O ano de 1968, sempre que nos vem à mente, é imediatamente associado com as grandes greves e barricadas nas ruas de Paris, a passeata dos cem mil contra a ditadura militar no Brasil ou as grandes mobilizações contra a Guerra do Vietnã nos EUA. Muitos se esquecem de que, do outro lado da Cortina de Ferro, uma outra grande revolta de massas sacodiu as fundações do stalinismo: a Primavera de Praga.
Ao contrário das demais explosões sociais ocorridas naquele ano, as grandes mobilizações ocorridas no coração do leste europeu, na época o centro do bloco da burocracia estalinista, são motivo de controvérsias na esquerda. Vinte anos após a queda do Muro de Berlim, os stalinistas seguem firmes na defesa do legado do chamado “socialismo real”, que nada mais foi do que o resultado da usurpação da Revolução Russa por uma casta burocrática, cuja dominação sobre os povos do Leste Europeu seria o principal desencadeador da Primavera de Praga.
Em 1967, alguns escritores da União dos Escritores Tchecoslovacos publicaram em seu periódico o desejo de ver a literatura no país livre da censura do partido comunista. Tal reivindicação, feita pública e dirigida diretamente ao governo, seria impensável durante os primeiros anos do pós-guerra, quando a presença de Stalin ainda pairava como um espectro sombrio. Com o discurso de Kruschov em 1956 e a tentativa de flexibilizar alguns dos aspectos mais rígidos do modelo anterior, especialmente na economia, havia um esforço por parte das burocracias em criar uma aparência de liberdade de expressão. Por isso a iniciativa por parte de um dos órgãos oficiais de controle da arte e da cultura.
As aspirações dos corajosos escritores esbarraram na própria União, fiel à classe burocrática da qual era parte integrante. Todos os envolvidos na publicação sofreram medidas disciplinares. A burocracia não podia se dar ao luxo de permitir que nem mesmo uma ilusão de liberdade se estabelecesse. Contudo, mesmo as mais tímidas impressões de reformas podem liberar energias incapazes de serem controladas, ainda mais quando essas impressões vão de encontro às insatisfações das massas.
No começo de 1968, o então presidente do país, Antonín Novotny, firme defensor dos ditames mais rígidos do período anterior, é substituído no cargo de secretário geral do Partido Comunista (PC) tchecoslovaco por Alexander Dubcek, um político da região da Eslováquia – a mais pobre do país. Logo que assume, o novo líder faz discursos denunciando as políticas de seu antecessor e lança um programa de reformas que ficaria conhecido como “Programa de Ação”. Entre as mudanças propostas, estavam o direito de ir e vir, o fim da censura, restauração de boas relações com países ocidentais e até mesmo a introdução de eleições.
Todas essas propostas não saíram da benevolente personalidade de Dubcek, tanto que o mesmo apoiara as medidas tomadas contra os escritores que haviam pedido mais liberdade no ano anterior. O programa era uma resposta à profunda insatisfação que imperava nas sociedades dos países do bloco “socialista”. E tão ansiosas estavam as massas por mais liberdade que, mesmo diante de um conjunto de promessas, impuseram cada vez mais pressão sobre seus líderes para que estas fossem cumpridas. Dubcek tentou frear os ânimos do povo, diminuindo o tom das críticas e mesmo reprimindo manifestações de estudantes e trabalhadores, sem sucesso.
Em Moscou, o líder do PC Russo, Leonid Brezhnev, que revertera várias das mudanças idealizadas por Kruschov, assistia alarmado aos acontecimentos na Tchecoslovaquia. O país fazia fronteira com diversos países do Pacto de Varsóvia, incluindo o seu próprio. O temor que as ondas de choque que partiam de Praga se espalhassem para as cidades do Leste Europeu o fez convocar uma reunião bilateral com Dubcek, que garantiu sua total lealdade à URSS.
Contudo, nem mesmo todas as garantias de Dubcek apaziguaram a preocupação da burocracia soviética, que entendia perfeitamente a natureza do perigo. Para destruir mesmo as pequenas reformas implementadas na Tchecoslováquia, que haviam acendido o barril de pólvora na sociedade do país, era preciso utilizar a força bruta. E nos dias 20 e 21 de Agosto de 1968, sob o pretexto de atacar “contrarrevolucionários”, os burocratas enviaram um enorme contingente militar ao país para esmagar as aspirações de liberdade das massas.
Diante da invasão, Dubcek demonstrou toda a sua covardia. Nenhuma resistência militar foi organizada, as massas nas ruas foram deixadas a própria sorte, sem organização de comitês de defesa para protegerem-se, resultando em dezenas de mortes. O comportamento traiçoeiro do líder “reformador” demonstra a natureza de classe da burocracia stalinista, que prefere morrer a entregar o poder para as massas. As transformações necessárias para alcançar o socialismo só podem ser feitas pela auto-organização dos trabalhadores sob a direção dos comunistas e independente de qualquer burocracia. Essa é a maior lição da Primavera de Praga.