Ao longo do último mês, tanto os espectadores da televisão portuguesa como britânica foram submetidos ao espectáculo pouco edificante de vários ministros do governo do Partido Socialista (PS) que se apresentaram perante o governo britânico. O ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, chamou “insensato e injusto” ao facto de os turistas britânicos ainda estarem efectivamente proibidos de visitar Portugal. “Esta não é a forma como os aliados e amigos são tratados”, queixou-se ele, como se pudesse assim mudar a opinião de Boris Johnson.
“Portugal tem melhores resultados de saúde pública perante a pandemia do que o Reino Unido”, acrescentou o ministro do Interior Eduardo Cabrita. “Portanto, não há razão, de acordo com todos os critérios comparativos, para a existência de qualquer aplicação das regras de quarentena no regresso ao Reino Unido”.
As palavras de apelo dos ministros do PS serviram para realçar a hipocrisia do governo Tory perante esta questão. Esta hipocrisia foi totalmente desmascarada pela súbita reviravolta dos conservadores na semana passada ao permitirem aos turistas viajar para Espanha sem quarentena. É também uma realidade que o Reino Unido foi muito mais atingido pela Covid-19 do que Portugal (e a maioria da Europa) em termos de número de infetados e mortes – o governo britânico é em grande parte o culpado dessa situação. Mas isso não se trata dum êxito para o governo do PS deitar foguetes. E não justifica o facto de tentarem escapar à responsabilidade de centenas de milhares – se não milhões – de pessoas em todo o país que ficarão arruinadas e empobrecidas pela actual crise.
O que os apelos desesperados do governo português realmente demonstram é a sua total dependência de um sistema que não funciona. Não têm resposta para a crise do capitalismo, para implorar aos países mais ricos que continuem a enviar os seus turistas para Portugal – numa altura em que o turismo em todo o mundo entrou em colapso total.
Estão realmente a implorar por um regresso à “normalidade” da pré-crise. Este foi um período em que a economia portuguesa estava a registar um crescimento moderado e os números do desemprego desciam; quando podiam fazer uma combinação de políticas de austeridade com algumas concessões mínimas à classe trabalhadora em orçamentos quase equilibrados, com pouca oposição política. Por um breve momento, devido a vários factores que descrevemos anteriormente, a economia portuguesa parecia mais forte do que realmente era. Os factores por detrás da “recuperação” portuguesa do período anterior são agora os próprios factores que arrastam a economia para uma recessão. Imaginar um regresso a curto prazo ao período anterior é totalmente utópico.
Crise sem precedentes
Em vez disso, estamos a enfrentar a pior crise económica da história moderna de Portugal. O orçamento suplementar do governo face à crise da Covid-19 baseou-se numa redução de 6,9% da economia. No entanto, em meados de Junho, o Banco de Portugal advertiu que a economia estava sujeita a uma redução de pelo menos 9,5% – possivelmente de até 13,5%. Argumentaram que a economia não voltaria ao seu nível de Março de 2020 durante dois anos e meio.
Estes números são muito piores do que o cenário que o BdP [Banco de Portugal] desenhou em Março, durante as primeiras semanas de confinamento em Portugal. Nessa altura, apresentaram “pior cenário” da economia a diminuir 5,7% este ano. Porém a sua previsão de Junho representava mais do dobro. A próxima previsão será provavelmente ainda pior!
O banco central descreveu a indústria turística em estado de “colapso total” – o sector do turismo português irá sofrer uma redução de 60% este ano. Explicaram também que o turismo será um factor importante no ritmo da recuperação económica, que “deverá ser muito gradual, num contexto de elevada incerteza e de possíveis alterações nas preferências e condutas dos consumidores… tendo também em conta a elevada elasticidade dos rendimentos provenientes das despesas turísticas”.
Durante o período recente, o turismo em Portugal aumentou atingindo quase 20% do PIB. Isto foi elogiado por comentadores burgueses em todo o mundo como o segredo de uma história de sucesso económico. Agora, tal como previmos, a confiança excessiva da economia portuguesa no turismo é a própria razão que a arrasta para a beira de um abismo. Como o BdP afirmou, “dado o peso relativamente elevado do turismo no total das exportações em comparação com outros países, Portugal está particularmente exposto”.
Previam também que as exportações portuguesas no seu conjunto, “perderão peso nos mercados externos em 2020”, regressando Portugal à sua posição tradicional como uma das economias menos competitivas da Europa. O BdP também associa este processo, em parte, a uma dependência excessiva do turismo: “esta perda reflecte essencialmente um efeito de composição, associado à relativa especialização de Portugal no sector do turismo”. A recuperação destas exportações deverá também ser mais lenta, ocorrendo mais significativamente “apenas em 2022”.
Desde os primeiros dias em que a Covid-19 se espalhou por Portugal, ficou também claro que a bolha imobiliária que tinha sido inflacionada desde a liberalização do mercado imobiliário em 2012 tinha rebentado. A subida dos preços dos imóveis já estava a abrandar nos dois anos anteriores, mas a pandemia desencadeou um êxodo em massa de investidores estrangeiros. Só em Março, Portugal perdeu algo entre 60% e 90% do seu investimento internacional em propriedade. Houve uma enorme redução no número de propriedades que foram vendidas ou construídas este ano.
O efeito da bolha do investimento imobiliário na economia portuguesa foi largamente especulativo. Não tinha qualquer relação com a situação económica real que a maioria das pessoas vivia antes da crise actual. No entanto, era um factor de crescimento da economia que era visto como responsável por transformar o país num paraíso para os investidores. Ainda no ano passado, o Times publicou uma sondagem mencionando Lisboa como o principal ponto de atracção europeu para o investimento. Agora que uma grande parte desse investimento desapareceu, vem à superficie a verdade nua e crua da fraqueza da economia.
Efeitos sobre a classe trabalhadora
Para a maioria das pessoas em Portugal, a crise não tem nada a ver com investimentos especulativos. Significa simplesmente não poder pagar a renda e enfrentar o processo de despejo. Significa perder o seu emprego, ser forçado a trabalhar em condições muito mais difíceis e frequentemente inseguras, ou perder o seu pequeno negócio.
No final de Abril, 125 mil mais pessoas estavam desempregadas em relacao ao início da pandemia. O governo relatou em Junho que a taxa de desemprego subia para 7%, mas este número foi amplamente criticado por ser uma subestimação maciça. Mais reveladora foi a estatística do Instituto de Emprego e Formação Profissional de que 103.763 mais pessoas estavam desempregadas do que em Junho de 2019. O desemprego na região do Algarve – que está mais fortemente dependente do turismo – aumentou mais de 200%.
Estes números não incluem os 800 mil trabalhadores que estiveram em lay-off temporário durante os últimos meses, sobrevivendo com uma ajuda da segurança social equivalente a dois terços do seu salário. Globalmente, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) estima que mais de um milhão de pessoas perderam os seus rendimentos durante a pandemia e a crise subsequente – mais de 20% do total da mão-de-obra em Portugal.
Muitas das pessoas que foram despedidas para efeitos de encerramento nunca poderão regressar aos mesmos empregos ou condições de trabalho que tinham anteriormente. O governo legislou e orçamentou a segurança social no pressuposto de que as coisas acabarão por voltar ao normal – mas a antiga “normalidade” desapareceu para sempre.
Mais uma vez, uma das coisas mais celebradas pela classe dominante como sendo uma recuperação de Portugal, tornou-se exactamente no seu oposto. A taxa de desemprego foi mantida artificialmente baixa devido ao flagelo da precarização. Agora centenas de milhares de trabalhadores ocasionais não só na indústria do turismo enfrentam o desemprego crónico, à medida que os contratos a curto prazo e o trabalho temporário, estacional e fictício “por conta própria” se esgotam.
Em relação à habitação, sob pressão do Bloco de Esquerda, uma lei foi aprovada à pressa pelo parlamento em Março, suspendendo todas as expulsões e a dissolução dos contratos de arrendamento. Este era o requisito mínimo para evitar que milhares de pessoas fossem atiradas para as ruas durante o confinamento. O Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana do governo também começou a oferecer empréstimos para ajudar os inquilinos (e senhorios) a cobrir as suas rendas.
Estas concessões são temporárias. A suspensão das expulsões e a rescisão dos contratos de arrendamento está prevista para Setembro. O que acontece então, aos milhares ainda numa situação desesperada, em risco de ficarem sem casa?
Entretanto, os milhares que solicitaram o empréstimo do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para cobrir a sua renda terão de começar a pagá-la no prazo de seis meses após o fim do estado de emergência de Portugal (em Janeiro de 2021), o mais tardar. Isto talvez explique porque não havia mais pessoas dispostas a aceitar esta oferta, mesmo que estivessem a precisar urgentemente dela. Em Janeiro do próximo ano, muitas das pessoas que receberam o empréstimo estarão no mesmo estado de emergência em que se encontram agora, com o agravamento do que tem que pagar ao governo para além da renda que já não podem pagar.
O governo do PS tem mostrado claramente que não apoia o não pagamento da renda, seja qual for a situação. Em vez disso, tem encorajado mais pessoas a solicitarem o empréstimo do IHRU – o que na realidade não faz nada por pessoas com necessidades financeiras desesperadas a longo prazo. No entanto, muitos chegaram à conclusão prática de que o não pagamento do aluguer era a sua única opção durante o bloqueio. Com a suspensão dos despejos imposta para evitar uma explosão social por causa da habitação, os senhorios não estavam muitas vezes em posição de discutir na altura. Evidentemente, a sua condição era que a renda em atraso seria paga mais tarde. Com o agravamento da crise económica, esta ainda não é uma opção prática para muitas pessoas.
Quanto à questão da habitação, o governo do PS aplicou apenas medidas parciais e temporárias com base num regresso ao período anterior de relativa estabilidade. Não quer enfrentar os senhorios, mas tem medo, também, de cair em cima dos inquilinos, o que poderia provocar um enorme retrocesso. Desta forma, o governo está a preparar uma crise social ainda mais profunda para o próximo ano, da qual a habitação será uma parte essencial.
Para além da crise habitacional, o subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde (SNS) voltará à ordem do dia à medida que a crise económica se agrava.
O SNS tem enfrentado até agora a pandemia de Covid-19 melhor do que muitos esperavam, porque o governo agiu de forma bastante rápida e decisiva à medida que a doença começou a espalhar-se por Portugal. Com recceio do que estava a acontecer em Itália e na vizinha Espanha, foi imposto um confinamento precoce e foram criados centros de testes gratuitos em todas as cidades e vilas. Algumas camas hospitalares privadas foram requisitadas temporariamente para tratar doentes com Covid-19, e um serviço de diagnóstico telefónico especializado do SNS foi bastante eficaz.
Naturalmente, estas medidas foram dolorosamente minadas pela rapidez com que tudo foi novamente aberto, para salvar a economia de mercado do colapso total. As pessoas foram forçadas a voltar ao trabalho demasiado cedo para que este fosse seguro, e todas as regras de distanciamento social e segurança foram quebradas quando se tratou do local de trabalho e das respectivas deslocações. Alguns trabalhos não essenciais – tais como na construção civil – nunca pararam. Não é de surpreender que o estado de emergência tenha tido de ser reforçado em breve em dezanove bairros da região de Lisboa e Vale do Tejo. Estes são bairros da classe trabalhadora, dos quais dezenas de milhares de pessoas são apinhadas em comboios para a capital todas as manhãs. Em Julho, os casos de Covid-19 também aumentaram no Algarve ao ser aberto aos turistas europeus para o Verão.
Mas o pior está para vir para o SNS. Como tem sido amplamente noticiado, já se encontra em crise há algum tempo. Uma percentagem cada vez menor do PIB foi para os cuidados de saúde pública, com o resultado de que o número de médicos, hospitais e clínicas por habitante foi reduzido durante um período prolongado. Muitos centros de saúde em zonas suburbanas e rurais foram fusionados, deixando as pessoas desfavorecidas a percorrer longas distâncias em busca de cuidados de saúde. Quando lá chegam, muitas vezes o centro já não tem um médico no local – com enfermeiros sobrecarregados a fazer vários trabalhos ao mesmo tempo. Entretanto, as taxas de utentes têm vindo a subir constantemente. Uma medida da crise é o aumento dramático das taxas de mortalidade materna e infantil durante os últimos anos.
Até este ano, a crise de saúde estava a ter lugar enquanto o desemprego era relativamente baixo, os salários reais estavam a aumentar e o governo tinha mais rendimentos fiscais para fazer face. A situação actual está completamente diferente. O desemprego está a disparar, o que terá um efeito de contágio sobre os salários e o nível de vida, e o governo tem uma montanha de novas dívidas a pagar. Antes esquivava-se ao aumento do orçamento nacional da saúde, agora fá-lo-á sofrer cortes. Ao mesmo tempo, o SNS está a cambalear com os milhares de doentes do Covid-19 que teve de tratar enquanto já estava subfinanciado, com falta de pessoal e sobrecarregado com mais doentes. A crise de saúde em Portugal atingirá um novo nível durante os próximos meses e anos.
Só a revolução resolverá esta crise
O quadro sombrio que se apresenta é o presente e o futuro do capitalismo português, que é completamente incapaz de resolver qualquer dos problemas colocados pela crise actual.
O recentemente anunciado pacote de salvamento europeu afasta-se de um confronto directo com os credores europeus de Portugal, pelo menos a curto prazo. Nas actuais condições de crise económica sem precedentes, as principais potências na Europa querem de qualquer forma evitar um cenário de tipo Grego. O confronto não está, porém, fora de questão. Acontecerá de forma interna, sob a forma de conflito de classes entre a classe dominante portuguesa e a classe trabalhadora.
Em Abril, um artigo publicado no jornal burguês Diário de Notícias intitulado “Colapso do Coronavírus: depressão ou revolução? Nele, Daniel Deusdado – o antigo Director de Programação da maior rede de televisão portuguesa RTP – afirma: “Esta depressão económica tem todos os ingredientes para gerar uma revolução. E pode acontecer mesmo antes de um ano de crise do coronavírus”. Isto dito da boca de um representante da burguesia.
Esta perspectiva é uma perspectiva com a qual estaríamos inteiramente de acordo. As pessoas não vão aceitar esta situação de braços cruzados. Há enormes acontecimentos na região, com efeitos revolucionários. Os trabalhadores e os jovens estão a chegar à conclusão de que este sistema não lhes oferece nada além de crise após crise, sofrimento após sofrimento
Esta perspectiva é uma perspectiva com a qual concordamos perfeitamente. As pessoas não aceitarão esta situação deitada. Há enormes acontecimentos no futuro, com implicações revolucionárias. Os trabalhadores e os jovens estão a chegar à conclusão de que este sistema só lhes oferece crise após crise, sofrimento após sofrimento. É necessária uma transformação fundamental da sociedade. Tem de haver uma liderança pronta a avançar rumo a essa transformação, aproveitando o poder de um movimento de massas.
O primeiro-ministro Antonio Costa, por outro lado, acobarda-se de pavor perante a situação que se lhe depara. “Portugal não pode aceitar outro confinamento”, anunciou ele há duas semanas. As suas palavras dirigem-se sobretudo à classe dirigente portuguesa, que se preocupa com o futuro da sua economia. No entanto, também indicam o seu medo perante a classe trabalhadora no caso de outra Covid-19, durante o qual a pressão da classe dominante para evitar um encerramento com as necessárias medidas de segurança social será combatida pela classe trabalhadora. Aqui vemos o impasse absoluto do reformismo, que está entre a espada e a parede nesta crise. A construção de uma liderança revolucionária capaz de derrubar o sistema capitalista podre, senil e sem esperança é a única solução.
Nota: Algumas palavras diferem na forma como conhecemos porque optamos por manter a grafia de Portugal nos artigos do Colectivo Marxista de Lisboa.
PUBLICADO EM COLECTIVOMARXISTA.ORG