Após a vitória dos bolcheviques em outubro de 1917, os imperialistas do mundo inteiro fizeram o máximo para estrangular o novo Estado operário. Além de armar, financiar e abastecer os exércitos brancos contrarrevolucionários, eles enviaram tropas diretamente para intervir na guerra civil em desenvolvimento. Neste artigo, John Peterson revela a história pouco conhecida do envolvimento dos imperialistas norte-americanos e como os bolcheviques responderam com base em um internacionalismo de classe para vencer a guerra.
No verão de 1918, a Revolução Russa estava em uma encruzilhada. O Czar Nicolau II e o Governo Provisório haviam sido derrubados, um após o outro, e o novo poder soviético apelava às massas mundiais, cansadas da guerra, por uma “paz justa e democrática […] sem anexações e sem indenizações”1. Mas a Primeira Guerra Mundial ainda grassava, e a contrarrevolução ganhava força.
Em 3 de março daquele ano, o imperialismo alemão impôs o Tratado de Brest-Litovsk à República Soviética, levando à perda de 34% de sua população, 54% de sua base industrial, 26% de suas ferrovias e 89% de suas minas de carvão. Sob o pretexto de manter os estoques de munição russos fora do alcance dos alemães, as tropas britânicas desembarcaram em Murmansk no dia seguinte.
Os antigos “aliados” da Rússia estavam sedentos por sangue, profundamente cientes da ameaça que a revolução representava para as relações de propriedade burguesas. Winston Churchill era inflexível na insistência quanto à necessidade de “estrangular o bolchevismo em seu berço”. Ondas e mais ondas de “expedições” imperialistas se seguiram, com 21 contingentes militares de 16 países se juntando aos esforços contrarrevolucionários dos Exércitos Brancos protofascistas.
Cercada e desarmada, a causa comunista parecia sem esperança. Mas as massas russas possuíam algo que nenhum dos exércitos imperialistas possuía: o espírito indomável da revolução e da libertação genuína.
Sem dúvida, houve inúmeros atos de brilho militar e sacrifício civil por parte do povo soviético. No entanto, a principal arma dos bolcheviques era política. Eles se dirigiam sistematicamente às tropas invasoras desde uma perspectiva de classe, apelando à unidade proletária contra seus exploradores comuns. Repetidamente, o moral dos soldados rasos mobilizados pelos imperialistas se viu tão minada que finalmente tiveram que ser retirados.
Hipocrisia imperialista
Embora esteja agora em voga, foi o presidente Woodrow Wilson quem popularizou o slogan isolacionista “América Primeiro” durante sua campanha presidencial de 1916, quando prometeu manter os EUA fora da guerra. Mas com os “Aliados” e as “Potências Centrais” se enfrentando para determinar quem governaria a Europa, as colônias e os oceanos, o imperialismo norte-americano viu uma oportunidade de ouro para exercer sua influência cada vez mais importante na balança das relações mundiais.
Dada a devastação na Europa, a economia norte-americana prosperou, inundando o outro lado do Atlântico com commodities agrícolas e produtos manufaturados. Com amplas áreas do continente europeu em ruínas, os EUA eventualmente emergiriam da conflagração como o maior credor mundial e como uma potência econômica, tecnológica, diplomática, militar e cultural.
Em abril de 1917, os norte-americanos declararam guerra à Alemanha. Ao entrar na guerra em um etapa tão tardia, eles esperavam “limpar” os estragos após anos de massacre. Havia também a pequena questão dos quase US$ 10 bilhões em empréstimos concedidos aos Aliados durante a guerra, que estariam em risco no caso de vitória alemã. Também não foi coincidência que eles tenham entrado na luta poucas semanas após a Revolução de Fevereiro, que derrubou o czar e ameaçou tirar a Rússia da guerra na Frente Oriental.
O objetivo declarado dos EUA era derrotar o Kaiser, garantir a estabilidade e evitar a ameaça de uma revolução em toda a Europa. Mas, em outubro daquele ano, os eventos na Rússia tomaram um rumo muito mais perigoso para os interesses do imperialismo e do sistema capitalista: os bolcheviques estavam no poder.

Pouco depois de assumir o poder, Lênin emitiu seus famosos decretos sobre Paz, Terra e Nacionalidades, e Trotsky publicou os planos secretos dos Aliados para dividir o mundo entre eles. Tudo isso pressionou Wilson, que se apresentava cinicamente como um presidente “amante da paz”.
Em 8 de janeiro de 1918, Wilson emitiu seus “Quatorze Pontos”, delineando a visão do imperialismo norte-americano para uma “nova ordem mundial”. Juntamente com a retórica liberal sobre paz e democracia, o ponto 6 abordava especificamente a Rússia:
“A evacuação de todo o território russo e a solução de todas as questões que afetam a Rússia de forma a garantir a melhor e mais livre cooperação das outras nações do mundo, para brindar-lhe uma oportunidade livre e sem travas para a determinação independente de seu próprio desenvolvimento político e política nacional, e lhe assegurar uma acolhida sincera na sociedade das nações livres, sob instituições de sua própria escolha; e, mais do que uma acolhida, também a assistência de todo tipo que ela possa precisar e desejar. O tratamento dispensado à Rússia por suas nações irmãs nos próximos meses será o teste decisivo de sua boa vontade, de sua compreensão de suas necessidades, distintas de seus próprios interesses, e de sua compaixão inteligente e altruísta.”2
No entanto, não foi especificado que tipo de tratamento seria dado a cada russo – embora as múltiplas intervenções militares de Wilson contra o México durante sua revolução em curso oferecessem algumas pistas. Ao mesmo tempo em que essas palavras grandiosas eram proferidas, planos de contingência para extinguir a República Soviética já estavam em andamento. Como afirmou o Embaixador dos EUA na França:
“Três ou quatro divisões japonesas ou americanas seriam suficientes para arruinar a autoridade dos bolcheviques.”3
Segundo o historiador William A. Williams:
“A intervenção como uma operação conscientemente antibolchevique foi decidida pelos líderes americanos cinco semanas após o dia em que Lênin e Trotsky tomaram o poder.”4
Como tantas vezes acontece com invasores imperialistas – seja por ingenuidade ou cinismo – os EUA acreditavam que seriam recebidos como libertadores e que a população local se revoltaria contra os bolcheviques. Como o Embaixador Francis escreveu a Washington:
“Informações de todas as fontes demonstram insatisfação com o governo soviético e indicam que uma intervenção aliada seria bem-vinda pelo povo russo.”5
Em 17 de julho de 1918, Wilson concordou com uma “intervenção militar limitada”. Em 3 de agosto, o governo dos EUA declarou publicamente que estava em total concordância com as outras potências imperialistas em sua política de intervenção na Rússia.
Mas os imperialistas subestimaram lamentavelmente a profundidade da revolução – e o heroísmo e a determinação das massas soviéticas.
Encontrando um pretexto
O governo dos EUA pôs em prática planos operacionais para uma série de expedições militares à República Soviética. Publicamente, alegaram que o objetivo era o de manter portos estratégicos e depósitos de armas fora do alcance dos alemães. Mas seu verdadeiro objetivo era mantê-los fora do alcance dos bolcheviques.
O imperialismo norte-americano também tinha outros motivos. O imperialismo japonês estava em ascensão e a “Porta Aberta” do Ocidente para o Oriente estava ameaçada. O primeiro contingente de tropas japonesas já havia desembarcado em Vladivostok em 5 de abril de 1918. Mas como justificar a intervenção militar norte-americana na Sibéria Oriental, que ficava a milhares de quilômetros do Exército Imperial Alemão? A resposta veio na forma da Legião Tcheca.
Durante a Primeira Guerra Mundial, 70 mil soldados tchecos e eslovacos se voluntariaram para lutar junto ao exército czarista contra as Potências Centrais em troca da independência em relação ao Império Austro-Húngaro. Mas com a queda do czar e o poder dos bolcheviques, eles ficaram retidos na Rússia – um exército estrangeiro experiente e considerável em meio à revolução. Começaram a se mover lentamente para o leste pela Ferrovia Transiberiana, na esperança de evacuar o país via Vladivostok, para então viajar por mar e se juntar aos Aliados na Europa Ocidental.
No entanto, em maio de 1918, após uma série de pequenos confrontos, a Legião Tcheca se revoltou abertamente contra o regime bolchevique, ocupando diversas cidades importantes ao longo da principal via de transporte. Isso os colocou objetivamente no campo da contrarrevolução, e os Exércitos Brancos aproveitaram o caos para estabelecer uma série de governos antibolcheviques em toda a Sibéria.
O impasse entre o poder soviético e a Legião Tcheca foi a desculpa que os norte-americanos buscavam para intervir em apoio aos “elementos respeitáveis e sólidos” da Rússia6.
Doughboys e ursos polares
A invasão do território soviético começou em 15 de agosto de 1918, com o desembarque de 3 mil soldados em Vladivostok. Ao todo, quase 9 mil soldados norte-americanos, apelidados de “Doughboys” [apelido atribuído aos soldados durante a Primeira Guerra Mundial – NdT], serviriam naquela frente, tendo sido transferidos principalmente da ocupação das Filipinas.
Então, em 4 de setembro, cerca de 5 mil soldados da Força Expedicionária Americana, Rússia do Norte – mais conhecidos como “ursos polares” – desembarcaram em Arkhangelsk, um porto importante no Mar Branco com linha direta para Petrogrado.
A primeira tarefa foi a criação de uma Força Policial Internacional composta por tropas de 12 países sob o comando de um oficial norte-americano de origem russa, o Major Samuel Ignatiev Johnson. A próxima tarefa era garantir que a Ferrovia Transiberiana permanecesse operacional para que os tchecos pudessem reconsolidar suas forças.
É claro que, oficialmente falando, nada disso tinha a ver com intervir na guerra civil que já se travava entre os Vermelhos e os Brancos. Tampouco tinha a ver com contrabalançar os japoneses – que haviam respondido ao desembarque de tropas norte-americanas reforçando seu próprio contingente para 72 mil – uma mensagem clara sobre suas reinvindicações no Extremo Oriente.
Os aliados imperialistas da Grã-Bretanha, França, Canadá e Austrália também enviaram dezenas de milhares de soldados para a Sibéria. Por sua vez, os Vermelhos somavam cerca de 15 mil homens nessa frente, incluindo alguns prisioneiros de guerra germano-austríacos que haviam desertado para se juntar à causa comunista.
Os Exércitos Brancos representavam as forças da reação na Rússia. Financiados e apoiados pelos imperialistas, lutavam pelos interesses dos grandes latifundiários, da Igreja Ortodoxa e dos capitalistas, e estavam dispostos a restaurar o status quo pré-bolchevique por todos os meios necessários.
O caudilho protofascista Alexander Kolchak organizou os exércitos da contrarrevolução no Extremo Oriente, juntamente com Anton Denikin no sul da Rússia e Nikolai Yudenich no noroeste. Sob a égide protetora dos Aliados, Kolchak declarou-se “Governante Supremo da Rússia” e chefe do Estado russo, em oposição ao governo dos bolcheviques. Seu regime foi um regime horroroso de pogroms, torturas, execuções e trabalhos forçados.
Por outro lado, o Exército Vermelho representava as forças da revolução – a classe trabalhadora e a massa de camponeses pobres. Para defender a nova República Soviética e a propriedade nacionalizada sobre a qual ela se apoiava, Leon Trotsky construiu com êxito um “novo modelo de exército”, praticamente do zero.
Embora forçado a depender de ex-oficiais czaristas – que possuíam habilidades técnicas e experiência que não poderiam ser reproduzidas da noite para o dia – ele garantiu a lealdade à causa revolucionária nomeando comissários políticos para supervisionar cada unidade.
Em pouco tempo, o Exército Vermelho tornou-se uma força de milhões, rigorosamente disciplinada e politicamente inspirada, e que realizou milagres no campo de batalha, finalmente virando a maré contra a reação e a intervenção imperialista.
