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O papel do racismo na divisão da classe trabalhadora

Entre as opressões utilizadas pelo sistema capitalista, o racismo faz parte do repertório sobre o qual se assenta e edifica historicamente a ideia de que os miseráveis foram feitos de um “barro diferente” e, portanto, é natural que sejam explorados, não só por uma raça superior como se possa supor, mas por uma classe que se julga superior.

Para iniciarmos essa discussão, é importante destacar que embora o racismo não seja um produto do século 19, foi no contexto deste século, que de acordo com Giralda Seyfert:

“O racismo resultou de uma sobreposição da ideologia (de superioridade da raça branca) à ciência, no contexto do expansionismo europeu, da luta de classes, da revolução de 1848, da emergência do socialismo e da cristalização dos nacionalismos. Os pressupostos da desigualdade biológica com referência à humanidade, portanto, não abrangiam apenas as chamadas “raças inferiores” (os não brancos), mas também as “classes inferiores”, o “sexo inferior”, os “grupos étnicos inferiores” etc. Afinal, para muitas doutrinas racistas, os europeus verdadeiramente superiores eram homens da classe dominante (aristocracia e burguesia); as mulheres, as classes trabalhadoras (camponeses, operários), os pobres em geral, os ciganos, os judeus e muitos outros penavam no inferno da inferioridade biológica e da dominação legítima.”1

É também da efervescência do século 19, não só a determinação do fim do tráfico negreiro, mas a Lei 601, chamada Lei de Terras, que fazia parte de uma política imigratória que passava a condenar a escravidão assumindo-a como entrave ao desenvolvimento econômico e civilizatório que caracterizaria uma nação moderna na qual despontava o capitalismo industrial.

Entretanto, ao passo que cessava o tráfico mantinha-se intocada a escravidão, uma vez que a nova política de mão de obra assentava-se no controle estatal ainda maior sobre os africanos livres. E se por um lado os ex-escravos não seriam mais entregues a particulares, passariam a partir de então a ser empregados em instituições e obras públicas, o que continuou assassinando os africanos sem que pudessem de fato gozar da liberdade prometida – isso sem desconsiderarmos que o tráfico interno permaneceu largamente ativo2.

Contudo, a despeito das mudanças ocorridas desde a Independência, ainda havia uma pendência em relação à posse de terras no país, pois na época da colônia as terras eram concedidas pela Coroa no regime de sesmarias. Nesse momento (1850), havia a demanda de redefinição da regulamentação da questão fundiária, especialmente se considerarmos a necessidade da substituição da mão de obra escrava nas fazendas, o que incentivava a vinda de imigrantes – inclusive para o embranquecimento do país. A partir de então se apresenta uma concepção moderna em que a terra passa a ser entendida como mercadoria, reafirmando a estrutura latifundiária no Brasil.

Regularizando as escrituras dos grandes proprietários e impondo uma série de dificuldades e impossibilidades aos pequenos produtores, o sistema gerou um contingente de mão de obra assalariada que abasteceu as grandes fazendas. Essa forma de legalização da posse da terra delineia exemplarmente o modelo de sociedade capitalista emergente, reafirmando os critérios de distinção entre a classe dominante e o proletariado, com forte componente racial na sua formulação.

Esse componente racial expresso na política de embranquecimento da população brasileira seguiu o lastro da política já experimentada nos EUA. A intenção era criar uma classe operária branca para se opor à preta já existente. No artigo de Theodore W. Allen3 sobre a invenção da raça branca, o autor ilustra essa questão trazendo o exemplo da Rebelião de Bacon de 1676, quando servos europeus e africanos (contratados, escravizados e livres) insatisfeitos se uniram contra a política fiscal da colônia da Virgínia4.

Os EUA fizeram escola para o mundo ao defender o controle social tendo por base a escravidão e a servidão de negros e brancos, em que o papel do branco pobre era essencial para apartar etnicamente brancos e negros, promovendo dessa forma um racismo antinegro que, em última instância, servia para romper qualquer possibilidade de unidade de classe.

Theodore Allen ainda questiona em seu artigo o porquê da escravidão racial e por que os servos brancos não foram reduzidos a servidão perpétua. E a resposta é porque a não servidão do trabalho branco era indispensável para a escravidão do trabalho negro! Essa era a premissa do controle social branco, elevar o proletariado branco como garantidor do Estado burguês.

Foto: Tomaz Silva, Agência Brasil

Dado que a classe trabalhadora branca e negra em diversos momentos burlou as regras e se aliou contra a burguesia, como no caso da Rebelião de Bacon, uma das questões centrais vivenciadas pelas colônias e pelos impérios passava pela distinção entre a opressão de raça e classe para brancos e negros, reforçando tanto a supremacia branca, quanto a escravidão racial como uma resposta da burguesia para um problema de solidariedade trabalhista5.

Da mesma forma, as motivações do processo imigratório de europeus para o Brasil colonial não foi diferente, sendo o seu motor a luta de classes. O processo de branqueamento pós-abolição além de seguir uma classificação e hierarquia social, em que os valores e a percepção de mundo eram brancos, alia de forma inconteste o racismo não só de raça, mas de classe. A ascensão individual por meio da cor da pele objetiva colocar os membros da mesma classe em oposição uns aos outros.

Rejeitar os traços negroides e assumir uma estética europeia, por meio da miscigenação, fazia parte da ofensiva burguesa. A ascensão social pelo branqueamento se expressou na dicotomia entre o negro pobre e o branco bem sucedido e, colocando-se entre eles, os sujeitos intermediários e em ascensão. Essa é a essência do sistema capitalista: para que ele se mantenha, se faz necessária a naturalização, a manutenção e o reconhecimento da necessidade da existência de uma classe de explorados e humilhados por uma minoria branca e bem-sucedida.

Para os marxistas, a análise de raça sem classe é inócua e não nos permite compreender que a escravidão deixou marcas indeléveis nas relações de trabalho, desde a consolidação do modo de produção capitalista no Brasil até os nossos tempos. O fim do tráfico negreiro, a Lei de Terras, as políticas de imigração e especialmente o branqueamento da população brasileira que se formava visava impedir a fusão do operariado branco e negro, com o intuito de se contrapor a burguesia. Para isso serve o racismo, colocando os negros em uma posição de desigualdade ainda maior na luta de classes.
Analisar o racismo pelas lentes do materialismo histórico significa assumir que a acumulação capitalista funda-se dialeticamente na produção mútua de riqueza e miséria.

A herança escravagista contribuiu para que os negros figurem ainda hoje como majoritários nas estatísticas do sistema carcerário, do extermínio pela polícia e da população de rua, por exemplo. Entretanto, o estado burguês ataca a classe trabalhadora no seu conjunto na medida em que, oprimindo mais severamente uma parcela considerável, essa herança cumpre o papel de divisora e desmobilizadora do único pelotão capaz de derrotá-lo.

A insustentabilidade desse modelo forjado na dominação de uma classe sobre a outra empurrará inevitavelmente a classe trabalhadora para a sua superação. Historicamente, também foram as contradições dos modelos econômicos anteriores que forjaram a ruína das suas estruturas. Da mesma forma ocorrerá com a sociedade capitalista que vem reproduzindo esse ciclo geracional de exploração, pois a classe trabalhadora, independente de cor, nacionalidade, gênero ou crença, só será genuinamente livre numa nova ordem social.

* ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL TEMPO DE REVOLUÇÃO 28. ASSINE E APOIE A IMPRENSA OPERÁRIA.

Notas e Referências:

1 SEYFERT, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos esteriótipos. 4 5 a Reunião Anual da SBPC, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1 1 a 16-7-93.

2 MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

3 ALLEN. W Theodore. A luta de classes e a escravidão Racial: A invenção da raça branca. 1975.

4 Em linhas gerais o que ocorreu na Revolta de Bacon foi a união de servos europeus e africanos, contratados, escravizados e livres, insatisfeitos com a política fiscal da Virgínia.

5 Revista América Socialista nº 16. 2.020.