Foto: Lucas Destrem

Que sua voz ecoe, Annie Ernaux! Sobre o aborto e a obra da Nobel de Literatura

Nem só de Copa do Mundo vive o Brasil. Em paralelo ao campeonato mundial, acontece em Paraty/RJ a tradicional festa de literatura Flip 2022; este ano a escritora Annie Ernaux é uma das atrações. A autora francesa, pouco conhecida no Brasil antes de ganhar o Nobel 2022, escreve literatura de memória ou autoficção como caracteriza Claudia Pino1, ou seja, relembra episódios que, ainda que pessoais, dizem respeito ao conjunto da sociedade e dão um retrato social muito além da caracterização de um acontecimento pessoal. Trotsky também fala da necessidade de memórias e o porquê de estar tão em alta em seu tempo:

“As épocas ‘interceptadas’, como a nossa, criam a necessidade de considerar o dia de ontem, que já nos parece longe, sob o ponto de vista daqueles que se empenharam ativamente nas suas lutas.”2

Acredito ser possível dizer que este é o motivo que faz com que Annie tenha conseguido destaque mundial: a luta pela emancipação da mulher marca a geração de Annie. A autora de família operária, nasceu em 1940, curiosamente o ano da ocupação francesa pelos nazistas. Além disso, viveu o maio de 68 no epicentro dos acontecimentos. Parafraseando Trotsky, a arte de Annie não nasceu no deserto. Esta é a mais pura verdade: somos fruto de nosso tempo e, portanto, dos nossos combates, assim é a obra de Annie, fruto de seus combates, fruto de uma sociedade que condena o aborto e submete as mulheres ao terror do aborto clandestino.

Assim, a obra da Nobel se une aos milhões de homens e mulheres que lutam incansavelmente pela emancipação da mulher. E, a cada momento em que nossa luta ganha destaque acredito ser a hora de retomar o debate, de retomar a luta. Annie ganhou o Nobel, agora, cabe a nós usar do seu êxito como forma de honrar as milhões de mulheres que morrem em abortos clandestinos anualmente e jamais terão a chance de mostrar ao mundo sua memória.

Não sou uma conhecedora da obra de Annie Ernaux, aliás, ainda me situo entre aqueles que conhecem só um pouquinho, apenas uma das obras e um pouco da sua biografia, mas o pouco que conheço, na imensidão de lixo “literário” que circula nos quatro cantos do globo,  considero que seja motivo para compartilhar.

Não resolvi escrever sobre Annie porque ela ganhou o Nobel de 2022, já que o prêmio não representa a melhor expressão do que é boa literatura. Aliás é um prêmio muito duvidoso desde os primórdios do evento e hoje totalmente suscetível ao mercado financeiro com suas apostas bilionárias. Resolvi escrever porque, para mim, Annie poderia ter escrito somente a obra que li, já seria digno o suficiente. Certa vez li uma obra infantil de um conhecido cartunista brasileiro, depois daquele livro não recordo de encontrar outro do mesmo autor que eu gostasse, mas ainda assim o considero um dos melhores escritores de literatura infantil, porque escreveu uma pequena obra-prima e isso não acontece todos os dias. O mesmo acontece com Annie. Se o restante da sua obra, que ainda não conheço, for ruim, ela já tem seu lugar entre os grandes com O Acontecimento3. A coragem de Annie e o solavanco que este livro nos dá é, sem dúvida, algo notável.

Nele, Ernaux narra a memória do aborto praticado na Paris de 1964. A narrativa é objetiva, quase crua de belezas linguísticas – ou talvez tenha sido a tradução que não me permitiu desfrutá-las. Ainda assim, a autora mostra o quanto tem perspectiva; relembra os encantos das músicas que marcaram ano; faz um pequeno passeio por algumas ruas da Cidade Luz e ainda visita alguns clássicos do cinema. Ali, num parágrafo nada despretensioso encontramos, por exemplo, O Encouraçado Potemkin: “Naquela noite, no cineclube do La Faluche ia passar O Encouraçado Potemkin. (…) Eu não acompanhava o filme. Apareceu um enorme pedaço de carne suspenso por um anzol, cheio de vermes. Foi a última imagem que guardei do filme. Levantei e corri até a cidade universitária”.

Numa bela metáfora de que, havendo dor, estamos vivos, a narrativa é de uma dor profunda e constante, da primeira página até a última. Qualquer mulher sentirá empatia sem qualquer esforço, sentirá cada sofrimento, cada isolamento social, cada opressão sofrida, cada medo: “Choramos silenciosamente. É uma cena sem nome, a vida e a morte ao mesmo tempo. Uma cena de sacrifício”.

Annie não nega suas origens, faz questão de mostrar de onde veio, mostra as diferenças nas classes sociais,  deixa explícito quem é, para muito além do mero jargão de homens contra mulheres, demonstra o quanto a luta de classes está presente na questão da legalização do aborto, explicitando as consequências para as mulheres que resolvem abortar. Sem meias palavras apresenta seu ódio de classe: “Foi talvez por ódio de classe, para desafiar aquele filho de diretor de fábrica que falava dos operários como se fossem de outro mundo, ou por orgulho.”

No Brasil do aborto criminalizado, dos projetos assombrosos, como o Estatuto do Nascituro (2007), do PL 5435/2020 (conhecido como Bolsa Estupro) e do Decreto 10.531 (que considera o direito à vida desde a concepção), o livro O acontecimento de Annie Ernaux é daqueles que devemos carregar na bolsa e divulgar aos quatro cantos do país.

Maritania Camargo é militante da Esquerda Marxista, Editora da Revista América Socialista – Em Defesa do Marxismo e professora de Língua Portuguesa e Literatura na Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina.

1 Claudia Consuelo Amigo Pino em https://www.fflch.usp.br/36940

2 Trotsky, Leon.  Minha Vida: ensaio autobiográfico; tradução de Lívio Xavier. 2º ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. Página citatada: 9.

3 Ernaux, Annie. O Acontecimento [livro eletrônico]. Trad. Isadora de Araújo Pontes. São Paulo, SP: Fósforo, 2022. Posições citadas: 576 e 78 respectivamente.