Ajudando os Brancos
Desnecessário dizer que os EUA estavam entrando em uma situação delicada. Oficialmente, não estavam em guerra nem eram aliados de nenhum dos lados do conflito. Mas a presença de milhares de soldados no terreno em meio a uma guerra civil representava o risco de uma escalada política e militar. O Secretário de Guerra dos EUA, Newton Baker, disse a William Graves, o general responsável pela aventura na Sibéria: “Cuidado onde pisa; você estará pisando em ovos, carregados de dinamite.”7
As operações “defensivas” estavam ostensivamente focadas em permitir a saída da Legião Tcheca do país. Na prática, é claro, sua presença auxiliou e instigou o reinado de terror dos Brancos na região. O Acordo Ferroviário Interaliado de fevereiro de 1919, que impôs o controle militar sobre as ferrovias da Sibéria, apenas formalizou a realidade sobre o terreno – ou seja, que os Aliados estavam mantendo linhas de suprimento para as tropas de Kolchak. O controle dos Brancos sobre as ferrovias permitia que eles atacassem ou matassem de fome qualquer um que não concordasse com a ditadura de Kolchak.

Cerca de 250 soldados foram enviados para defender as minas de Souchan, localizadas a 120 quilômetros a nordeste de Vladivostok. Essas minas forneciam grande parte do carvão utilizado para operar as ferrovias no leste da Rússia – um recurso essencial para a contrarrevolução. Uma das primeiras ações dos Aliados foi a de reintegrar o antigo gerente da mina, que havia sido expulso da área pelos trabalhadores. Outros 2 mil norte-americanos foram alocados a 2.700 quilômetros a oeste de Vladivostok para proteger outro nó vital da ferrovia. Milhares de outros ocuparam posições em outros locais estratégicos nas linhas férreas.
Tudo isso levou inevitavelmente a uma série de confrontos com as tropas do Exército Vermelho, com as crescentes fileiras de guerrilheiros pró-bolcheviques e até mesmo com os Cossacos Brancos, que se opunham à presença de intrusos estrangeiros.
Os ataques dos guerrilheiros vermelhos contra trens de carga, trilhos e pontes ferroviárias aumentaram ao longo de março e abril. Em maio, Graves decidiu que, para manter a ordem, as tropas norte-americanas receberiam licença oficial para perseguir os guerrilheiros que assediavam Kolchak. Seguiu-se um verão de escaramuças, ataques e patrulhas de combate na região circundante, muitas vezes ao lado de tropas russas Brancas e japonesas.
Em junho, na Batalha de Romanovka, os vermelhos lançaram um ataque surpresa a um acampamento do exército norte-americano, resultando em 24 mortos e 25 feridos. Cinco dias depois, o embaixador dos EUA no Japão viajou para a capital de Kolchak, Omsk. Embora não o reconhecesse oficialmente como líder oficial da Rússia, demonstrou um “interesse solidário pela organização e atividades de Kolchak”8.
No entanto, o embaixador estimou que seriam necessários 40 mil soldados adicionais para garantir a vitória de Kolchak e impedir a invasão japonesa na região. Mas isso foi impossível.
Muitos soldados simpatizavam mais com os Vermelhos do que com os Brancos e ficaram horrorizados com a crueldade de Kolchak. Em 1º de outubro de 1919, soldados norte-americanos foram presos e açoitados pelos cossacos de Kolchak – aparentemente, ninguém estava imune à sua brutalidade.
Cenas semelhantes de combate e eventual desmoralização ocorreram em torno de Arkhangelsk, onde os “ursos polares” estavam estacionados sob o controle dos britânicos. Não nos esqueçamos de que a maioria dessas operações ocorreu após o fim oficial da Primeira Guerra Mundial, em 11 de novembro de 1918. No entanto, a ocupação de partes da Rússia Soviética continuou – o que deu um fim ao “não intervencionismo” de Wilson.
Apelos internacionalistas
Os Vermelhos não responderam apenas militarmente, mas também politicamente, apelando às tropas invasoras com base no internacionalismo proletário. Poucos dias após o desembarque das primeiras tropas norte-americanas em Vladivostok, o Pravda publicou uma “Carta aos Trabalhadores Americanos”, escrita pelo próprio Lênin. Os apelos também foram dirigidos aos trabalhadores da Europa.
Lênin era um supremo teórico e estrategista. Mas era um tático igualmente habilidoso e, claro, um internacionalista fervoroso. Ele sempre viu a Revolução Russa como apenas um componente da revolução mundial e não tinha ilusões de que ela pudesse sobreviver isoladamente. Como Lênin explicou:
“Contamos com a inevitabilidade da revolução internacional. Mas isso não significa que contemos com sua chegada em uma data definida e próxima. […] Sabemos que as revoluções não podem ocorrer nem por uma ordem nem de acordo com planos preestabelecidos.
“Sabemos que as circunstâncias, por si só, nos impulsionaram, ao proletariado da Rússia, para a frente, que alcançamos esta nova etapa na vida social mundial não por causa de nossa superioridade, mas por causa do caráter peculiarmente reacionário da Rússia. Mas, até a eclosão da revolução internacional, as revoluções em países individuais ainda podem encontrar uma série de sérios reveses e derrotas.”9
Dado seu poderio econômico e militar e o peso de sua classe trabalhadora, Lênin entendia que os EUA eram uma peça-chave vital para esse processo mundial – e isso continua sendo verdade até hoje. De fato, as ideias expostas em sua carta são mais relevantes hoje do que nunca.
Nela, Lênin adotou um tom honesto, franco e aberto, expondo os muitos problemas e deficiências da revolução, ao mesmo tempo em que apontava para seu potencial infinito e para a hipocrisia cínica daqueles que buscavam afogá-la em sangue:
“Que a imprensa burguesa corrupta grite para o mundo inteiro sobre cada erro cometido por nossa revolução. Não nos deixamos intimidar por nossos erros. As pessoas não se tornaram santas porque a revolução começou. As classes trabalhadoras que durante séculos foram oprimidas, pisoteadas e mantidas à força no vício da pobreza, da brutalidade e da ignorância não podem evitar cometer erros ao fazer uma revolução. […]
“Cada erro cometido no curso dessa tarefa, no curso dessa tarefa tão consciente e séria de dezenas de milhões de trabalhadores e camponeses comuns na reorganização de toda a sua vida, cada erro desse tipo vale milhares e milhões de êxitos ‘ilegais’ alcançados pela minoria exploradora – êxitos em enganar e ludibriar os trabalhadores. Pois somente por meio desses erros os trabalhadores e camponeses aprenderão a construir uma nova vida, aprenderão a prescindir dos capitalistas; só desta forma eles abrirão caminho para si mesmos – através de milhares de obstáculos – rumo ao socialismo vitorioso”.10
Lênin também demonstrou seu vasto conhecimento da “tradição revolucionária na vida do povo norte-americano”, com referências à Revolução Americana, à Guerra Civil e a Eugene V. Debs. Ao destacar as divisões de classe na sociedade norte-americana, ele buscou criar uma divisão entre os trabalhadores e seus exploradores. Contrapôs os “plutocratas americanos” ao “proletariado revolucionário dos EUA” e os convocou a realizar a importante tarefa de pôr fim à intervenção. O verdadeiro inimigo, afinal, está em casa. Como ele explicou:
“[Os imperialistas norte-americanos] obtiveram os maiores lucros. Tornaram todos, até mesmo os países mais fracos, seus devedores. Acumularam fortunas gigantescas durante a guerra. E cada dólar está manchado com o sangue derramado por milhões de homens assassinados e mutilados, derramado na alta, honrosa e santa guerra da liberdade.”11
Em termos simples, mas profundos, Lênin explicou as raízes de classe da Primeira Guerra Mundial e da intervenção estrangeira contra os soviéticos, deixando bem claro que tanto os alemães quanto os aliados eram criminalmente responsáveis pelo horrível massacre. Longe de serem instrumentos dóceis ou agentes do Kaiser, os bolcheviques eram inimigos mortais do imperialismo alemão, como evidenciado pelos termos de Brest-Litovsk.
Lênin condenou todos os imperialistas com a linguagem mais vívida possível:
“O cadáver da sociedade burguesa não pode ser simplesmente colocado em um ataúde e enterrado. Ele apodrece entre nós, envenena o ar que respiramos, polui nossas vidas, apega-se ao novo, ao fresco, ao vivo com os mil fios dos velhos costumes, da morte e da decadência.”12
Moral em declínio
Em menor número e indesejáveis, muitos dos trabalhadores e agricultores uniformizados tinham dúvidas crescentes sobre seu papel na Rússia e se irritavam com o comando britânico em Arkhangelsk. Um oficial resumiu o clima de decadência entre as tropas:
“Eles declararam que foram convocados para lutar contra a Alemanha, não contra os bolcheviques. Que foram enviados para cá para proteger suprimentos e não para travar uma guerra agressiva; que, após a assinatura do Armistício com a Alemanha, seu trabalho estava concluído e que, se o governo quisesse que eles permanecessem e lutassem contra o bolchevismo, deveria dizê-lo e anunciar uma política definitiva em relação à Rússia.”13
Outro informou ao chefe geral dos Estados Unidos, “Black Jack” Pershing, que:
“O moral de nossas tropas está baixo desde a assinatura do armistício com a Alemanha. Os homens e alguns oficiais parecem incapazes de entender por que deveriam ser mantidos na Rússia após o fim dos combates com a Alemanha.”14
Devido à sua familiaridade com o frio, a maioria dos “ursos polares” estacionados no norte da Rússia vinha do Alto Centro-Oeste. Assim que o Armistício foi oficializado, jornais de Chicago, Detroit e Wisconsin aumentaram a pressão para que as tropas retornassem. Alguns chegaram a republicar cartas de soldados descrevendo na íntegra as duras condições que enfrentavam, desafiando a censura governamental. Uma charge publicada no Chicago Tribune retratava dois soldados em Arkhangelsk perguntando um ao outro: “Ei, quando foi que declaramos guerra à Rússia?”
As tropas norte-americanas eram submetidas a um fluxo constante de apelos internacionalistas proletários dos soviéticos – que acrescentavam que os ocupantes enfrentariam destruição certa se permanecessem em solo russo. A presença dos imperialistas também foi usada para mobilizar o campesinato russo para o lado da revolução.
Um folheto retratava o Tio Sam e capitalistas britânicos segurando as rédeas de líderes brancos. A Cruz Vermelha Americana observou: “A presença da Expedição Aliada no Norte da Rússia constitui um dos pilares mais fortes do governo bolchevique.”15
A pressão política para encerrar a expedição cresceu, com congressistas e senadores Republicanos liderando o ataque. A votação do projeto de lei ficou empatada entre os partidos, com o vice-presidente Democrata desempatando a favor do prolongamento da aventura.
Após essa votação fracassada, o moral entre os soldados despencou ainda mais. Em 30 de março de 1919, um ponto crítico foi alcançado quando um sargento no norte da Rússia ordenou que quatro soldados alistados carregassem seus trenós e seguissem para a frente de batalha. Eles se recusaram, e uma assembleia geral dos homens foi convocada. De acordo com um certo Tenente May, os soldados se queixavam de que:
“Eles nunca receberam uma resposta sobre o motivo de estarem ali, mas os Vermelhos estavam tentando empurrá-los para o Mar Branco e que eles estavam lutando por suas vidas.”16
Clima de rebelião
Embora existam relatos conflitantes sobre o que aconteceu em seguida, o Washington Post publicou um artigo em 11 de abril com a manchete: “Tropas dos EUA se amotinam na Frente de Arkhangelsk “. O artigo relatava que, após quatro soldados se recusarem a ir para a frente de batalha, mais 250 soldados se rebelaram e previram que uma “rebelião geral” seria possível se as tropas não fossem retiradas imediatamente. Esses relatos acabaram chegando aos “ursos polares” na Rússia, deprimindo ainda mais o ânimo.

