Com o aprofundamento da crise, o aumento do desemprego e da miséria, aparece com mais força a proposta de uma renda básica universal. Ela é apresentada tanto por setores da burguesia quanto por setores da esquerda. Neste artigo, buscaremos compreender a origem desta proposta, seus objetivos e se ela é ou não uma bandeira a ser levantada pelos revolucionários marxistas.
A chamada Renda Básica Universal (RBU) aparenta ser uma proposta simpática. Ela tem semelhanças e diferenças com já conhecido Bolsa Família, também uma proposta da chamada “política de transferência de renda”. A principal diferença é que a Renda Básica Universal seria um valor pago a todos os cidadãos, ricos ou pobres, burgueses ou proletários.
A Renda Básica Universal é também diferente, portanto, do Auxílio Emergencial, concedido no Brasil e em diferentes países desde o ano passado em virtude da pandemia.
Sobre uma renda básica para todos, o primeiro registro que temos da ideia vem da literatura, na obra Utopia (1516), de Thomas More. A primeira proposta concreta de renda básica surgiu em 1796, em meio à Revolução Francesa, pelas mãos do revolucionário britânico Thomas Paine, mas foi uma proposta que não saiu do papel. Experiências localizadas existiram, a mais longeva no Alasca, de 1982 até hoje, mas em condições muito peculiares, em que a renda básica é financiada por royalties do petróleo.
Com variações, diferentes personalidades e grupos encamparam a defesa de uma renda mínima ao longo da história. Desde socialistas utópicos, como Charles Fourier (1772 – 1837), chegando a economistas liberais, como o ganhador do prêmio Nobel de economia Milton Friedman (1912 – 2006). Em seu livro “Capitalismo e Liberdade”, de 1962, Friedman apresenta um tipo de renda básica a partir da proposta de um imposto de renda negativo.
Milton Friedman foi um dos líderes da chamada Escola de Chicago, que formou uma linha de pensamento ultraliberal, tendo participação na política econômica da ditadura de Pinochet, no Chile, e que teve como um de seus discípulos um conhecido nosso, o atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes.
Em uma entrevista concedida a Eduardo Suplicy, no ano 2000, chamada de “Um diálogo com Milton Friedman sobre o imposto de renda negativo”, o economista americano deixa claro que sua proposta é um tipo de renda básica:
Suplicy: Como o Sr. avalia a proposição de uma renda básica ou renda do cidadão comparada com a alternativa de um imposto de renda negativo?
Friedman: Uma renda básica ou renda do cidadão não é uma alternativa ao imposto de renda negativo. É simplesmente uma outra forma de se introduzir um imposto de renda negativo se for acompanhado de um imposto de renda positivo sem isenção. Uma renda mínima de mil unidades com uma porcentagem de 20% sobre a renda ganha é equivalente a um imposto de renda negativo com isenção de cinco mil unidades e uma porcentagem de 20% abaixo e acima de cinco mil unidades.
A discussão da renda básica foi apresentada também no Brasil pela Fundação FHC, que realizou, no ano passado, um debate com economistas que defendem a proposta.
Interesses burgueses com a renda básica
Todo revolucionário sério, antes de embarcar atrás do belo canto da renda básica, deveria se perguntar: por que destacados defensores do capitalismo estariam a favor desta proposta?
Uma resposta é apresentada pela subsecretária-geral da ONU e diretora do PNUD para a Ásia e o Pacífico, Kanni Wignaraja, que defendeu a renda básica universal por conta dos benefícios “enormes” que traria para a estabilidade social. Ela prevê que com a concentração de riqueza, o aumento da desigualdade, caso não seja implementada a renda básica teremos um provável aumento da “agitação social, conflito, migração em massa incontrolável e proliferação de grupos extremistas“.
Em outras palavras, a subsecretária-geral da ONU, este organismo internacional da burguesia, teme uma revolução.
O Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em Davos, também tem discutido com mais seriedade a proposta da renda básica universal, incluindo o tema na pauta de seus encontros.
A realidade é que a proposta de renda básica não entra em choque com a estrutura da sociedade capitalista. Ao contrário, é compatível com ela e é uma tentativa de estrategistas do capital para que o sistema sobreviva às suas contradições. A renda básica não abre nenhum questionamento sobre a propriedade privada e o Estado burguês. É uma política reformista, ou seja, que busca vender a ilusão de que o sistema capitalista pode ser melhorado, regulado, humanizado, e ser menos desigual. No entanto, a exploração e opressão, a extração da mais-valia, a existência de um exército industrial de reserva, são condições intrínsecas do capitalismo. Em sua época de decadência, mesmo as conquistas impostas pela luta de classes são atacadas permanentemente.
Outra preocupação dos capitalistas são os impactos da chamada 4ª Revolução Industrial, o avanço do uso de robôs, inteligência artificial etc. No socialismo, este desenvolvimento tecnológico propiciaria um salto para a libertação do ser humano. No capitalismo significa mais desemprego, precarização e miséria.
A Rede Brasileira de Renda Básica, no “Quem Somos” de seu site, explica sua missão:
A Rede reúne professores, pesquisadores, ativistas sociais, voluntários, entusiastas e cidadãos que conseguem perceber que a Renda Básica é atualmente a maneira mais viável de alcançar a justiça social através da distribuição de renda menos desigual e evitar o colapso do mercado de consumo, amenizando as consequências da 4ª revolução industrial.
Desta forma, eles buscam demonstrar as vantagens da renda básica para a sobrevivência do capitalismo, já que supostamente evitaria “o colapso do mercado de consumo”. Esta é uma tentativa utópica de resolver uma contradição básica do capitalismo que está na raiz de suas crises: a superprodução. A chamada Indústria 4.0 só vai intensificar isso, com uma capacidade produtiva maior e mais desempregados, portanto, com um mercado consumidor menor. O capitalismo é um sistema decadente, cujas bases (a propriedade privada dos meios de produção e os Estados nacionais) impedem o desenvolvimento das forças produtivas, convertendo-as, na época do imperialismo, em forças destrutivas, fazendo toda a sociedade caminhar em direção à barbárie. Não há como impedir esta trajetória sem atacar as bases deste sistema, e isso, a Renda Básica Universal não faz, ao contrário, tenta vender a ilusão de que o capitalismo pode ser melhorado.
O Programa de Transição e o combate ao desemprego e à miséria
Leon Trotsky, no Programa de Transição, o programa da 4ª Internacional, ao elaborar um sistema de reivindicações transitórias “que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”, não incluiu entre estas reivindicações nada sobre renda mínima ou coisa do tipo. O que diz o Programa de Transição contra o desemprego e a miséria:
Nas condições do capitalismo em decomposição, as massas continuam a viver a vida morna de oprimidos que, hoje mais do que nunca, estão ameaçados de serem lançados no abismo da miséria. Elas são obrigadas a defender seu pedaço de pão, mesmo se não podem aumentá-lo ou melhorá-lo. Não há possibilidade nem necessidade de enumerar aqui as diversas reivindicações parciais que surgem, a cada momento, de circunstâncias concretas, nacionais, locais, profissionais. Mas dois males econômicos fundamentais, nos quais se resume o absurdo crescente do sistema capitalista – o desemprego e a carestia da vida -, exigem palavras de ordem e métodos de luta generalizados.
A IV Internacional declara uma guerra implacável à política dos capitalistas que é, em grande parte, a de seus agentes, os reformistas, tendendo a fazer recair sobre os trabalhadores todo o peso do militarismo, da crise, da desagregação dos sistemas monetários e de todos os outros males da agonia capitalista. Reivindica TRABALHO e uma EXISTÊNCIA DIGNA para todos.
Nem a inflação monetária nem a estabilização podem servir de palavras-de-ordem ao proletariado, pois são duas faces de uma mesma moeda. Contra a carestia da vida, que à medida que a guerra for aproximando-se adquirirá um caráter cada vez mais desenfreado, só se pode lutar com a palavra-de-ordem de ESCALA MÓVEL DE SALÁRIOS. Os contratos coletivos devem assegurar o aumento automático dos salários, correlativamente à elevação dos preços dos artigos de consumo.
O proletariado não pode tolerar, sob pena de degenerar, a transformação de uma parte crescente dos operários em desempregados crônicos, em miseráveis vivendo das migalhas de uma sociedade em decomposição. O direito ao trabalho é o único direito sério que o operário tem numa sociedade fundada sobre a exploração. Entretanto, este direito lhe é tirado a cada instante. Contra o desemprego, tanto estrutural quanto conjuntural, é tempo de lançar, ao mesmo tempo que a palavra-de-ordem de trabalhos públicos, a de ESCALA MÓVEL DAS HORAS DE TRABALHO. Os sindicatos e as outras organizações de massa devem unir aqueles que têm trabalho àqueles que não o têm através dos mútuos compromissos da solidariedade. O trabalho disponível deve ser repartido entre todos os operários existentes, e essa repartição deve determinar a duração da semana de trabalho. O salário médio de cada operário continua o mesmo da antiga semana de trabalho. O salário, com um mínimo estritamente assegurado, segue o movimento dos preços. Nenhum outro programa pode ser aceito para o atual período de catástrofes.
Trabalho para todos, um salário digno para todos. Escala móvel de salários, ou seja, gatilho salarial para que o aumento da inflação seja revertido automaticamente em aumento de salário. Escala móvel das horas de trabalho, ou seja, redução da jornada sem redução dos salários, até que toda a mão de obra disponível seja incorporada no trabalho disponível. Reivindicações que partem das necessidades das massas e as colocam em choque com o capitalismo. Impossível? O Programa de Transição responde:
Os proprietários e seus advogados demonstrarão a impossibilidade de realizar estas reivindicações. Os pequenos capitalistas, sobretudo aqueles que caminham para a ruína, invocarão, além do mais, seus livros de contabilidade. Os operários rejeitarão categoricamente esses argumentos e essas referências. Não se trata do choque normal de interesses materiais opostos. Trata-se de preservar o proletariado da decadência, da desmoralização e da ruína. Trata-se da vida e da morte da única classe criadora e progressista, e, por isso mesmo, do futuro da humanidade. Se o capitalismo é incapaz de satisfazer as reivindicações que surgem infalivelmente dos males que ele mesmo engendrou, que morra! A possibilidade ou impossibilidade de realizar as reivindicações é, no caso presente, uma questão de relação de forças, que só pode ser resolvida pela luta. Sobre a base desta luta, quaisquer que sejam seus sucessos práticos imediatos, os operários compreenderão melhor toda a necessidade de liquidar a escravidão capitalista.
A luta pela revolução e a RBU
Os que lutam pela revolução, pelo fim do regime capitalista, não deveriam embarcar junto com setores da burguesia em defesa da Renda Básica Universal.
Em relação ao auxílio emergencial, como medida imediata para informais e desempregados atingidos pela catastrófica crise no Brasil e no mundo, nós não nos opomos e reivindicamos um valor maior, no mínimo o valor do seguro-desemprego, não a atual migalha de R$ 150,00. Ao mesmo tempo, nossa luta é contra as demissões, manutenção de todos os empregos e salários integrais, estatização de empresas que demitem em massa (como a Ford, que fechou todas as fábricas no Brasil no ano passado), anulação das contrarreformas da previdência e trabalhista, contratação de todos os trabalhadores de aplicativos (Uber, Ifood, Rappi, etc.) como trabalhadores destas empresas, com salário e todos os direitos garantidos. Ver mais em nosso Programa Emergencial para Crise no Brasil.
É muito diferente uma medida emergencial, para conter o problema imediato, como é o caso do Auxílio Emergencial, de uma política permanente de renda básica, que visa cria uma massa de desempregados dependente de esmolas do Estado. Assim como ocorre, em outras proporções, com o atual Bolsa Família.
Defender a RBU é aceitar a estratégia da burguesia de evitar uma explosão social com a ilusão da distribuição de renda, deixando uma parcela da população fora da força produtiva e sob pressão do governante de plantão em suas pretensões eleitorais. O capitalismo é incapaz de prover uma vida digna para uma massa de desempregados, achar que isso é possível nesse sistema é utópico, ainda mais em um país dominado como o Brasil, em que a palavra de ordem da burguesia é a austeridade. O valor do Bolsa Família é um exemplo, programa que tem como valor médio do benefício R$ 186,83 (fevereiro/2021).
A nossa reivindicação não é pela Renda Básica Universal. A nossa luta deve ser por emprego para todos, obviamente com o direito à aposentadoria por tempo de serviço e pensão para os que não tem condições de trabalhar, com uma previdência pública e solidária e a revogação das reformas da previdência de FHC, Lula e Dilma.
Se compreendemos que a classe trabalhadora é a classe revolucionária capaz de derrotar a burguesia, seu crescimento é, portanto, do interesse dos revolucionários. Lutamos por mais postos de trabalho, mais trabalhadores, estes que são os coveiros do capitalismo, e não uma camada de desempregados dependente de uma renda básica estatal.
Por tudo isso, os revolucionários devem olhar pra além da embalagem atraente e compreender as armadilhas contidas na proposta de Renda Básica Universal. Definitivamente, “não existe almoço grátis” no capitalismo.