável pelas crises. A expansão do crédito meramente adia a crise de superprodução; a contração do crédito é simplesmente uma manifestação qualitativa desta mesma superprodução.
Retornemos a Hayek e à questão original que os Hayekenses não consideram: o que aconteceria se os governos não interviessem na economia e se o crédito não fosse expandido? Seriam as crises provocadas pela mágica mão invisível do mercado? Modernamente, os Hayekenses imaginam que sem a interferência do governo, as forças da oferta e da demanda do mercado, acompanhadas com seu sinalizador de preços, teriam resolvido todos os problemas; que uma crise até poderia ocorrer, mas que seria um vislumbre em comparação à profunda recessão que estamos agora experimentando devido a vastamente inflada bolha do crédito.
Mas, como já explicamos acima, o crédito não cria a crise, meramente a adia. Na ausência da expansão do crédito, a crise dos anos 1970 simplesmente teria continuado e se desenvolvido a um novo plano. A expansão do crédito se requeria para manter a capacidade de consumo da classe trabalhadora em face dos ataques sobre os salários – isto é, o poder de compra – destes mesmos trabalhadores, tudo em nome da manutenção dos lucros dos capitalistas. Sem a expansão do crédito, a expansão das forças produtivas teria se encontrado com os limites do mercado – isto é, uma carência de demanda efetiva – em data muito próxima. As empresas cessariam a expansão da produção diante da queda da demanda de bens de consumo; o desemprego se elevaria; o círculo vicioso da recessão se instalaria.
Em vez de encontrar um equilíbrio estável, a solução dos Hayekenses – remover qualquer interferência no mercado e permitir que a oferta de dinheiro se regule a si mesma – simplesmente levaria a um sistema crescentemente volátil e turbulento; a uma economia fora de controle – isto é, a uma situação semelhante à atual.
Vemos, mais uma vez que a falha dos Hayekenses, como com os Keynesianos, é seu foco unilateral de um problema multilateral. Ao tentar resolver uma contradição, os capitalistas meramente criam novas contradições em outro lugar em maior escala.
Na realidade, a despeito de sua desenfreada fé no livre mercado, Hayek nunca foi realmente aceito pelos representantes políticos do capitalismo, que não podiam engolir seu credo econômico que significaria nenhuma interferência governamental na economia sob nenhuma hipótese. Diante da crise, os políticos burgueses sempre apertam, lançando fora toda conversa de “livre mercado”, e, em vez disso, fazendo tudo o que for necessário para salvar o capitalismo de suas próprias contradições. Daí, a preferência entre os políticos burgueses, tais como Thatcher e Reagan, por Milton Friedman, um homem que louvou as virtudes do livre mercado, mas que não temia defender o uso do forte braço do estado para orientar a mão invisível. Por isso, também se pode ver a aceitação das ideias do Keynesianismo em períodos de crise, como agora, por certos elementos da burguesia que, como Keynes, veem a necessidade do estado intervir no funcionamento e regulação do capitalismo.
O Keynesianismo hoje
A moderna macroeconomia, baseada nas ideias da Teoria Geral de Keynes, menciona as quatro fontes principais da produção, da demanda e do crescimento da economia nacional: consumo, investimento, gastos governamentais e exportação. Em tempos “normais”, a contração de um desses setores esperaria ser compensada por outro. Mas, atualmente, todos os quatro desses setores estão paralisados.
O consumo está restringido pelas enormes montanhas de dívida privada, com até mesmo os chamados países “ricos” do norte da Europa vendo gigantescas dívidas das famílias; por exemplo, como percentagem do rendimento, a dívida das famílias na Dinamarca e na Holanda é 268% e 249%, respectivamente, enquanto que no Reino Unido o número é de 143%. Um artigo de Wall Street Journal, intitulado “O débito privado vai pesar sobre o crescimento durante anos”, de 13-15 de abril de 2012, afirma que: “A dívida pública tem permanecido no centro das atenções desde que a crise da dívida europeia irrompeu há mais de dois anos. Mas a dívida do setor privado é comprovadamente um problema mais difícil (…).
“(…) A origem do problema da dívida privada são as hipotecas: os preços dos bens imobiários decolaram em diversos países da Europa, e os bancos estavam dispostos a emprestar quantias cada vez mais elevadas para compras de casas. O boom imobiliário se quebrou nas rochas em grande parte da Europa, mas as dívidas hipotecárias permanecem com a destreza de um albatroz apertando o pescoço dos consumidores europeus.
“Os economistas têm encontrado uma forte conexão entre o consumo, o boom do crédito e a queda dos preços dos bens imobiliários: os países que experimentaram um aumento acentuado das dívidas familiares irão experimentar uma queda mais acentuada no consumo do que as nações onde a dívida não cresceu tão rápido. Se você toma emprestado um monte de dinheiro para comprar sua casa (e o terreno onde ela repousa), e então os preços começam a cair logo em seguida, é mais provável que você queira reembolsar a dívida do que sair para jantar, comprar um novo carro ou reformar sua casa”.
Enquanto isto, os bancos, que têm igualmente grandes dívidas em suas contas, estão tentando “travar o endividamento” – isto é, reduzir suas dívidas. Daí, o aparente mistério de termos uma inflação tão baixa nos últimos tempos, apesar das gigantescas montanhas de dinheiro que foram bombeadas na economia global através da flexibilização quantitativa e outras políticas similares; ao invés de ir para a economia real e ser gasto, este dinheiro está sendo usado pelos bancos simplesmente para reduzir suas dividas.
Por razões similares ao que acontece às famílias, os governos dos países capitalistas avançados estão limitados em sua capacidade de aumentar os gastos, dadas as suas já vastas dívidas públicas. Longe de expandir os gastos governamentais, a economia dos EUA – a maior do mundo – está enfrentando um “abismo fiscal”, com cortes dos gastos públicos e aumentos de impostos no valor total de aproximadamente 5% do PIB.
Dados os tempos desesperados, medidas igualmente desesperadas têm sido propostas. Esquecendo todas as lições da história, certo número de comentaristas tem sugerido que os governos com política monetária independente possam emitir dinheiro para saldar suas dívidas, e a flexibilização quantitativa é o primeiro passo de um caminho escorregadio. No melhor dos casos, tais políticas não farão nada para resolver a crise; no pior, podem levar a uma hiperinflação.
O investimento, como já afirmamos anteriormente, está em uma baixa histórica, com os investidores se recusando a investir em nova produção quando já há, coletivamente, capacidade em excesso – isto é, superprodução. Por último, então, somos deixados com a exportação. Mas é uma verdade básica que nem todo país pode ser exportador líquido. Para cada exportação deve haver um valor equivalente de importação; ou, no caso da eurozona atualmente, haverá um fluxo de exportação de um país e uma acumulação de dívida em outra parte.
Exportações, importações e desequilíbrios comerciais
Todos os políticos da nação asseguram que exportar é o caminho para sair da crise. Em um mundo ideal eles gostariam de fazer isto tornando as exportações de seu país mais competitivas com o rebaixamento dos salários, enquanto, simultaneamente, esperam que todos os outros países aumentem suas importações pagando mais aos seus trabalhadores. Mas todos os capitalistas e representantes políticos de todos os países estão tentando fazer a mesma coisa. Portanto, alcançamos o padrão geral da superprodução, mas agora o vemos em escala internacional, com a concorrência entre capitalistas de distintos países levando a cortes salariais coletivos, à queda da demanda e à contração do mercado.
Vemos isto hoje se refletir nos apelos dos comentaristas Keynesianos de vários países, que exclamam “devemos ser cada vez mais como a Alemanha e a China!”, “devemos investir, ser mais competitivos e exportar!”. Mas nem todos podem ser como a Alemanha e a China. Basta fazer uma pergunta muito simples: exportar para quem? Numa altura em que os governos em todas as partes estão executando políticas de austeridade, onde está a demanda para aumentar as exportações? Daí, os apelos dos políticos e dos comentaristas políticos para que a Alemanha e a China “reequilibrem” suas economias – isto é, aumentem os salários, dessa forma reduzindo a competitividade de suas exportações e proporcionando meios para um maior consumo de importações. Mas, por que razão haveria a burguesia na Alemanha e na China de querer fazer isto quando elas estão indo muito bem com o que fazem?
Na verdade, toda tentativa dos países para exportar como saída da crise somente conduz a uma corrida para o fundo do poço; a guerras comerciais, ao fortalecimento do protecionismo e a um agravamento da crise para todos. Keynes, de fato, entendia os riscos de grandes desequilíbrios comerciais na economia global, e estava interessado em ver um acordo dentro do sistema pós-guerra de Bretton Woods, que iria limitar os desequilíbrios entre os países. Em um mundo onde cada economia está conectada à outra por milhares de fios, a crise em um país afeta todos. Chegamos, assim, à atual situação onde a crise nos países periféricos da zona do euro tem conduzido a uma desaceleração das economias da Alemanha e da China, que dependiam das exportações à Europa para seu crescimento. Por seu lado, países como a Austrália, Brasil e África do Sul, que dependem da exportação de matérias-primas para a China, também estão diminuindo a velocidade.
Como já afirmamos em outra oportunidade, o crescimento da China liderado pelas exportações já não é mais uma realidade. Em vez disso, o governo chinês foi forçado a embarcar em um dos maiores experimentos Keynesianos da história, vertendo gastos governamentais em moradias, infraestruturas e novos meios de produção. Mas, como todos os experimentos Keynesianos, isto apenas está preparando o caminho para uma crise ainda maior de superprodução no futuro.
Em suas raizes, os desequilíbrios comerciais – com déficits de um lado e excedentes de outro – não são a causa da crise, mas já representam outra manifestação dela. Os enormes déficits comerciais dos países periféricos da Europa – Grécia, Espanha, Portugal etc. – são o outro lado da moeda dos excedentes comerciais da Alemanha. Os salários estão vindo abaixo na Alemanha e na China, enquanto as forças produtivas se expandiram. As mercadorias produzidas não podem ser vendidas em casa, mas têm de encontrar mercado fora. A imensa riqueza das exportações alemãs e chinesas é, dessa forma, simplesmente a expressão da igualmente imensa superprodução que existe dentro destes países.
Marx entendeu e explicou isto em O Capital: “Quanto à importação e à exportação releva observar que, um após outro, todos os países se envolvem na crise, verificando-se que todos, com poucas exceções, exportaram e importaram demais, ficando o balanço de pagamentos desfavorável a todos: é que a crise de fato não provém do balanço de pagamentos (…).
“Chega, então, a vez de outro país: o balanço de pagamentos estava momentaneamente favorável, mas agora a crise suprimiu ou encurtou o intervalo que vigora em tempos normais entre os compromissos do balanço de pagamentos e os do balanço comercial; todos os pagamentos devem agora ser efetuados de uma vez. A mesma coisa se repete aí (…). O que num país é excesso de importação aparece no outro como excesso de exportação, e vice-versa. Mas, em todos os países ocorreu tanto excesso de importação quanto de exportação (…) isto é, superprodução, fomentada pelo crédito e pela concomitante inflação geral dos preços (…).
“Em tempos de crise geral, o balanço de pagamentos é desfavorável a toda nação, pelo menos a toda nação comercialmente desenvolvida, mas sempre uma após outra, como numa fileira, de acordo com a vez de pagar; e a crise, uma vez irrompida (…). Patenteia-se, então, que todas essas nações se excederam ao mesmo tempo nas exportações (vale dizer na produção) e nas importações (no comércio, portanto); que, em todas elas, os preços foram impelidos para cima e exagerou-se no crédito. E em todas sucede o mesmo descalabro. O fenômeno da saída de ouro então ocorre a todas, uma após outra, e em virtude do caráter geral revela 1) que a hemorragia de ouro é mero sintoma da crise e não causa dela, e 2) que a sucessão em que sobrevém às diversas nações apenas mostra a ordem em que estas ajustam as contas no julgamento final, ocasião em que surge a fase decisiva da crise e se desencadeiam os elementos latentes dela” (O Capital, Livro III, capítulo 30; Marx – ênfase no original).
As altas dívidas públicas das economias mais fracas da zona do euro, como a da Grécia e Portugal, são da mesma forma um sintoma deste mesmo processo. Como já explicamos em outra oportunidade, a criação do Euro foi mais que benéfico para os capitalistas alemães, que usaram a moeda comum como um meio de dominação econômica sobre o restante da Europa. O capitalismo alemão, que era (e ainda é) de maior competitividade, devido a uma combinação de baixos salários e alta produtividade, ficou apto para usar o Euro para aumentar o fluxo das exportações aos países mais débeis da periferia da zona do euro. Mas estes países nada tinham a oferecer de retorno, e somente pagariam por estas importações usando o crédito – primariamente suprido pelos bancos alemães – que tinha se tornado muito mais barato graças às baixas taxas de juro que os membros do Euro proporcionavam. O resultado foi a elevação dos lucros na Alemanha e a elevação das dívidas na Grécia, Portugal e em todos os lugares.
A dívida pública não é, portanto, uma causa da crise, mas apenas outro sintoma da crise de superprodução. Isto é sublinhado pelo exemplo da Espanha, um país que antes da crise tinha uma dívida pública de apenas 36% do PIB e consistentemente administrava um orçamento superavitário, e que ainda tem uma dívida pública de somente 69% do PIB atualmente. Mas, mesmo assim, a Espanha se encontra em profunda crise econômica. Seu boom pré-crise se baseou em uma gigantesca bolha imobiliária, que, por sua vez, foi alimentada por crédito barato, e agora estas bolhas se romperam deixando a contradição de casas vazias ao lado de massas de sem-teto.
Os analistas burgueses muitas vezes se referem à crise do Euro como simplesmente um problema de competitividade. Mas, como já explicamos acima com respeito a importações, exportações e desequilíbrios comerciais, a competitividade internacional não é fundamentalmente diferente da competição entre diferentes empresas capitalistas: sob o capitalismo, haverá sempre vencedores e perdedores. Nem todos podem ser mais competitivos. A competição é sempre relativa. A principal diferença é que na competição entre empresas, as empresas fracas sucumbirão e serão assimiladas pelas mais fortes; no plano internacional, as economias menos competitivas não podem ser simplesmente assimiladas – embora, essencialmente, seja esta a proposta de uma união fiscal dentro da zona do euro: uma zona econômica única, na qual as economias mais fracas são colocadas sob o controle direto das mais fortes – isto é, do capitalismo alemão.
Mas, como na competição entre empresas capitalistas, a competição entre nações capitalistas é, no final das contas, uma corrida ao fundo do poço, na qual os capitalistas estão cortando o próprio ramo onde estão pendurados: ao tentar ganhar competitividade, eles devem ou cortar os salários da classe trabalhadora, e, dessa forma, reduzir o mercado para as mercadorias que são produzidas; ou devem investir em produtividade e, dessa forma, expandir as forças produtivas. Em um ou outro caso, a crise de superprodução é exacerbada. Novamente, o que faz sentido a partir da perspectiva de um único capitalismo nacional – cortar salários, aumentar a produtividade, ganhar competitividade e exportar – é, no final das contas, destrutivo para a economia internacional como um todo.
Isto, mais uma vez, torna evidentes as barreiras fundamentais ao crescimento das forças produtivas: a propriedade privada dos meios de produção e o estado nacional, que se transformaram nos obstáculos mais monstruosos ao desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da cultura e da sociedade em geral.
“O crescimento de conto de fadas não existe”
Hoje está claro que nem os Keynesianos nem os monetaristas têm alguma resposta. Diferentemente do otimismo experimentado pela burguesia nos anos de boom, agora não há nada além de pessimismo no seio da classe dominante. Os monetaristas e os Keynesianos estão ambos, ao mesmo tempo, errados e certos; mas ambos somente veem um lado do problema. É claro que a austeridade não está funcionando, mas não existe nenhum dinheiro para o governo estimular a economia, e os mercados financeiros estão exigindo cortes. A verdadeira resposta é que não há nenhuma solução sob o capitalismo.
A dicotomia “austeridade versus crescimento” é, no final das contas, falsa. Como sublinhou The Economist (em cinco de maio de 2012), “Apelar por crescimento e como defender a paz mundial: todos concordam que é uma boa coisa, mas ninguém concorda em como fazer isto”. Para simplificar: o campo pró-austeridade acredita que o setor privado vai entrar no investimento e criar crescimento econômico, mas que, antes disso, devem ser reduzidos as dívidas e os déficits e realizadas “reformas” estruturais, para remover quaisquer “barreiras” à flexibilidade do mercado de trabalho – ou seja, sindicatos, direitos trabalhistas, saúde e normas de segurança etc. Os Keynesanos acreditam que é o governo que deve entrar para estimular a economia com investimento em nova infraestrutura e habitações.
Os Keynesianos estão totalmente corretos quando afirmam que a austeridade não é a resposta, e que os cortes estão simplesmente exacerbando a recessão por toda a Europa. Mas, as promessas do Keynesianismo de “crescimento” em vez de cortes são igualmente utópicas. Como já afirmamos em outra oportunidade, o crescimento sob o capitalismo não pode ser criado do nada. Como The Economist eloquentemente colocou (12 de maio de 2012), o “crescimento de conto de fadas não existe”.
François Hollande, o recentemente eleito Presidente da França, se posicionou como líder da “alternativa à austeridade”, em contraste a Merkel, que é vista como o mais caloroso representante dos cortes. Partidos de Oposição por toda a Europa se alinharam para apoiar o apelo de Hollande por um “pacto de crescimento”: Tsipras, o líder de SYRIZA na Grécia, anseia por uma renegociação do memorando; a Esquerda Unida na Espanha apresenta demandas similares por “investimento” e “crescimento”; Ed Miliband e outros líderes trabalhistas na Grã-Bretanha aplaudiram a eleição de Hollande e sua oposição à “excessiva” austeridade.
Mas, por trás das platitudes e da agradável sonoridade da retórica, estes mesmos líderes compreendem a gravidade real da crise e que, de fato, aceitam a necessidade de austeridade. Por exemplo, enquanto se apresentava a si mesmo como opositor dos cortes, Hollande prometeu reduzir o déficit orçamentário francês a 3% pelo final de 2013 e a eliminar totalmente o déficit orçamentário até 2017. Curiosamente, estas são as mesmas metas a que o partido Tory, abertamente pró-austeridade, se comprometeu na Grã-Bretanha. Enquanto isto, Miliband admitiu que o Partido Trabalhista não pode prometer a reversão de qualquer corte dos Tory, se vencerem nas próximas eleições em 2015.
Estes líderes foram pegos entre o martelo e a bigorna; entre as imensas pressões dos mercados financeiros e as massas radicalizadas de trabalhadores e jovens. Por um lado, devem oferecer alguma esperança às massas, a que estão destinados a representar, que se voltaram agora para eles em busca de alternativa. Mas, por outro lado, estes mesmos líderes fizeram toda tentativa para assegurar aos mercados que eles são estadistas “responsáveis”. No coração, eles entendem que os cortes não são ideológicos e que sob o capitalismo não há alternativa. A necessidade dos cortes não é questionada, o que se questiona é a escala e a velocidade desses cortes.