Pelo menos alguns soldados concluíram que os britânicos, que detinham o comando geral da operação, sonhavam com a conquista total. Como um deles escreveu em seu diário:
“Não havia suprimentos. Na verdade, os britânicos queriam ocupar e conquistar o estado do Norte da Rússia para obter o pinheiro das florestas.”17
O medo de que as tropas não obedecessem às ordens dos oficiais britânicos aumentou. Como escreveu um comandante norte-americano:
“Muitos de nossos oficiais expressaram sérias dúvidas de que as ordens para operações agressivas seriam obedecidas.”18
O ânimo dos camponeses russos nas regiões ocupadas pendia claramente a favor dos Vermelhos. A Revolução de Outubro havia dado terras aos camponeses, mas onde quer que os Brancos assumissem o controle, eles as restituíam implacavelmente aos antigos proprietários de terras, apoiados por um regime de terror. Era fácil decidir qual lado cuidava de seus interesses.
Enquanto isso, o esforço titânico de Trotsky para construir um Exército Vermelho alcançava resultados maravilhosos. Até mesmo a inteligência militar dos EUA teve que admitir isso:
“Nos últimos dois meses, todas as forças bolcheviques foram reorganizadas e uma tentativa séria está sendo feita para criar um exército grande e bem disciplinado, seguindo o modelo europeu.”19
À medida que os bolcheviques ganhavam força, as preocupações com a invasão dos ocupantes se intensificavam. Posições aliadas eram regularmente atingidas por artilharia de longo alcance, e os serviços de inteligência relataram que “[o] inimigo está sistematicamente acumulando tropas em todas as frentes com o objetivo de uma ofensiva geral antes do degelo.”20
Um comandante dos EUA, o General Stewart, escreveu com urgência ao Secretário de Guerra:
“O inimigo está se tornando mais numeroso e mais ativo em todas as frentes. O comando aliado é pequeno e não temos reservas.”21
A batalha final no norte da Rússia ocorreu perto da vila de Bolshie Ozerki em 2 de abril de 1919. Àquela altura, as tropas já estavam sem efetivos, armas, suprimentos e moral. Naquele mês de junho, assim que a navegação foi reaberta no Mar Branco, as tropas norte-americanas iniciaram sua retirada, com soldados britânicos enviados para substituí-las. Logo depois, os bolcheviques invadiram essas posições e retomaram Murmansk e Arkhangelsk.
Em 1º de abril de 1920, as últimas tropas se retiraram da Sibéria. Um total de 424 soldados morreram em combate ou devido a doenças ou congelamento no norte da Rússia e na Sibéria.
Internacionalismo em ação
A luta dos bolcheviques contra o imperialismo norte-americano não parou nas fronteiras da Rússia. A carta de Lênin foi contrabandeada para os EUA e publicada de forma ligeiramente resumida em dezembro de 1918, tanto na New York Magazine, na The Class Struggle, quanto no semanário de Boston, The Revolutionary Age. Um dos principais responsáveis pela publicação da carta nos EUA foi ninguém menos que John Reed, autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo.
A partir daí, a carta chegou à imprensa burguesa nos EUA, França, Grã-Bretanha e Alemanha. Nos EUA, em particular, tornou-se um ponto focal para a esquerda revolucionária, servindo como um documento fundamental de fato para o movimento comunista embrionário e ajudando a levantar a oposição à intervenção armada de Wilson contra a revolução.
Aqui vemos os frutos do internacionalismo proletário de Lênin em ação. Enfrentando a ameaça de destruição de todos os lados, ele apelou aos trabalhadores do mundo sobre uma base de classe, sem o menor indício de chauvinismo nacional, e usou seus apelos para ajudar a construir partidos revolucionários dentro das próprias fronteiras dos imperialistas.
O destino da malfadada aventura do imperialismo norte-americano na jovem República Soviética oferece muitas lições para os comunistas de hoje.
A hipocrisia do imperialismo norte-americano só fez crescer desde 1918. Hoje, enquanto os EUA e seus aliados da Otan financiam guerras e atrocidades na Ucrânia e no Oriente Médio – tudo em nome da “democracia” e da “autodeterminação das nações” – é mais importante do que nunca que os comunistas exponham as mentiras e os reais interesses dos imperialistas, da mesma forma ousada e baseada em princípios como Lênin.
