Trabalhadores em luta por moradia apontam problemas no Plano Diretor da Cidade de Sumaré, os conflitos de interesse em sua formulação e a necessidade da mobilização popular.
Revisões dos Planos Diretores Municipais explicitam o que está em jogo…
Nos últimos dias 22 e 24 de outubro foram realizadas as duas (e únicas!) audiências públicas para a revisão do Plano Diretor do Município de Sumaré/SP.
O Plano Diretor é um instrumento normativo basilar para o desenvolvimento da cidade, um verdadeiro pilar que explicita as opções quanto ao ordenamento urbanístico, ou seja, é onde fica claro como atua o capital imobiliário e onde todos os interesses dos grandes proprietários de terra se confrontam com os interesses mais gerais dos trabalhadores.
Em todo o Brasil, o Plano Diretor é apresentado pela Prefeitura, devendo ser discutido com a população. Depois, tem que ser aprovado na Câmara de Vereadores e vira uma lei, que passa, então, a ter uma validade de até 10 anos, quando sofre nova revisão.
Feito à margem de uma discussão minimamente séria com a população, especialmente com os movimentos sociais, mais uma vez, como em todo o território nacional, um Plano Diretor seria concluído e aprovado sem qualquer exposição dos reais interesses da especulação imobiliária.
No entanto, desta vez, o contexto é bem diferente. É que aprovação ocorre em uma cidade que possui atualmente a maior ocupação de moradia do Brasil – a Vila Soma, que tem histórico de lutas e resistências, com a ocupação Zumbi dos Palmares, do MTST e, especialmente, por tudo que significa a organização da produção e do território sob controle dos trabalhadores, na fábrica ocupada Flaskô.
A Esquerda Marxista atua diretamente nestes processos de luta e contribui para as reflexões sobre todos os seus significados e as ações práticas necessárias para o atendimento das reivindicações da classe trabalhadora e da juventude.
Assim, como forma de denunciar que o Plano Diretor passaria “quieto” mais uma vez, o Comitê de Luta de Moradia de Sumaré, que envolve mais de 12 ocupações da cidade, se organizou e tomou as ruas no último dia 20 de outubro, com uma marcha, em todo o centro da cidade, com mais de 1.500 famílias. Explicamos publicamente o que estava em jogo,
Primeiramente, de modo lamentavel, não houve balanço crítico da atual versão do Plano Diretor com o intuito de verificar que todos os instrumentos de regularização fundiária existentes, não somente no PD mas no Estatuto da Cidade e na própria Constituição Federal, foram ignorados pelo Poder Executivo Municipal nos dez anos de sua vigência e, especialmente, nos últimos quatro anos pela atual gestão que se encerra, da Sra. Cristina Carrara (PSDB).
Nestes últimos dez anos não se viu no município de Sumaré a efetivação de política pública habitacional adequada, como forma de garantia dos direitos constitucionais, apesar do Plano Municipal de Habitação realizado no ano de 2010 e apesar do grande número de unidades contratadas pelo programa Minha Casa Minha Vida. Estas últimas resultado de uma grande negociação iniciada ainda em 2008 pela resistência das famílias então moradoras da ocupação Zumbi dos Palmares, na região da Cura. As contradições são tão grandes com programas como estes que, mesmo com o grande número de entregas de unidades habitacionais, o déficit habitacional aumentou, os aluguéis aumentaram, bem como o número de imóveis vazios. Contradições típicas do capitalismo. Ou seja, não obstante os imóveis entregues, a desastrosa “política” habitacional da prefeita tucana resultou ainda mais na assertiva de que “habitação, contraditoriamente, foi sinônimo de demolições, remoções e agressões!”.
Repudiamos aqui, uma vez mais, que a atual gestão do Município não tenha cumprido minimamente o que a legislação urbanística determina, com garantias aos instrumentos básicos. Além disso, não houve qualquer diálogo e a gestão preferiu a truculência e o desrespeito aos direitos mais básicos do cidadão, com o silêncio conveniente do próprio legislativo. Rasgou liberdades democráticas e criminalizou o movimento de moradia. Atacou o direito de manifestação e a liberdade de expressão. Mesmo assim, a luta só cresceu, somando-se as greves dos servidores públicos municipais e o combate à privatização da saúde (com as OSs) e à concessão do DAE (Departamento de Água e Esgoto) à Odebrecht, resultando em amplo processo de mobilização na cidade de Sumaré.
A luta continuará, mas as urnas já deram algumas respostas. A atual prefeita perdeu de lavada e metade da Câmara acabou sendo renovada. O desafio do novo prefeito e dos novos membros da Câmara é justamente inverter a lógica do planejamento urbano municipal. Entretanto, não temos dúvidas de que somente a luta das ruas poderá fazer a diferença e, desde já, apontamos nossas reivindicações e deixamos claro que manteremos nossa autonomia e independência política.
Voltando ao significado do combate quanto ao Plano Diretor, vimos que a Secretaria de Planejamento, infelizmente, acabou ficando refém das orientações políticas do gabinete da Prefeita ao invés de ouvir devidamente a equipe técnica, qualificada em sua multidisciplinaridade, sobretudo no contexto técnico do planejamento urbano, nos vários aspectos de uma cidade que não ficasse presa à especulação imobiliária, que não promovesse ainda mais exclusão social. As contradições entre as falas dos comissionados e os servidores concursados foram gritantes. Escancarou-se o caráter político das opções feitas.
Depois da pressão realizada pelo movimento de moradia, a Comissão técnica reconheceu a força dos interesses da especulação imobiliária e como o mesmo é um empecilho para se ter uma cidade devidamente planejada, pensando as pessoas e o bem estar social. Deve-se sempre combater tais interesses. A ressalva que fazemos é de que a presença da especulação imobiliária não se dá somente na época das eleições, mesmo que, obviamente, seja quando ficam mais evidentes seus interesses. Basta olhar quem são os maiores financiadores de campanhas e quais os pleitos apresentados.
Por isso, milhares de famílias em luta por moradia, especialmente da Vila Soma, decidiram tomar as ruas na presente data para apresentar publicamente seu desacordo com alguns pontos da atual proposta de revisão do Plano Diretor de Sumaré. Muitos aspectos poderiam e deverão ser analisados, mas focaremos aqui em três aspectos centrais que explicitam como o Plano Diretor se consolida como o aprimoramento de condições favoráveis a uma pequena parcela de proprietários de terras em detrimento dos demais cidadãos e às custas dos recursos públicos.
Apesar de reconhecer a equipe técnica de revisão do Plano Diretor pelo trabalho de revisão até aqui desenvolvido, sendo que a nova versão do plano ganhará muito em qualidade e também em continuidade, já que avança na sua possível efetivação, precisamos ressaltar três discordâncias fundamentais no conjunto apresentado na última audiência: 1. A ampliação do perímetro urbano; 2. A não demarcação de Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) para regularização das diversas ocupações existentes no município, sobretudo a da Vila Soma; e 3. O equívoco de definição de alguns instrumentos urbanísticos propostos, que os levará à ineficiência.
Quanto ao primeiro ponto, é certo que Sumaré possui vazios internos ao perímetro atual mais que suficientes para a expansão dos próximos 10 anos! Se expandir irá onerar sobremaneira o cofre público, que terá que arcar com a expansão das infraestruturas e serviços até as localidades que sofrerem parcelamentos. Para defender tal mudança, a equipe técnica reivindica dois argumentos. Primeiro, que a demanda surgiu nas consultas prévias. Porém, reconhece que ela surge do capital imobiliário. Por isso, lembramos que é papel fundamental da equipe técnica analisar a pertinência das propostas feitas pela população, através de seu crivo técnico e pela ótica do planejamento urbano, descartando as propostas nocivas ao município. A equipe técnica está argumentando também que com tal ampliação irá permitir os usos industriais no eixo da rodovia Bandeirantes. Pois bem, se esta é a finalidade da mudança então por que não criar um distrito industrial que, inclusive, cubra ambas as margens da Bandeirantes, descartando assim a necessidade de grande ampliação de áreas vazias no município? Sempre é necessário frisar que sejam efetivados os instrumentos que obriguem a Prefeitura a combater as áreas vazias. Em termos práticos, se não há medidas assim, a tendência é continuar as ocupações dos terrenos vazios, diante da ociosidade da propriedade e descumprimento da sua função social.
O segundo aspecto de discordância se refere às áreas ocupadas. Todas as ocupações consolidadas e que estejam fora das áreas de risco devem ser regularizadas e urbanizadas – e o primeiro passo para isso é demarcar as ZEIS. O contrário será negar o direito à cidade e a função social da propriedade à população de baixa renda, e, portanto, contradizer os três primeiros artigos da proposta atual, que dispõem sobre a função social da cidade e da propriedade. Sobre o caso da Vila Soma em específico, por tudo que ela representa, defendemos sua regularização e urbanização.
Por fim, um terceiro aspecto escolhido para sintetizar minha crítica: é evidente que se faz necessário rever a forma de aplicação de alguns instrumentos como, por exemplo, o índice sugerido para o IPTU progressivo, que, apesar de ser um instrumento progressista, só terá eficácia se tiver alíquotas altas, pois, se não, resta que se tornará substancialmente menor do que a própria previsão de valorização do imóvel, o que acaba por premiar o especulador, invertendo-se o intuito de tal instrumento.
Como marxista, não tenho ilusão do caráter do Estado e não tenho ilusão de que basta ter um Plano Diretor maravilhoso para que todos os problemas acabem. Longe disso. Mas sim, entendo justamente como o método do materialismo dialético nos ensina, que é necessário expor as contradições da construção de um projeto de lei e que ela precisa ser realmente democrática, seja na sua forma, com a efetiva participação popular dos movimentos de moradia, seja no conteúdo, para que garanta a regularização das áreas atualmente ocupadas e cumpra o disposto em seu artigo 3º quanto à necessária função social da cidade e combate à lógica da especulação imobiliária.
Por tudo isso, as famílias que lutam por moradia tomaram as audiências públicas, lotaram o auditório, questionaram, se manifestaram, expondo, publicamente, as contradições do que está em jogo com o Plano Diretor. De cara limpa e cabeça erguida, muitas das famílias, pela primeira vez na vida, passam a saber que somente a “luta faz a lei” e que somente as ocupações de terras garantirá seu direito à moradia. Isso é sensacional!
Talvez por isso tantos falam que não podem “resolver a situação da Soma, porque imagina se a moda pega?!”. Essa frase que já ouvimos com as fábricas ocupadas, mesmo em Sumaré, pelo mesmo Judiciário local, expressa bem o que está em jogo. Expor? as contradições do Plano Diretor efetivamente servirá? Como saltos qualitativos, colocando a luta de moradia num patamar importante da luta de classes e para expressar os interesses disputados – capital imobiliário x movimento sem teto. A luta continuará…