Massacre prisional no Amazonas: os responsáveis não estão só atrás das grades

Em mais um episódio bárbaro, o sistema prisional expõe novamente as contradições e senilidades do capitalismo e do Estado brasileiro.

No primeiro dia do ano o Brasil viveu sua maior chacina penitenciária desde o massacre do Carandiru, quando 110 presos foram mortos pela PM de São Paulo. Desta vez um conflito entre facções do narcotráfico rivais, a Família do Norte (FDN) – ligada ao Comando Vermelho (CV) do Rio de Janeiro – e o Primeiro Comando da Capital (PCC), resultou na morte de mais de 50 pessoas, muitas delas decapitadas e esquartejadas.

Longe de ser inesperado, o desastre vem se anunciando há anos, como mostraram massacres semelhantes em Pedrinhas, no Maranhão, e Urso Branco, em Rondônia. O Estado brasileiro, no entanto, não tomou qualquer medida efetiva para evitar que os conflitos por espaço na venda e transporte de drogas ilegais resultasse em uma matança sem precedentes.

Em janeiro do ano passado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), grupo de peritos ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos, visitou as unidades prisionais de Manaus e publicou um relatório alarmante[1].

O Centro de Detenção Provisória de Manaus (CDPM), com capacidade para 560 presos aguardando julgamento, no momento da visita tinha 1.301 pessoas sem saber quando teriam suas penas definidas. O Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) tem capacidade para 450 presos, mas tinha 1.147 no momento da visita.

Das unidades visitadas pelo MNPCT que permanecem ativas, somente o Presídio Feminino de Manaus (PFM) não apresentou foco de rebelião entre os dias 01 e 02 de janeiro.

Privatização

Um fator que chama a atenção  é que o CDPM e o Compaj são administrados desde 2014 pela empresa Umanizzare através de um convênio milionário. A empresa deveria prover as unidades com serviços médicos, educacionais e psicossociais que garantissem a reabilitação dos internos, mas na prática a terceirização serviu apenas para livrar o poder público da responsabilidade imediata pela vida dos detentos e para tornar ainda mais precário o trabalho dos agentes penitenciários, maioria entre os que foram feitos reféns durante a rebelião.

Segundo relatos apresentados no relatório da MNPCT, os agentes seriam contratados sem que se respeitassem critérios especificados em lei e começam a trabalhar após um breve curso preparatório na Escola de Administração Penitenciária do Amazonas (ESAP). Além da alta periculosidade e da ausência de estabilidade em seus empregos, os trabalhadores carcerários terceirizados não possuem plano de carreira e têm baixa remuneração (em torno de R$1700 já com os adicionais e descontos). Em um cenário como esse, alta rotatividade, ameaças, agressões e subornos são frequentes dentro e fora dos presídios.

Os descumprimentos de contrato também são constantes. O Compaj, por exemplo, deveria ter 250 funcionários, mas apenas 153 estavam trabalhando em janeiro de 2016. Em documento publicado em 2014 pela Pastoral Carcerária[2], e Umanizzare não quis responder sobre seus sócios, quadro de funcionários e área de atuação.

A Lei 11.079/2004, Artigo 45, veda a delegação do exercício de polícia à parceira privada. A Resolução nº 08/2002 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) recomenda a “rejeição de quaisquer propostas tendentes à privatização do Sistema Penitenciário Brasileiro” e não admite que serviços penitenciários relativos à segurança, administração, gerenciamento e disciplina, bem como serviços técnicos, tais como os relativos à assistência jurídica, médica, psicológica e social sejam realizados por empresas privadas.

O próprio Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) também recomendou aos governos estaduais e federais na Recomendação nº. 02/2015 “a não privatização dos serviços relacionados à custódia de pessoas presas, especialmente no que tange às atividades de administração prisional, disciplina, segurança, transporte, assistência jurídica, médica, psicológica e social”.

Não é novidade, no entanto, que o estado burguês descumpre suas próprias leis quando estas atrapalham os negócios.

Narcotráfico

As unidades prisionais de Manaus são dominadas há anos pela FDN e o PCC. Na ausência do estado e sem agentes carcerários suficientes, são as facções que assumem o controle de fato das unidades prisionais. Cada grupo impõe suas regras no espaço da cadeia que dominam e punem os que as descumprem com violência e morte.

O PCC nasceu nos presídios de São Paulo como forma de criar mecanismos de assistência e proteção aos presos contra o Estado, que a facção vê como um inimigo comum. Já a FDN ganhou força com o controle das rotas de entrada e transporte principalmente da cocaína e da pasta-base vindas dos países sul-americanos vizinhos, principalmente a Colômbia.

A parca atuação da Polícia Federal e do Exército jamais foi capaz de conter este fluxo. Ao mesmo tempo que movimenta uma imensa cadeia criminosa, o narcotráfico enriquece “empresários” em Manaus responsáveis pela lavagem do dinheiro produzido.