O resultado é a chamada política econômica “Cachinhos Dourados”, como defendida pelo FMI e outros: um pouco de corte no curto prazo (mas não muito!), acompanhado de políticas governamentais de estímulo ao crescimento, seguidas, no longo prazo, de planos para reduzir as dívidas e os déficits. Como declara The Economist:
“O mito de uma contração fiscal expansionista, a ideia de que reduzir o déficit seria promover o crescimento, já foi largamente superado. A mais recente prova disso é que em uma regressão o efeito multiplicador do aperto fiscal pode levar a uma recessão mais profunda, tornando ainda mais difícil cortar o déficit. Na zona do euro, por outro lado, os países não podem facilmente mitigar o impacto através de uma política monetária mais livre ou através da desvalorização da moeda. Reformas estruturais podem ajudar o crescimento, mas na maioria das vezes no médio prazo.
“Mas, se altos déficits forem a resposta, a Grécia e a Espanha deveriam estar crescendo. Muitos países na zona do euro não tiveram nenhuma escolha além da austeridade para tentar acalmar os mercados de obrigações que os estavam empurrando à falência. Outros cortaram por temer o mesmo destino. A dívida nas economias avançadas alcançou níveis que somente foram ultrapassados durante a II Guerra Mundial, e a evidência é que altas dívidas podem sufocar o crescimento no longo prazo. Mais cedo ou mais tarde, a maioria dos países europeus tem de começar a liquidar sua dívida. Então, a escolha não é bem entre austeridade e crescimento, mas sobre o tempo e a velocidade de redução do déficit e a mistura certa de reformas estruturais.
“A política de Cachinhos Dourados, como o FMI a chama, urge aos países embarcar em um ajuste fiscal gradual no curto prazo, se os mercados o permitirem, acompanhado de um plano de redução da dívida no médio prazo”.
Tal “plano” é completamente utópico e sua sugestão meramente enfatiza a completa confusão e pessimismo da burguesia que, na ausência de uma análise apropriada da crise e do capitalismo, é forçada a reagir empiricamente aos acontecimentos, tropeçando de um desastre a outro ao longo do caminho.
A necessidade do socialismo
Os líderes sindicais estão igualmente enamorados com a conversa de “empregos, investimento e crescimento”. Políticas Keynesianas são propostas, mas são encobertas e açucaradas com a linguagem de socialismo. Len McCluskey, o Secretário-Geral de Unite, o maior sindicato da Grã-Bretanha, apelou para o “socialismo do século XXI”, mas é propositadamente vago sobre o que isto significa. Estas frases são ocas e não têm nenhum significado real, agindo como uma garrafa vazia, em que qualquer conteúdo pode ser nela colocada. McClukey está correto em apelar por socialismo. O movimento dos trabalhadores em todos os países necessita de um programa socialista. Mas este socialismo deve ser claramente definido: a nacionalização dos bancos e de outros grandes pesos-pesados da economia, como parte de um plano democrático de produção. Em resumo: a abolição do capitalismo e a transformação da sociedade.
O potencial que poderia ser atingido através de um plano de produção evidencia-se na tremenda quantidade de fábricas, casas vazias e trabalhadores desempregados que se mantêm desocupados devido à crise de superprodução e aos limites de um sistema em que a produção é unicamente para o lucro. Se estes recursos humanos e materiais fossem postos em uso, não se falaria mais de escassez ou pobreza. Os níveis de vida poderiam subir substancialmente; a jornada de trabalho seria reduzida a meras horas; a base material poderia ser organizada para que todos possam participar plenamente no funcionamento democrático da sociedade.
As inspiradoras lutas na Grécia, Espanha e Portugal mostram a disposição de lutar por uma alternativa. Mas, em cada um dos casos, os líderes do movimento não estão à altura do desafio. A situação é assim ante quando irrompe um incêndio na floresta: o solo está seco e uma simples fagulha poderia inflamar uma rápida onda de chamas. Os trabalhadores e os jovens de todos os países observam-se uns aos outros. Tudo o que se necessita é de um exemplo para apontar o caminho aos outros. A palavra de ordem deve ser: nem austeridade nem Keynesianismo, mas a transformação socialista da sociedade.
Traduzido por Fabiano Adalberto