Os desenvolvimentos da crise política no Brasil, aprofundada pela pandemia, reacenderam a discussão sobre a possibilidade de um golpe, um autogolpe, ou mesmo a instauração de um regime fascista no país.
Esta não é uma discussão nova. Nas eleições de 2014, o mau resultado do PT nos estados e a quase derrota de Dilma para a presidência, fez com que setores da “esquerda” apresentassem a análise do avanço de uma “onda conservadora”. Quatro anos depois, a vitória eleitoral de Bolsonaro foi vista por estes mesmos setores como a antessala do fascismo.
As análises sobre a situação política e as perspectivas devem ir mais fundo do que a impressão superficial e o discurso dos dirigentes “oficiais” (direção do PT, PCdoB, PSOL, CUT etc.). É preciso olhar para a realidade concreta, a correlação de forças entre as classes (burguesia e proletariado) cujo embate faz a roda da história girar, e o que se passa ao redor do mundo.
A Esquerda Marxista se contrapôs às análises de “onda conservadora” e iminência do fascismo, pois, concretamente, a classe trabalhadora não estava e não está derrotada e, apesar do bloqueio e traições das direções, jovens e trabalhadores tem seguidamente demonstrado sua disposição de luta. Também não há base social capaz de sustentar um regime fascista ou uma ditadura no Brasil. O que cresceu entre a população, principalmente a partir de junho de 2013, foi o ódio ao sistema. O PT, por outro lado, tem sido um fiel defensor deste sistema, da democracia burguesa e suas instituições, que atacam e humilham cotidianamente os trabalhadores e negam um futuro digno para a juventude.
Obviamente Bolsonaro tem intenções totalitárias, bonapartistas e até mesmo inclinações fascistas. Ganhou apoio surfando na onda antissistema com um discurso demagógico. Mas entre o que ele pretende e o que tem capacidade de realizar há uma larga distância. E hoje, é preciso constatar, Bolsonaro está muito mais fraco e isolado do que quando tomou posse.
Muitos dos que votaram iludidos em Bolsonaro se arrependeram rapidamente. Com menos de cinco meses de governo, um maravilhoso movimento de jovens tomou as ruas, e em diferentes manifestações o grito “Fora Bolsonaro” foi adotado massivamente. Com o início da pandemia, o que vimos crescer foram os panelaços por todo o país e o “Fora Bolsonaro” sendo entoado pelas janelas. A reprovação do governo bate recordes, segundo pesquisa Datafolha publicada em 28/5, 43% consideram o governo ruim ou péssimo, já a pesquisa do Atlas Político, publicada em 27/5, aponta para um índice bem maior de rejeição, 58,1%. Independente da significativa diferença entre duas pesquisas realizadas no mesmo período, o movimento da série histórica de ambas é de progressivo aumento da rejeição.
Qual base social teria uma ditadura bolsonarista? Os pouco radicais negacionistas que se manifestam contra o isolamento social em frente ao Palácio do Planalto aos domingos? Os “300 do Brasil” liderados por Sara Winter? Os comentadores de redes sociais, muito deles provavelmente robôs? Estas são bases muito débeis para enfrentar uma maioria que cada vez odeia mais Bolsonaro e seu governo.
Ex-bolsonaristas que pegaram carona nas eleições, agora são ferrenhos opositores. Os governadores Doria e Witzel são os casos mais emblemáticos. São ratos que pularam fora do barco em naufrágio. Assim como Moro, que saiu atirando no governo para elevar suas chances eleitorais em 2022.
A burguesia eleva o tom da crítica. FHC pede a renúncia. Os principais jornais (Estadão, Folha, O Globo etc.), que são porta vozes de setores da burguesia, batem diariamente no governo. A própria divulgação do vídeo da reunião com os ministros demonstra que importantes setores burgueses estão trabalhando para desgastar o governo.
Fascismo, ditadura, democracia parlamentar, são formas de dominação da burguesia. A burguesia, hoje, majoritariamente, não está apoiando um golpe ou um autogolpe de Bolsonaro. Por isso a posição geral dos analistas burgueses foi de rechaço à ameaça do ministro Augusto Heleno, de que a possibilidade de apreensão do celular do presidente “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”, assim como às declarações do deputado Eduardo Bolsonaro, de que um “momento de ruptura”, de “conflito ainda maior”, “não é mais uma opinião de se, mas, sim, de quando isso vai ocorrer”.
Já o vice Hamilton Mourão, alternativa da burguesia para uma possível queda de Bolsonaro, apresenta a sua linha:
“Quem é que vai dar golpe? As Forças Armadas? Que que é isso, estamos no século 19? A turma não entendeu. O que existe hoje é um estresse permanente entre os poderes. Eu não falo pelas Forças Armadas, mas sou general da reserva, conheço as Forças Armadas: não vejo motivo algum para golpe”
E sobre as declarações do filho do presidente deputado:
“Me poupe. Ele é deputado, ele fala o que quiser. Assim como um deputado do PT fala o que quiser e ninguém diz que é golpe. Ele não serviu Exército. Quem vai fechar Congresso? Fora de cogitação, não existe situação para isso”
Não se trata de simplesmente confiar nas palavras de Mourão, mas compreender que ele, que conhece as Forças Armadas, analisa que hoje não há condições políticas para fazer o Exército, a Marinha e a Aeronáutica embarcarem na aventura de um golpe.
A classe dominante não tem nenhum apreço pela democracia em geral. A ofensiva internacional da burguesia tem sido de ataques às liberdades democráticas e a criminalização das lutas. A repressão brutal de seu Estado foi vista recentemente contra o movimento dos Coletes Amarelos, na França, contra a luta pela autonomia da Catalunha, na Espanha, contra as manifestações da onda revolucionária pela América Latina ano passado etc. Se a burguesia não apoia uma ditadura aberta hoje no Brasil (e esta também não é sua linha geral internacionalmente) é porque o verniz da democracia burguesa lhe convém mais neste momento, sabe que avançar em direção a um claro regime totalitário pode provocar as explosões revolucionárias que estão latentes. No Brasil, uma ditadura encabeçada por Bolsonaro então, seria o caminho para o desastre total.
O que estamos vendo aqui é o conflito entre dois poderes da República, o Executivo (governo Bolsonaro) que perde cada vez mais apoio da população e da própria burguesia – que age como um animal ferido e acuado que tenta atacar pra se defender –, e o STF, o judiciário, buscando retomar o protagonismo e o papel político bonapartista que teve, principalmente a partir do chamado julgamento do “mensalão”, aprofundado com a Operação Lava Jato. E o governo, na realidade, busca uma aproximação com o Congresso Nacional e com os parlamentares do chamado “centrão” para bloquear o caminho do impeachment. À maioria dos deputados interessa, por sua vez, tanto as verbas e cargos do aparato estatal, mas também em frear a retomada da ofensiva do judiciário. Na briga entre os poderes, os comunistas não estão a favor do STF/Judiciário ou do Executivo ou do Legislativo. São todos braços do Estado capitalista para defender o regime da propriedade privada dos grandes meios de produção.
A burguesia está dividida e isto se expressa neste conflito entre os poderes e, inclusive, no interior destes poderes (entre os próprios ministros do STF há embates). A burguesia pisa em ovos, pois sabe que a situação política mundial é extremamente instável, com uma crise econômica gigantesca no colo e uma pandemia pra completar o quadro.
No Brasil e no mundo, o capitalismo já poderia ter sido superado há tempos. O que tem impedido a vitória revolucionária do proletariado é a traição dos dirigentes políticos e sindicais que dizem representar a classe trabalhadora. São os mesmos que agora propagam a suposta ameaça de fascismo e ditadura na próxima esquina, e assim tentam justificar a defesa da democracia burguesa e a colaboração de classes. A classe trabalhadora e a juventude terão que atropelar estas direções com sua mobilização independente, forjar novas direções e abrir caminho para uma nova sociedade. Isso é possível, é necessário.