No contexto das crescentes tensões entre o imperialismo ocidental, a Rússia e a China, com toda a instabilidade e as “guerras por procuração” que isso acarreta, a necessidade de uma posição clara, classista e internacionalista é absolutamente imperativa. Em vez de se aliar a uma ou outra das potências em conflito, os comunistas devem apelar aos trabalhadores em todos os lugares para que lutem contra seus próprios imperialistas e unam forças pela vitória da revolução socialista mundial.
Mais de 100 anos após a invasão da Rússia pelos EUA, o potencial para uma revolução mundial nunca foi tão grande e temos todo o direito de compartilhar a confiança inesgotável de Lênin na classe trabalhadora mundial:
“Que os ‘socialistas’ choramingas coaxem, que a burguesia se enfureça e fumegue, mas somente aqueles que fecham os olhos para não ver e tapam os ouvidos para não ouvir podem deixar de notar que, em todo o mundo, começaram as dores de parto da velha sociedade capitalista, que está grávida de socialismo.”22
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
Referências bibliográficas
- V. I. Lênin, Decreto sobre a Paz, Obras Completas de Lênin, Vol. 26, Editora Progresso, 1964, pág. 249 ↩︎
- A. S. Link et al. (orgs.), The Papers of Woodrow Wilson, Vol. 45, Princeton University Press, 1984, pág. 536, ênfase adicionada ↩︎
- J. V. Fuller (org.), O Embaixador na França (Sharp) ao Secretário de Estado, Documentos Relacionados às Relações Exteriores dos Estados Unidos, Vol. 2, United States Government Printing Office, 1932, pág. 33 ↩︎
- W. A. Williams, ‘Intervenção Americana na Rússia, 1917-1920’, Studies on the Left, n.º 3, 1963, pág. 35 ↩︎
- J. V. Fuller (org.), ‘O Embaixador na Rússia (Francisco) junto ao Secretário de Estado’, Documentos Relacionados às Relações Exteriores dos Estados Unidos, vol. 1, Imprensa do Governo dos Estados Unidos, 1931, pág. 538 ↩︎
- W. A. Williams, ‘Intervenção Americana na Rússia, 1917-1920’, Estudos sobre a Esquerda, nº 3, 1963, pág. 25 ↩︎
- W. S. Graves, A Aventura Siberiana da América, Editora Peter Smith, 1941, págs. 7-8 ↩︎
- J V Fuller (org.), ‘O Secretário de Estado em Exercício do Embaixador no Japão (Morris)’, Documentos Relacionados às Relações Exteriores dos Estados Unidos, vol. 2, Imprensa do Governo dos Estados Unidos, 1932, pág. 388 ↩︎
- V I Lenin, Uma Carta aos Trabalhadores Americanos, Sociedade Socialista de Publicações, 1918, pág. 15 ↩︎
- ibid. págs. 11-12 ↩︎
- ibid. pág. 4 ↩︎
- ibid. pág. 11 ↩︎
- Arquivos Históricos da Força Expedicionária Americana, Norte da Rússia, 1918-1919, Administração Nacional de Arquivos e Registros dos EUA, M 924, Rolo 1, 23-11.1. ↩︎
- ibid. ↩︎
- ibid. ↩︎
- D Habib, Jogando nas Mãos dos Isolacionistas: A Política Russa de Woodrow Wilson, 1918-1920, Universidade Estadual de San Jose, 1995, pág. 31 ↩︎
- H Otoupalik (org.), Aquartelado no Inferno: A História da Força Expedicionária Americana para o Norte da Rússia, 1918-1919. Sociedade Histórica Doughboy, 1982, pág. 179 ↩︎
- Arquivos Históricos da Força Expedicionária Americana, Norte da Rússia, 1918-1919, Administração Nacional de Arquivos e Registros dos EUA, M 924, Rolo 1, 23-11.1. ↩︎
- ibid. ↩︎
- ibid. ↩︎
- ibid. ↩︎
- V I Lenin, ‘Palavras Proféticas’, Obras Completas de Lenin, vol. 27, Editora Progress, 1965, pág. 499 ↩︎