A relação destes grupos com o estado é íntima e envolve desde pactos de não-agressão[3] até acordos eleitorais[4]. Ao mesmo tempo em que mantém uma política oficial de “linha dura” contra o tráfico e o porte de drogas, seguindo o modelo norte-americano, os políticos, gestores e agentes do poder público são não apenas lenientes, mas em muitos casos sócios do narcotráfico.

Casos como o das milícias na Zona Oeste do Rio de Janeiro e do Caso Wallace no Amazonas mostram a penetração destes grupos na burocracia estatal ao ponto de eleger seus próprios representantes e impor suas condições à atuação da polícia e da justiça.

Esses não são desvios ou mau funcionamentos, mas sintomas de características próprias do sistema econômico capitalista e do estado que lhe dá apoio e funciona como seu balcão de negócios. A lei existe apenas para proteger seus interesses e as proibições só servem para que se cobre mais caro.

Vigiar e punir

Segundo o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias)[5], 57% dos presos no Amazonas ainda não possuem condenação e 65% estão detidos há mais de 90 dias aguardando julgamento. A isso somam-se o déficit de defensores públicos e a notória flutuação na rigidez das penas de acordo com a classe social à qual pertence o réu. Quanto mais pobre, mais tempo encarcerado. Na prática, a lei e a máquina jurídica só funcionam a contento para quem tem dinheiro para pagar um advogado.

O Brasil possui a quarta maior população prisional do mundo e é o terceiro em número de presos para cada 100 mil habitantes. Enquanto os outros três países com maior população prisional, EUA, China e Rússia, tiveram queda de 8%, 9% e 24% respectivamente entre 2008 e 2014, o Brasil teve um aumento de 33% na taxa de aprisionamento. Se considerado desde 1990, o aumento é de 575%.

Entre os presos brasileiros, 56% são homens entre 18 e 29 anos (no Amazonas são 68%), 67% são negros (no Amazonas são 87%), 53% possuem o Ensino Fundamental incompleto, 50% tem de um a três filhos, 27% cometeram crimes relacionados ao tráfico e 21% cometeram roubos. Ou seja, o perfil médio do preso no Brasil é o de um homem negro, jovem, sem escolaridade, sem acesso a planejamento familiar e que cometeu crimes ligados à pobreza. Em comparação, os presos por peculato, corrupção ativa e corrupção passiva, típicos crimes de colarinho branco, somam apenas 551 pessoas.

Em um país onde os pobres, principalmente jovens e negros, enfrentam sistematicamente a violência, o desemprego e a falta de acesso à educação, não é de se espantar que as cadeias estejam superlotadas com pessoas destes grupos sociais. A ressocialização de detentos é uma piada quando se constata que apenas 1% das unidades tem acesso a educação técnica como forma de oferecer uma profissão alternativa ao crime.

A política de encarceramento em massa segue uma tendência crescente principalmente nos EUA, onde a privatização total de diversas unidades transformou as prisões em um negócio altamente lucrativo, inclusive com a exploração do trabalho dos detentos em regime de semi-escravidão. A máquina carcerária gera lucro triturando a classe trabalhadora, tanto os que estão dentro das celas quanto os que são (mal) pagos para vigiá-los.

Em 29 de dezembro, apenas três dias antes do massacre, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) recebeu do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) R$50 milhões para a construção de dois novos presídios no Amazonas. No mesmo dia o governador José Melo (PROS) anunciou uma parceria público-privada para a construção de presídio agrícola em Manaus. As medidas teriam como objetivo diminuir a superlotação e “continuar com as metodologias de humanização e direitos humanos”. Quanto tempo até a bomba relógio explodir novamente?

A justiça e o rigor da lei no sistema burguês servem apenas àqueles que não fazem parte da classe dominante. No ano em que se completam 500 anos da publicação de Utopia, de Thomas More, vemos o estado continuar fabricando ladrões para depois ter o prazer de enforcá-los.


[1] Relatório de visita a unidades prisionais de Manaus – Amazonas: http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/sistema-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura-snpct/mecanismo/Unidades_Prisionais_de_Manaus___AM.pdf

[2] Prisões Privatizadas no Brasil em Debate: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2014/09/Relato%CC%81rio-sobre-privatizac%CC%A7o%CC%83es.pdf

[3] Estado fez acordo com PCC para cessar ataques, diz depoimento:

http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,estado-fez-acordo-com-pcc-para-cessar-ataques-de-2006–mostra-depoimento,1732413

[4] Gravações revelam governo do AM negociando apoio de facção criminosa:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1535179-gravacoes-revelam-governo-do-am-negociando-apoio-de-faccao-criminosa.shtml

[5] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Junho de 2014: https://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf