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O argentinazo, 20 anos depois

Há 20 anos uma profunda crise levava a Argentina a assistir à sucessiva derrubada de vários presidentes, entre os quais Fernando De la Rúa e Adolfo Rodríguez Saá. Dois anos antes os argentinos tinham elegido De la Rúa, da direitista União Cívica Radical (UCR), imaginando estar derrotando o “menemismo”. Contudo, em dezembro de 2001, tiveram que derrotar o próprio De la Rua, pois esse aplicava um programa de ataques contra os trabalhadores que muito lembrava as medidas de Carlos Menen. Entre 19 e 20 de dezembro de 2001, nas ruas de Buenos Aires, assistiu-se ao argentinazo.

O argentinazo não se deu do dia para a noite. Desde o santiagueñazo, em 1993, na província de Santiago del Estero, até o argentinazo, várias lutas agitaram todo o país. O santiagueñazo – quando os três poderes locais foram tomados e queimados pela população local – foi seguido pelas puebladas em Salta, Jujuy, Córdoba, Neuquén, Tucuman e Corrientes.

Greves gerais, ocupações de prédios, corte de ruas – esses eram o método de luta. Eram centrais nas mobilização a reivindicação de salário e emprego. Essa questão referente ao emprego está relacionada a um dos principais setores dessas lutas, o movimento piquetero, que expressava a organização dos trabalhadores desempregados.

Além do acúmulo de lutas dentro do país, o argentinazo também está ligado a lutas em outros países. No começo dos anos 2000, uma série de mobilizações e insurreições movimentavam a América Latina. Pode-se mencionar, entre outras, a greve de quase 10 meses dos estudantes da UNAM no México, a tomada do poder pelo Parlamento dos Povos no Equador e a luta dos cocaleros na Bolívia. Contudo, em todas essas lutas, como ocorreu no argentinazo, um dos traços mais marcantes foi a demonstração da crise de direção dos trabalhadores.

Na Argentina, De la Rua havia assumido em meio a uma profunda crise econômica. Em março de 2001 teve de recorrer a Domingo Cavallo – que havia ficado em terceiro nas eleições presidenciais de 1999 –, símbolo da política econômica do governo de Carlos Menen. A nova política econômica do governo De la Rua quebrou as províncias e atrasou o pagamento de salários e aposentadorias. Em dezembro de 2001, foi anunciado o corralito, congelando os depósitos bancários, fazendo com que a classe média se somasse aos piqueteros, funcionários públicos, operários e jovens nas mobilizações.

“Embora a rebelião não tivesse uma organização ou propostas unificadoras, sabia-se o que não se desejava. Rejeitados ajustes econômicos, cortes orçamentários, endeusamento do mercado, desemprego, descaso com as políticas sociais, desrespeito à saúde e educação públicas, repressão aos protestos e aos personagens que materializavam essas políticas. O “¡que se vayan todos!” questionou todas as instituições e derrubou governo após governo: De la Rúa-Cavallo, Puerta, Rodriguez Saa, Camaño, Duhalde”.1

Em 19 de dezembro, generalizaram-se os saques a supermercados, iniciados no final de semana anterior, em Buenos Aires. Em Córdoba e em La Plata, os sindicatos organizavam mobilizações. Em resposta, o presidente decretou Estado de Sítio. Em Buenos Aires, milhares de pessoas iniciarem uma marcha até a Praça de Maio. Quando as principais ruas da capital e a Praça de Maio estavam tomadas, houve uma dura repressão, derrotada pela população revoltosa. Por volta das 3h da madrugada foi anunciada a notícia da renúncia do ministro Cavallo

No dia 20, milhares de pessoas – desempregados, trabalhadores de diferentes categorias, jovens – continuavam na Praça de Maio exigindo a renúncia também de De la Rua. Houve durante várias horas conflito com a polícia. De la Rua tentou, sem sucesso, chamar os peronistas a apoiar seu governo. Mas o único caminho viável foi anunciar a renúncia, por volta das 19h, deixando um saldo de 39 mortos e milhares de feridos como consequência da repressão.

Seu sucessor, Rodríguez Saá, ficou menos de dez dias no governo. O peronista Eduardo Duhalde, eleito pelo Congresso no começo de janeiro, que havia ficado em segundo lugar na eleição vencida por De la Rúa, permaneceu no cargo até 2003. Nesse ano o peronista Néstor Kirchner foi eleito pelo voto direto.

Depois do argentinazo cresceram o movimento e organização dos piquetero, as assembleias de bairros e se espalhou pelo país o movimento de fábricas recuperadas sob controle dos trabalhadores. Uma estabilização da situação política foi alcançada pela burguesia somente com a eleição de Kirchner. Essa estabilidade, alcançada em grande medida pela cooptação de organizações dos trabalhadores, em especial de uma parcela das organizações piqueteras, se mostrou sempre bastante frágil.

O argentinazo ainda marca a situação política na Argentina. Uma das expressões disso é a Frente de Esquerda (FIT), bloco eleitoral construído pelo Partido Obrero (PO), Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) e outras organizações menores. Essas organizações, em especial os dois maiores partidos, tiveram um grande crescimento depois do argentinazo, tendo dirigido importantes lutas, como a das fábricas recuperadas pelos trabalhadores e do movimento piquetero.

Contudo, contraditoriamente, essas organizações também têm responsabilidade pelo fato de o argentinazo não ter avançado até a tomada do poder. Por conta de suas disputas sectárias por espaços políticos, a unidade em torno do fortalecimento dos organismos de duplo poder sempre esbarrou em polêmicas artificiais e que não tinham qualquer relação com a situação concreta e os interesses dos trabalhadores.

“Os grupos de esquerda e socialistas revolucionários não estavam à altura da tarefa. Erros diferentes foram cometidos. Alguns descaracterizaram o momento e não viram o potencial revolucionário da situação. Eles propuseram tarefas de muito longo prazo e sem audácia. Outros, ao contrário, pensaram que as massas continuariam indefinidamente nas ruas e mantiveram o boicote às instituições democrático-burguesas por anos. Ou caíram em slogans complicados como a Assembleia Constituinte, emaranhada em questões legais. Houve, sim, uma parte da esquerda que tentou intervir com mais ousadia, mas cometeu alguns erros que aprofundaram sua fragmentação e isolamento: eles ignoraram as táticas da Frente Única para se conectar com as massas e disputar sua direção, eles fecharam qualquer genuíno tentativa de organização de massa (como as já citadas Assembleias e também os espaços de recuperação sindical) e, alguns, até duvidaram do protagonismo dos trabalhadores assalariados teorizando sobre novos sujeitos sociais”.2

Nesse sentido, sem uma direção que apresentasse um caminho coerente no sentido da possibilidade de tomada do poder, os trabalhadores acabaram procurando na democracia burguesa a saída para os seus problemas, nutrindo a ilusão de que o capitalismo teria condições de responder às suas mais prementes necessidades. Essa foi a política de cooptação dos trabalhadores realizada pelos governos Kirchner, tanto por Nestor como por Cristina. Contudo, houve o esgotamento dessa política, em meio ao aprofundamento da crise econômica internacional e da incapacidade do Estado de conseguir sustentar as ações dos governos. Esse esgotamento política levou à vitória eleitoral do empresário Mauricio Macri, em 2015.

O fantasma do argentinzo ainda paira na Praça de Maio. Os trabalhadores seguem se organizando e lutando, devendo superar suas ilusões não apenas no peronismo, mas também nas organizações de esquerda que, apesar de sua retórica socialista e revolucionária, vem se perdendo nas disputas parlamentares. Uma necessidade urgente passa pela construção de um partido operário que, partindo da experiência da FIT, possa tanto superar as limitações dessa frente eleitoral como as ilusões dos trabalhadores no peronismo, se forjando como uma efetiva direção revolucionária.

19º aniversario del Argentinazo: un balance”

2 Ibid.