Luís Mendes talvez tenha sido, ao lado de João Saldanha, um dos melhores comentaristas de futebol destas paragens, mais pelo lado popular e romântico da crítica do futebol, que acompanhou quase paralelamente a etapa romântica do próprio futebol brasileiro.
Luís Mendes talvez tenha sido, ao lado de João Saldanha, um dos melhores comentaristas de futebol destas paragens, mais pelo lado popular e romântico da crítica do futebol, que acompanhou quase paralelamente a etapa romântica do próprio futebol brasileiro.
Os dois viviam nesta atmosfera e a transferiam fielmente ao seu público. Havia um monte de subjetividade em seus comentários, que nem sempre primavam, a meu ver, pelo lado concreto da questão. Mas, e daí? Sem problemas. Eles acreditavam no que faziam e o povo gostava, e acompanhava. E o povo, em condições normais de pressão e temperatura, é um juiz severo que reconhece quaisquer cagadas. Qualquer nota falsa… e a banda é desclassificada, imediatamente!
O João Saldanha, mais comedido, tinha um lado mais “sociológico” em sua abordagem. Ele já percebera a importância do papel de viveiro dos campos de várzea na formação dos jogadores brasileiros, em sua esmagadora maioria de origem proletária urbana.
Poderíamos ampliar essa sólida percepção de João Saldanha para afirmar que os campos de várzea, que existiam às centenas nas periferias imediatas das grandes metrópoles brasileiras até o início dos anos 1960, além de constituírem um viveiro de abastecimento de grandes jogadores, também foram os responsáveis pela criação do conceito central coreográfico (ou tático, se quiserem) do que poderíamos chamar de “escola brasileira de se jogar o futebol”.
Esta escola não existe mais, infelizmente. Mas atingiu suas glórias futebolísticas e deu muito trabalho para ser superado.
Em seu conjunto, ela propunha e executava a ofensividade. O jogo efetivo era do meio de campo para frente – pura ofensividade! Os dois pontas eram dois guerrilheiros na retaguarda inimiga, visando rompê-la a todo custo. Compactar a defesa era contraproducente e desonroso, e o adversário jogava mais ou menos da mesma forma.
Isto criou uma psicologia e uma cultura muitíssimo interessantes. Por exemplo: Jogar de goleiro era uma das funções mais execráveis do mundo (normalmente, para esta desprezível função, eram designados os piores na peleja da bola). Na escala de baixo para cima, depois dos goleiros era a vez da linha de zaga, sempre ocupada pelos mais pesadões e lerdos. Nos jogos de várzea, estes “pesadões” e “lerdos” batiam sem piedade para compensar sua mediocridade (foi nesse período que se criou a temível legenda dos “xerifes de área”: no meu tempo de jovem eram Caiçara e Lula, do Sport Club Recife; e Tomires, do Flamengo). Batiam que era uma beleza!
Jogava-se, normalmente, além do desprezado goleiro, com dois zagueiros controlando cada um o seu lado da defesa e tendo a sua frente três ralfes, uma espécie de ajudantes dos dois guerreiros lá atrás. Na frente, a elite: o meia de ligação (o maestro da banda), dois ponteiros e dois avançados: um deles, mais avançado e rompedor, e o outro, mais próximo do meia de ligação e com mais intimidade com a bola. Mas, esta última opção era raramente aproveitada e o jogo na verdade se desdobrava com a utilização dos ponteiros extremamente ofensivos.
Um dos ralfes – o central (o nome em inglês é sonoro e reconhecível ainda: center-half) – tinha uma incumbência preciosa: cuidar de receber a bola dos defensores e entregá-la, redonda, ao meia de ligação. Este, sim, era o artista, o Michelangelo da tropa. Na Copa de 1958, quando a copa do mundo ainda era o torneio mais importante, Zito e Didi cumpriam esta função: Zito mais atrás e Didi como maestro da banda.
Nos jogos de várzea, já vi, pessoalmente, alguns desses maestros em ação. Tenho a honra de já ter coadjuvado alguns desses anônimos artistas da bola. Acho que apreendi um pouco de sua psicologia. Normalmente autoconfiantes; ciosos de suas prerrogativas e licenças poéticas boleiras; um olhar meio condescendente (não de desprezo, isto nunca!); andar sinuoso; fumante inveterado; bons bebedores; sempre ganhavam as melhores garotas; eram reconhecidos por onde passavam; frequentadores inveterados da zona de baixo meretrício, onde, por sinal, eram idolatrados pelas mulheres.
Depois dos maestros da banda – ainda estou falando dos meias de ligação – o que mais merecia destaque lá na frente, no que diz respeito à força da escola brasileira de se jogar o futebol, eram os dois ponteiros (aqui, os modelos eram Garrincha e Canhoteiro). Tinham de ser os mais rápidos e também dribladores de velocidade. Precisavam de espaço para atuar e este espaço era bárbara e brutalmente guarnecido pelos zagueiros e seus acólitos do campo adversário.
