“E, finalmente, os próprios pontífices da ‘religião e da ordem’ são derrubados a pontapés de seus trípodes píticos, arrancados de seus leitos na calada da noite, atirados em carros celulares, lançados em masmorras ou mandados para o exílio” (Karl Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte)
A votação sobre o caso do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) na Câmara dos Deputados obteve o desfecho que era esperado: a prisão do parlamentar foi aceita. Os principais jornais burgueses expressaram no dia 19/02 sua opinião favorável à decisão do ministro Alexandre de Moraes afirmando que Daniel precisava “ser punido com rigor e rapidez”1 e que “há limites e eles precisam ser devidamente lembrados”2. A Folha de S. Paulo3 até cunhou a prisão de “questionável”, entretanto corroborou a decisão e afirmou que o “deputado que atacou STF merece perder [seu] mandato”.
Na noite em que foi preso, Daniel Silveira estava confiante na sua vitória na Câmara. Entretanto, os deputados se curvaram. Na farsa brasileira, o defensor do AI-5, para se salvar, apelou a todo o momento à democracia enquanto os supostos defensores da democracia defenderam a punição que fez uso da legislação criada pela ditadura para calar quem “falou demais”.
Mas a quem ou ao que se curvaram os deputados? Por mais que o STF apareça como o único responsável por essa decisão dos parlamentares, devemos prestar atenção às outras pautas em discussão no Congresso Nacional.
No mesmo dia em que se discutia amplamente o destino de Daniel Silveira, o senador Márcio Bittar (MDB-AC) declarou à imprensa que há “convergência total” com o governo para prorrogar o auxílio emergencial e retomar a agenda de reformas. O senador é relator de duas Propostas de Emenda à Constituição, as PECs Emergencial (nº 186/2019) e do Pacto Federativo (nº 188/2019), que devem ser unidas em um único documento para agilizar a aprovação.
As duas PECs fazem parte de um pacote de projetos do governo Bolsonaro para garantir o “ajuste fiscal”, leia-se, cortes na saúde, educação, remuneração de servidores públicos etc. A PEC Emergencial prevê a proibição de: concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a servidores públicos; criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa; alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa; admissão ou contratação de pessoal; realização de concurso público, exceto para as reposições; medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, inclusive do salário mínimo; entre outras. O Pacto Federativo segue a mesma linha e os dois projetos propõem os cortes em detrimento do pagamento para a dívida pública.
A fala do deputado Danilo Cabral (PSB-PE) durante a sessão que decidiu o destino de Daniel Silveira exemplificou bem o interesse dos “nobres pares”. O parlamentar afirmou a necessidade de estabilidade no país para discutir o que interessa, na opinião de Danilo Cabral, ao povo brasileiro: as reformas. O silêncio do governo Bolsonaro diante da crise que se estabeleceu também possuiu importante significado.
Daniel Silveira cometeu um erro, e para a burguesia não se trata do conteúdo de suas acusações, mas sim da mudança de foco que ameaçava atrasar as famigeradas “reformas” que irão jogar nas costas da classe trabalhadora o ônus pela crise econômica.
O governo dos “não-eleitos” apoiado pela “esquerda”
Porém, não podemos esquecer do papel do STF nessa história. Não é de agora que essa instituição tem se lançado à tarefa de cumprir um papel de “último bastião do Estado, estabelecendo um regime aparentemente democrático, mas tutelado pelo Judiciário em todos os seus aspectos“. Como explicamos anteriormente, “um regime de fato comandado por uma oligarquia de juízes hostis às liberdades democráticas, que disfarçam de neutralidade jurídica suas ações políticas, que tentam elevar-se como árbitro supremo das disputas políticas entre as facções burguesas e entre as classes”.4
Em 2020, uma matéria da BBC News5 reuniu uma série de exemplos do uso da Lei de Segurança Nacional (LSN) no mesmo ano. Como afirmava o artigo, a LSN voltou “com tudo” e foi utilizada para enquadrar desde grupos de extrema-direita até um cartunista que fez uma charge criticando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O caso de Daniel Silveira abre um precedente que ameaça a todas as organizações de esquerda e dirigentes da classe trabalhadora. A motivação do STF e de todo o Judiciário é clara: a crescente polarização social, agudização da luta de classes e a crise do regime burguês, intensificada pela crise econômica e a pandemia. Trata-se de uma tentativa de preservação do Estado burguês contra as massas exploradas.
PT, PSOL, PCdoB e demais partidos que se intitulam de “esquerda” também consideraram “correta, proporcional e necessária a decisão do ministro Alexandre de Moraes”. Maria do Rosário (PT-RS) esqueceu das PECs em discussão, mas lembrou de criticar o projeto que supostamente vai armar toda a população (quem nos dera). Como uma boa representante da burguesia, defendeu as instituições da República e a Constituição.
O PSOL apenas se utilizou de um outro discurso, mas seguiu a mesma linha. Retomou o fantasma do fascismo e a ameaça à democracia que representa o deputado, os bolsonaristas e o próprio Bolsonaro. Mas ao fim e ao cabo, deu aval ao STF e ao uso da LSN. As direções da classe trabalhadora são, hoje, aquelas que renunciam “a revolucionar o velho mundo” e tentam, “pelo contrário, alcançar sua redenção independentemente da sociedade, de maneira privada, dentro de suas condições limitadas de existência”6.
Como afirmou Marx em “O 18 brumário de Luís Bonaparte”, a república significa geralmente apenas a forma política da revolução da sociedade burguesa e não sua forma conservadora. Há uma necessidade de defenestrar um membro menos importante da própria burguesia para garantir os interesses da classe dominante e, para isso, a democracia formal foi jogada ao lixo.
Os marxistas devem compreender esse momento, explicar pacientemente à classe trabalhadora, à juventude, ganhar para as fileiras da revolução os elementos mais avançados e preparar o combate para pôr abaixo o governo Bolsonaro já, suas contrarreformas e o capital.
Fontes:
3 https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/02/caso-de-cassacao.shtml
5 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53116925
6 O 18 brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx.