O capitalismo produz, como consequência de seu próprio sucesso e expansão, uma superpopulação relativa, composta por trabalhadores supranumerários da grande indústria e que não consegue se empregar nela de maneira permanente. Aqui falamos em superpopulação “relativa” porque nos referimos ao número de trabalhadores que excede as necessidades de reprodução do capital em determinado período da sua acumulação, não em termos absolutos no sentido de “ter muita gente no planeta”. O planeta tem capacidade de alimentar muitas vezes a população atual, e isso é um consenso científico.
A superpopulação relativa existe porque o capital, continuamente, aumenta sua “composição orgânica”. E o que isso significa? Que nele a produção aumenta a parte do capital investido na maquinaria (constante) em detrimento da quantidade investida na força de trabalho (variável), o que faz com que um número crescente de trabalhadores seja posto para fora ou não possa ser incorporado na grande indústria e elimina progressivamente os pequenos e médios negócios, sobretudo nos momentos de crise, estes incapazes de competir com o grande capital. Máquinas com novas tecnologias, mais produtivas, ocupam os postos de trabalho: esse fato está na base do aumento constante dos supranumerários.
A fome, a miséria, as favelas, entre outros fenômenos do pauperismo que se amplia, são artificiais se considerarmos a disponibilidade de recursos e tecnologias para as empresas. Como uma contradição do capital, mesmo ampliando constantemente a escala da produção, a demanda por força de trabalho da grande indústria nunca acompanha ou supera o crescimento da população trabalhadora disponível. Os supranumerários crescem a cada dia.
E aqui chegamos ao centro da nossa análise. Uma parte dessa superpopulação relativa é chamada por Marx de superpopulação relativa estagnada. Os trabalhadores que a compõem ainda são do exército ativo, seja como trabalhadores empregados ou semiempregados1. Entretanto, sua condição de vida está abaixo do nível médio da classe trabalhadora. O tipo de trabalho desempenhado por essa população costuma ser totalmente irregular, e a jornada diária se submete a regra de que se recebe um mínimo de salário para o máximo de tempo trabalhado. Setores inteiros da indústria funcionam dessa maneira, como mostra o artigo divulgado no site, chamado “A situação da classe trabalhadora no Ceará“.
A superpopulação relativa estagnada se reproduz e perpetua a si mesma numa proporção maior do que os demais elementos da classe trabalhadora, o que pode dar a impressão, em certo estágio do capitalismo e da vida nas cidades, de que os trabalhadores da grande indústria, que batem cartão e tem um contrato de trabalho formal (CLT), ocupam agora uma posição secundária em todo o sistema. Para falarmos sobre essa impressão, precisamos primeiro caracterizar os fenômenos econômicos que estão relacionados ao trabalho nos aplicativos. Se tornou comum resumir a difusão dessa forma de trabalho como “uberização”. De fato, os trabalhadores “uberizados” são força de trabalho contratada por grandes empresas capitalistas. Vejamos por que.
Grupos de “investidores” – outro nome para “capitalista”, já que todo capitalista investe dinheiro para fazer mais dinheiro –, reconhecendo que há uma superpopulação relativa estagnada, criam empresas que a recrutam, em massa, oferecendo a ela uma remuneração irregular e muito abaixo da média. Como o pauperismo é real e crescente, milhares de indivíduos topam ser “uberizados”, seja no intuito de não morrerem de fome ou escaparem do crime e da vida nas ruas. Para que esse recrutamento seja possível no âmbito legal, os capitalistas utilizam do seu poder econômico – que se desdobra em poder político – para ganhar autorização do Estado burguês para o emprego dessa população sob regras flexíveis, deixando-a de fora da maioria das exigências da legislação trabalhista tradicional. Certamente é de interesse do Estado evitar a entrada de milhares no lumpemproletariado, que dirá ao povo que faz o melhor que pode para proporcionar emprego.
Um entregador de Ifood ou um motorista de Uber produzem valores de troca e de uso, assim como o operário de uma montadora de veículos. Nestes dois exemplos de aplicativos, os valores de uso são produzidos e consumidos simultaneamente, no Ifood pelo deslocamento de mercadorias e no Uber pelo de pessoas de um ponto a outro. Os trabalhadores de aplicativos são, como os operários fabris, trabalhadores produtivos, isto é, produzem capital-mercadoria (valores de troca) para a venda e mais-valia, de acordo com o interesse de um pequeno grupo de acionistas parasitas.
É o capitalismo de maneira cristalina, com a minoria ociosa explorando economicamente a maioria produtiva. E esse é o nome correto para o fenômeno dos trabalhadores de aplicativos: exploração do trabalho assalariado pelo capital, seja lá qual forma brutal de assalariamento ela represente, as manobras políticas que os capitalistas façam para torná-lo possível, ou que parte da população ela atinge.
Enquanto milhares estão nas ruas se expondo a todos os tipos de risco, com escassos direitos trabalhistas, os grandes acionistas destes “aplicativos” extraem dividendos de suas ações e se deliberam salários milionários de supervisão e gerência nos conselhos de administração, tudo enquanto fazem seus jogos sujos no mercado financeiro e buscam infindos empréstimos, apoios e isenções junto a governos e instituições financeiras.
Cabe aqui uma observação. Novos nomes como “precariado”, “infoproletários”, “superexplorados”, “escravidão digital”, entre outros, podem até trazer expressividade dramática ao antigo fato de a exploração capitalista seguir seu curso sob maneiras revolucionárias, mas não acrescenta ou altera em nada o que Marx trouxe em O Capital sobre ele. As novas nomenclaturas tampouco ajudam numa releitura de Marx. No máximo, as pretensas novidades conceituais das “cybercelebridades de esquerda” contribuem de maneira reacionária para que milhares de jovens vejam a obra da crítica da economia política de Marx como desatualizada.
1 “Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada.” (MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.)