Cabia, então, aos maestros criarem estes espaços para os seus ponteiros – estes verdadeiros galos garnisés com um repertório incontável de firulas e dribles em profundidade, normalmente para chegar à linha de fundo e colocar a bola nos pés de um dos dois bobões preguiçosos que jogavam lá na frente só para encostarem o pé e fazerem o gol, e ganhar os aplausos da plateia. Mas todos os que entendiam de futebol sabiam quem é que realmente merecia a festa.
Claro que se variava sobre este tema central. É aqui que entram os velhos treinadores, a maioria formada de ex-jogadores que conheciam todas as manhas do jogo e dos adversários. Na copa de 1958, o treinador, Vicente Feola, sucumbiu à timidez e convocou Zagalo, um jogador medíocre, para jogar mais próximo do meio do campo, e assim ficamos sem um dos ponteiros, o que jogava pelo lado esquerdo. A nossa sorte foi a presença de Garrincha, que tinha futebol suficiente para cobrir a ausência de um segundo ponteiro. E a presença de Pelé, sem dúvida um bom jogador, ajudou ainda mais a compensar a ausência de um ponteiro esquerdo ao velho estilo. Esta mudança marcou o envelhecimento da velha fórmula de se jogar. Daí em diante, começou-se a violar a velha regra.
Esta nossa excelente escola de se jogar o futebol amadureceu no período compreendido entre as copas de 1958 e 1962. Tivemos em 1970 o seu clímax. Sua fonte de abastecimento – os campos de várzea – já tinha sido cortada; não mais existia. Um processo selvagem de desenvolvimento capitalista, conduzido pelos bonapartistas militares, lastreou um processo desenfreado de urbanização, que acabou com os campos de várzea, dada a ampliação gigantesca do perímetro urbano. Pode-se dizer que a renda da terra matou a escola brasileira de se jogar o futebol. E, pelas mesmas razões, criou um sucedâneo, o futebol de salão.
Quanto ao futebol de campo, hoje imperam as escolinhas de futebol dos grandes clubes. A disciplina burguesa, na verdade, é que impera. Isto desgastou a fibra central, saudável e impetuosa, do nosso marcante estilo. Hoje, não somente jogamos muito abaixo do nível anteriormente ostentado, como também jogamos mediocremente. Só os bestas “patrioteiros”, que defendem a tese fetichista de que Pelé é o maior jogador do mundo, ainda acreditam nessa balela que o nosso futebol é o melhor do mundo.
No futebol, como dizia João Saldanha, o cobertor é curto e você deve decidir cobrir ou a cabeça ou os pés. Este era o roteiro clássico do futebol praticado à brasileira e que ganhou tudo o que pôde entre os anos 1960 até o início dos anos 1970. Diferentemente da outra melhor escola de futebol mundial, a argentina, o futebol praticado no Brasil àquela época, se caracterizava pelo aspecto dionisíaco, carnavalesco, festivo e impetuoso (Garrincha é o seu paradigma!). Já o futebol argentino é mais elegante, plástico, apolíneo, de dribles curtos e maior domínio do meio campo (é aqui onde mora a questão: o meio de campo). Mostrou, assim, ser mais resistente no tempo. E o tempo foi decisivo. Bom, para mim, o futebol não é para se “torcer”, mas para se degustar. E cada jogo tem sua própria história, seus próprios problemas a resolver, seu próprio drama.
O processo de urbanização na esteira das leis do mercado capitalista, sob o controle férreo de uma ditadura militar fascista, destruiu tudo isto e os bestas ainda ficam arregalando os olhos para tentar explicar a mediocridade do futebol atualmente praticado nas terras pátrias.
Depois de João Saldanha e Luís Mendes, o espaço da crítica futebolística ficou aberto a todo tipo de medíocres e oportunistas. A título “patriótico” passaram a incensar deuses de pés de barro e de pouco fôlego. Mas este “patriotismo” não convence ninguém; a mercantilização do futebol se encarregou de dar a última pazada de terra. A ditadura do mercado capitalista foi trágica para nossa escola de futebol. Hoje, não temos nenhuma escola onde graduar nossos jovens futebolistas. Continuam com o estilo guerrilheiro e isto destoa totalmente quando enfrentam a organização mais tática e compacta dos concorrentes, com sua sólida, disciplinada e eficiente ocupação e manejo da bola no meio de campo. Os ponteiros morreram definitivamente e os mestres do meio de campo primam por sua ausência. Vejam o Barcelona jogar! O Barcelona é a epítome do jogo de futebol. Em minha vida nunca vi um jogo mais bonito e eficiente. Alcançou-se a maestria suprema. Depois do Barcelona, o dilúvio…