O procedimento de aborto realizado em uma criança de dez anos, sexualmente abusada pelo tio desde os seis, em São Mateus/ES, trouxe à tona uma série de aspectos que compõe a situação de violência e opressão à mulher e que precisam ser profundamente compreendidos. Em primeiro lugar, a violência sexual, em especial a violência sexual à criança, é expressão bárbara da decadência do sistema capitalista que, para existir, necessita da objetificação do corpo da mulher. Em segundo, a reação ultraconservadora de uma parcela da burguesia, cuja repercussão foi animada pela ministra Damares Alves, da Secretaria da Mulher, deixa evidente que o direito ao aborto é uma luta urgente e necessária para um processo de transição à emancipação da mulher trabalhadora.
É preciso colocar abaixo esse modelo de sociedade dividida em classes que, para existir, precisa manter a mulher como instrumento econômico, social e sexual.
A violência que nos mata
Segundo os dados do Dossiê Feminicídio, a cada duas horas, uma mulher é morta no Brasil – em 2010, o país ocupava o 7º lugar no ranking dos países com maiores taxas de homicídio no mundo, passando para o 5º lugar em 2013. Soma-se à essa trágica situação um outro dado do Anuário Brasileiro de Segurança Pública: a cada hora, quatro meninas brasileiras de até treze anos são estupradas. Em ambos os casos, a maioria dos crimes são cometidos por um membro familiar. Esse é o panorama geral de violência no qual a mulher, especialmente a mulher trabalhadora, encontra-se inserida.
Na medida em que se aprofunda a crise do sistema capitalista, suas expressões mais cruéis e bárbaras tendem a aumentar. O isolamento social ocasionado pela pandemia, bem como o aumento do desemprego que levou milhares de trabalhadoras à uma situação de vulnerabilidade econômica, acarretou também o aumento do número de casos de violência doméstica e sexual. É o que deixa evidente os dados do Serviço de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (Savs), que registrou um aumento de 32% nos casos de abuso sexual à criança e ao adolescente no primeiro semestre de 2020, em Blumenau/SC.
Tais dados deixam evidente o quanto a luta contra a violência sexual no âmbito da justiça burguesa é uma luta que representou algum avanço, no entanto, ela é uma luta parcial que não dá conta de uma verdadeira emancipação da mulher. Os dados do Sistema de Informações de Mortalidade apontam que de 1980 até 2013, 106.093 mulheres morreram vítimas de homicídio no Brasil e a partir da elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006), o número de mortes cai em 2,6% ao ano, segundo pesquisa divulgada pelo Mapa de Violência 2015. Embora apresente avanços, a Lei Maria da Penha não garante o fim da violência doméstica, apenas lida com a agressão já de fato instaurada, sem transformar as suas causas, que possuem base material na sociedade capitalista. A luta que visa apenas direitos no capitalismo, sem a perspectiva revolucionária, além de não ser definitiva, colabora para a criação do falso imaginário da democracia burguesa e para a manutenção da ilusão no papel do Estado burguês como provedor de justiça.
O direito ao aborto
Se a luta contra a violência sexual é insuficiente no âmbito da justiça burguesa, o direito ao aborto e ao próprio corpo encontra-se numa situação ainda mais precária no que diz respeito às leis vigentes. Isso porque a legislação burguesa atual foi construída e pensada segundo a ideologia da classe dominante, ou seja, são legislações que não atendem ao interesse concreto da emancipação da mulher trabalhadora. Apesar do aborto em caso de estupro de vulnerável estar previsto no Código Penal Brasileiro há 80 anos, o caso deixou evidente que nem mesmo os parcos avanços da lei estão à salvo da moral religiosa e violenta de uma parcela ultrarreacionária da burguesia.
É preciso ter em mente que, hoje, no Brasil, desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é possível. No entanto, a mulher pobre e em situação de vulnerabilidade, para ter o direito concedido, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte. O que a barbárie acontecida a essa criança de dez anos de idade traz à tona é que, para a grande parcela das mulheres, até mesmo esse direito encontra-se em risco frente a um legislativo tomado por conservadores e representantes da moral burguesa. Daí duas consequências: às mulheres pobres resta ou o aborto clandestino, que atualmente mata uma mulher a cada duas horas no país; ou arcar com uma gravidez indesejada sob o argumento do “direito do nascituro”. Para assegurar seu poder, a burguesia não hesita – e não hesitará – em desmantelar gradativamente os poucos avanços no campo jurídico para assegurar a manutenção da ordem da sociedade, que é a ordem da divisão de classes.
Soma-se à isso, no atual contexto brasileiro, o papel reacionário e de ataques desempenhado por Bolsonaro e seus ministros. As ações de Damares e, nesse caso, a divulgação criminosa das informações da menina por Sara Winter acentuam a necessidade de lutar pela derrubada desse governo. A postura conservadora e reacionária demonstrada pelo presidente e pela ala “moralista” do governo tem como objetivo reforçar preconceitos e comportamentos atrasados da sociedade, colocando em risco as liberdades democráticas conquistadas pelos trabalhadores na luta de classes.
As mesmas pessoas que dizem defender “a vida”, e que se reuniram na frente do hospital para ofender a criança e os médicos, são as mesmas que reforçam a falácia da meritocracia, da “prosperidade”, defendem a família burguesa e julgam, sem economizar preconceitos, aqueles que não rezam a sua cartilha, desconsiderando toda violência sofrida pela criança e sua vontade em relação ao aborto.
É preciso defender a laicidade das decisões do Estado, o direito ao aborto seguro e gratuito a todas as mulheres que assim desejarem e os direitos já conquistados por nós no que diz respeito aos crimes de estupro e violência contra a mulher, crianças e adolescentes.
Casos como esse demonstram a hipocrisia da burguesia, seu Estado e Judiciário. Demonstram a barbárie crescente em que vivemos sob o capitalismo e a necessidade urgente de derrubarmos esse sistema!
- Combater toda violência contra a mulher!
- Pela legalização do aborto e laicização das decisões do Estado!
- Fora Bolsonaro! Por um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais!