Tirem as mãos de Rosa Luxemburgo

O artigo de Stalin, “Algumas Questões Sobre a História do Bolchevismo”, chegou a mim depois de muita demora. Após recebê-lo, por muito tempo não consegui me obrigar a lê-lo, pois tal literatura fica atravessada na garganta como serragem ou cerdas amassadas. Mas ainda assim, tendo finalmente lido, cheguei à conclusão de que não se pode ignorar tal obra, nem que seja apenas porque nela está incluída uma calúnia vil e descarada contra Rosa Luxemburgo. Esta grande revolucionária é alistada por Stalin no campo do centrismo! Ele prova – não prova, é claro, mas afirma – que o bolchevismo, desde o dia de seu surgimento, manteve a linha da ruptura com o centro kautskista, enquanto Rosa Luxemburgo, nesse período, sustentava Kautsky pela esquerda. Cito suas próprias palavras:

“… muito antes da guerra, aproximadamente desde 1903–04, quando o grupo bolchevique na Rússia tomou forma e quando a Esquerda na social-democracia alemã levantou pela primeira vez a sua voz, Lênin seguiu uma linha em direção a uma ruptura, a uma cisão com os oportunistas tanto aqui, no Partido Operário Social-Democrata Russo, como lá, na Segunda Internacional, particularmente no Partido Social-Democrata Alemão.”

Que isso, no entanto, não tenha podido ser alcançado se deveu inteiramente ao fato de que “os social-democratas de esquerda na Segunda Internacional, e sobretudo no Partido Social-Democrata Alemão, eram um grupo fraco e impotente … e tinham medo até mesmo de pronunciar a palavra ‘ruptura’, ‘cisão’.”

Para avançar tal afirmação, é preciso ser absolutamente ignorante da história do próprio partido, e, antes de tudo, do curso ideológico de Lênin. Não há uma única palavra de verdade no ponto de partida de Stalin. Em 1903–04, Lênin era, de fato, um inimigo irreconciliável do oportunismo na social-democracia alemã. Mas ele considerava oportunismo apenas a corrente revisionista liderada teoricamente por Bernstein.

Kautsky, à época, encontrava-se combatendo Bernstein. Lênin considerava Kautsky seu mestre e enfatizava isso em toda parte. Nos escritos de Lênin desse período, e por vários anos subsequentes, não se encontra sequer um traço de crítica de princípio dirigida contra a tendência Bebel-Kautsky. Pelo contrário, encontra-se uma série de declarações no sentido de que o bolchevismo não era uma tendência independente, mas apenas uma tradução, para as condições russas, da tendência de Bebel-Kautsky. Eis o que Lênin escreveu em seu famoso panfleto “Duas Táticas”, em meados de 1905:

“Quando e onde eu já chamei o revolucionarismo de Bebel e Kautsky de ‘oportunismo’? … Quando e onde vieram à luz diferenças entre mim, de um lado, e Bebel e Kautsky, de outro? … A completa unanimidade da social-democracia revolucionária internacional em todas as questões principais de programa e tática é um fato absolutamente incontestável.” (Obras Completas, vol. 9, julho de 1905).

As palavras de Lênin são tão claras, precisas e categóricas que esgotam inteiramente a questão.

Um ano e meio depois, em 7 de dezembro de 1906, Lênin escreveu no artigo “A Crise do Menchevismo”:

“… desde o início declaramos (veja ‘Um Passo à Frente, Dois Passos Atrás’): Não estamos criando uma tendência ‘bolchevique’ especial; sempre e em toda parte apenas defendemos o ponto de vista da social-democracia revolucionária. E até a revolução social haverá inevitavelmente sempre uma ala oportunista e uma ala revolucionária da social-democracia.” (ibid., vol. 11, 7 de dezembro de 1906).

Falando do menchevismo como a ala oportunista da social-democracia, Lênin comparava os mencheviques não ao kautskismo, mas ao revisionismo. Além disso, via o bolchevismo como a forma russa do kautskismo, que em seus olhos era, naquele período, idêntico ao marxismo. A passagem que acabamos de citar mostra, de passagem, que Lênin não defendia absolutamente uma cisão com os oportunistas; ele não apenas admitia, como também considerava “inevitável” a existência dos revisionistas na social-democracia até a revolução social.

Duas semanas mais tarde, em 20 de dezembro de 1906, Lênin saudava entusiasticamente a resposta de Kautsky ao questionário de Plekhanov sobre o caráter da revolução russa:

“Ele confirmou plenamente nossa afirmação de que estamos defendendo a posição da social-democracia revolucionária contra o oportunismo, e não criando nenhuma tendência ‘peculiar’ bolchevique …” (O Proletariado e Seu Aliado na Revolução Russa, ibid., vol. 11, 20 de dezembro de 1906).

Dentro desses limites, confio que a questão esteja absolutamente clara. Segundo Stalin, Lênin, já em 1903, exigia uma ruptura na Alemanha com os oportunistas, não apenas da ala direita (Bernstein), mas também da ala esquerda (Kautsky). Enquanto em dezembro de 1906, Lênin, como vemos, apontava orgulhosamente a Plekhanov e aos mencheviques que a tendência de Kautsky na Alemanha e a tendência do bolchevismo na Rússia eram idênticas. Eis a primeira parte da excursão de Stalin na história ideológica do bolchevismo. A escrupulosidade e o conhecimento de nosso investigador estão no mesmo nível!

Logo após sua afirmação a respeito de 1903–04, Stalin salta para 1916 e refere-se à crítica severa de Lênin ao panfleto de guerra de Junius, isto é, Rosa Luxemburgo. É verdade que, nesse período, Lênin já havia declarado guerra total ao kautskismo, tendo tirado de sua crítica todas as conclusões organizacionais necessárias. Não se pode negar que Rosa Luxemburgo não colocava a questão da luta contra o centrismo com a completude necessária — nesse ponto, a posição de Lênin era inteiramente superior. Mas entre outubro de 1916, quando Lênin escreveu sobre o panfleto Junius, e 1903, quando o bolchevismo surgiu, há um intervalo de treze anos; ao longo da maior parte desse período, Rosa Luxemburgo encontrava-se em oposição ao Comitê Central de Kautsky e Bebel, e sua luta contra o “radicalismo” formal, pedante e podre até o núcleo de Kautsky assumiu um caráter cada vez mais agudo.

“Rosa Luxemburgo tinha razão quando escreveu, há muito tempo, que Kautsky possui a ‘subserviência de um teórico’…” Lênin apressa-se aqui a reconhecer essa “verdade” que antes não via, ou que, ao menos, não reconhecia plenamente no lado de Rosa Luxemburgo

Lênin não participou dessa luta e não apoiou Rosa Luxemburgo até 1914. Absorvido apaixonadamente pelos assuntos russos, manteve extrema cautela nas questões internacionais. Aos olhos de Lênin, Bebel e Kautsky se erguiam incomensuravelmente mais alto como revolucionários do que aos olhos de Rosa Luxemburgo, que os observava de perto, em ação, e que estava muito mais diretamente submetida à atmosfera da política alemã.

A capitulação da social-democracia alemã em 4 de agosto de 1914 foi inteiramente inesperada para Lênin. É bem conhecido que a edição do Vorwärts com a declaração patriótica da fração social-democrata foi tomada por Lênin como uma falsificação do Estado-Maior alemão. Apenas depois de estar absolutamente convencido da terrível verdade é que submeteu à revisão sua avaliação das tendências fundamentais da social-democracia alemã, e ao fazê-lo realizou essa tarefa à maneira leninista, isto é, liquidando-a de uma vez por todas.

Em 27 de outubro de 1914, Lênin escreveu a A. Shliápnikov:

“Odeio e desprezo Kautsky agora mais do que a qualquer outro, com sua vil, suja e auto-satisfeita hipocrisia… Rosa Luxemburgo tinha razão quando escreveu, há muito tempo, que Kautsky possui a ‘subserviência de um teórico’ – servilidade, em linguagem mais clara, servilidade à maioria do partido, ao oportunismo” (Antologia Leninista, vol. 2, p.200, ênfase minha) [ibid., vol. 35, 27 de outubro de 1914].

Mesmo que não houvesse outros documentos – e existem centenas – essas poucas linhas, por si sós, poderiam esclarecer de maneira inconfundível a história da questão. Lênin julgou necessário, no fim de 1914, informar a um de seus colegas mais próximos na época que “agora”, no momento presente, hoje, em contraste com o passado, ele “odeia e despreza” Kautsky. A contundência da frase é uma indicação inequívoca da medida em que Kautsky traiu as esperanças e expectativas de Lênin. Não menos vívida é a segunda frase: “Rosa Luxemburgo tinha razão quando escreveu, há muito tempo, que Kautsky possui a ‘subserviência de um teórico’…” Lênin apressa-se aqui a reconhecer essa “verdade” que antes não via, ou que, ao menos, não reconhecia plenamente no lado de Rosa Luxemburgo.

Eis, portanto, os principais marcos cronológicos da questão, que são ao mesmo tempo importantes marcos da biografia política de Lênin. É indubitável o fato de que sua órbita ideológica é representada por uma curva em ascensão contínua. Mas isso significa apenas que Lênin não nasceu pronto e acabado como “o Lênin” que os bajuladores lambuzados do “divino” pintam, mas que ele fez-se Lênin. Lênin ampliava constantemente seus horizontes, aprendia com os outros e diariamente se elevava a um plano mais alto do que o seu próprio ontem. Nessa perseverança, nessa resolução obstinada de um crescimento espiritual contínuo sobre si mesmo é que seu espírito heroico encontrou expressão. Se Lênin em 1903 já tivesse compreendido e formulado tudo o que era requerido para os tempos vindouros, o resto de sua vida teria consistido apenas em repetições. Na realidade, esse não foi o caso. Stalin simplesmente imprime a marca stalinista em Lênin e o reduz a trocados miúdos de adágios numerados.

Na luta de Rosa Luxemburgo contra Kautsky, especialmente entre 1910–14, um lugar importante foi ocupado pelas questões da guerra, do militarismo e do pacifismo. Kautsky defendia o programa reformista: limitação de armamentos, tribunal internacional etc. Rosa Luxemburgo combatia decisivamente esse programa como ilusório. Sobre essa questão, Lênin tinha algumas dúvidas, mas em certo período esteve mais próximo de Kautsky do que de Rosa Luxemburgo. De conversas da época com Lênin recordo que o seguinte argumento de Kautsky lhe causava grande impressão: assim como nas questões internas as reformas são produtos da luta de classes revolucionária, também nas relações internacionais é possível lutar por e obter certas garantias (“reformas”) por meio da luta de classes internacional. Lênin considerava inteiramente possível apoiar essa posição de Kautsky, desde que ele, após a polêmica com Rosa Luxemburgo, se voltasse contra os direitistas (Noske e cia.). Não me arrisco agora a afirmar de memória até que ponto esse círculo de ideias encontrou expressão nos artigos de Lênin; a questão exigiria uma análise particularmente cuidadosa. Tampouco posso afirmar de memória quão cedo as dúvidas de Lênin sobre essa questão foram resolvidas. Em todo caso, elas se expressaram não apenas em conversas, mas também em correspondência. Uma dessas cartas está em posse de Karl Radek.

Considero necessário fornecer, sobre essa questão, evidência como testemunha, a fim de tentar, dessa maneira, salvar um documento excepcionalmente valioso para a biografia teórica de Lênin. No outono de 1926, na época de nosso trabalho coletivo sobre a plataforma da Oposição de Esquerda, Radek mostrou a Kamenev, Zinoviev e a mim — provavelmente também a outros camaradas — uma carta de Lênin a ele (1911?) que consistia em uma defesa da posição de Kautsky contra a crítica da Esquerda alemã. De acordo com o regulamento aprovado pelo Comitê Central, Radek, como todos os demais, deveria ter entregue essa carta ao Instituto Lênin. Mas, temendo que fosse ocultada, senão destruída, na fábrica stalinista de falsificações, Radek decidiu preservá-la até um momento mais oportuno. Não se pode negar que havia algum fundamento na atitude de Radek. No presente, no entanto, o próprio Radek tem desempenhado — embora não de maneira muito responsável — ainda assim uma parte bastante ativa no trabalho de produção de falsificações políticas. Basta recordar que Radek, que ao contrário de Stalin conhece a história do marxismo, e que, em todo caso, conhece essa carta de Lênin, achou possível fazer uma declaração pública de solidariedade com a insolente avaliação que Stalin fez de Rosa Luxemburgo. O fato de que Radek tenha agido então sob o chicote de Yaroslavski não atenua sua culpa, pois apenas escravos vis podem renunciar aos princípios do marxismo em nome dos princípios do chicote.

Lênin ampliava constantemente seus horizontes, aprendia com os outros e diariamente se elevava a um plano mais alto do que o seu próprio ontem

No entanto, o assunto que nos concerne não é a caracterização pessoal de Radek, mas o destino da carta de Lênin. O que aconteceu com ela? Radek a esconde até hoje do Instituto Lênin? Improvável. Mais provavelmente, confiou-a onde deveria confiar, como prova tangível de uma devoção intangível. E que destino teve a carta depois disso? Está preservada nos arquivos pessoais de Stalin ao lado de documentos que comprometem seus colegas mais próximos? Ou foi destruída, como tantos outros documentos preciosíssimos do passado do partido foram destruídos?

Em todo caso, não pode haver sequer a sombra de uma razão política para o ocultamento de uma carta escrita duas décadas atrás sobre uma questão que hoje possui apenas interesse histórico. Mas é precisamente o valor histórico da carta que é excepcionalmente grande. Ela mostra Lênin tal como ele realmente era, e não como está sendo recriado à sua semelhança e imagem pelos burocratas cabeças-duras que fingem infalibilidade. Perguntamos: onde está a carta de Lênin a Radek? A carta de Lênin deve estar onde lhe é devido! Coloquem-na sobre a mesa do partido e da Internacional Comunista!

Se se tomarem as divergências entre Lênin e Rosa Luxemburgo em sua totalidade, então a correção histórica está incondicionalmente do lado de Lênin. Mas isso não exclui o fato de que, em certas questões e durante determinados períodos, Rosa Luxemburgo estava correta contra Lênin. Em todo caso, as divergências, apesar de sua importância e por vezes de sua extrema agudeza, desenvolveram-se sobre a base de políticas proletárias revolucionárias comuns a ambos.

Quando Lênin, voltando ao passado, escreveu em outubro de 1919 (“Saudações aos comunistas italianos, franceses e alemães”) que “… no momento de tomar o poder e estabelecer a república soviética, o bolchevismo estava unido; atraiu a si tudo o que havia de melhor nas tendências do pensamento socialista afins a ele …” [ibid., vol. 30, 10 de outubro de 1919], repito, quando Lênin escreveu isso ele tinha, sem dúvida, em mente também a tendência de Rosa Luxemburgo, cujos partidários mais próximos, por exemplo, Marchlewski, Dzerjinski e outros, passaram a trabalhar nas fileiras bolcheviques.

Lênin compreendeu os erros de Rosa Luxemburgo de modo mais profundo do que Stalin; mas não foi por acaso que certa vez Lênin citou o velho dístico em relação a Luxemburgo:

“Embora as águias se lancem e abaixo das galinhas voem
galinhas de asas abertas jamais irão pairar entre nuvens no céu.”

Exatamente o caso! Exatamente o ponto! Por essa mesma razão Stalin deveria proceder com cautela antes de empregar sua mediocridade maldosa quando a questão toca figuras da estatura de Rosa Luxemburgo.

Em seu artigo “Uma Contribuição à História da Questão da Ditadura” (outubro de 1920), Lênin, tratando das questões do Estado soviético e da ditadura do proletariado já colocadas pela revolução de 1905, escreveu: “Enquanto representantes tão destacados do proletariado revolucionário e do marxismo não falsificado como Rosa Luxemburgo imediatamente compreenderam o significado dessa experiência prática e a analisaram criticamente em reuniões e na imprensa”, ao contrário, “… pessoas do tipo dos futuros ‘kautskistas’ … mostraram-se absolutamente incapazes de apreender o significado dessa experiência …” [ibid., vol. 31, 20 de outubro de 1920]. Em poucas linhas, Lênin presta plenamente o tributo de reconhecimento ao significado histórico da luta de Rosa Luxemburgo contra Kautsky — uma luta que o próprio Lênin estivera longe de avaliar de imediato em seu devido valor. Se para Stalin, aliado de Chiang Kai-shek, e camarada de armas de Purcell, o teórico do “partido operário-camponês”, da “ditadura democrática”, de “não antagonizar a burguesia” etc. — se para ele Rosa Luxemburgo é a representante do centrismo, para Lênin ela é a representante do “marxismo não falsificado”. O que essa designação significa, vinda da pena de Lênin, é claro para qualquer um que esteja ao menos minimamente familiarizado com Lênin.

Aproveito a ocasião para assinalar aqui que, nas notas às obras de Lênin, diz-se, entre outras coisas, o seguinte sobre Rosa Luxemburgo:

“Durante o florescimento do revisionismo bernsteiniano e, mais tarde, do ministerialismo (Millerand), Luxemburgo levou contra essa tendência uma luta decisiva, colocando-se na ala esquerda do partido alemão…. Em 1907 participou como delegada do Partido Social-Democrata da Polônia e da Lituânia no congresso de Londres do POSDR, apoiando a fração bolchevique em todas as questões fundamentais da revolução russa. A partir de 1907, Luxemburgo dedicou-se inteiramente ao trabalho na Alemanha, assumindo uma posição radical de esquerda e levando adiante a luta contra o centro e a ala direita… Sua participação na insurreição de janeiro de 1919 fez de seu nome a bandeira da revolução proletária.

Naturalmente, o autor dessas notas, muito provavelmente, amanhã confessará seus pecados e anunciará que, na época de Lênin, escrevia em estado de trevas, e que alcançou plena iluminação apenas na época de Stalin. No momento presente, anúncios desse tipo — combinações de bajulação, idiotice e palhaçada — são feitos diariamente na imprensa de Moscou. Mas eles não mudam a natureza das coisas: o que uma vez está posto em preto no branco, nem machado corta nem força apaga. Sim, Rosa Luxemburgo tornou-se a bandeira da revolução proletária!

Mas como e por quê, afinal, Stalin de repente se ocupou — tão tardiamente — com a revisão da antiga avaliação bolchevique de Rosa Luxemburgo? Tal como aconteceu com todos os seus abortos teóricos precedentes, assim também com este último, e o mais escandaloso, a origem está na lógica de sua luta contra a teoria da revolução permanente. Nesse artigo “histórico”, Stalin volta a dar o lugar central a essa teoria. Não há uma única palavra nova no que ele diz. Já respondi há muito a todos os seus argumentos em meu livro “A Revolução Permanente”. Do ponto de vista histórico, a questão será suficientemente esclarecida, creio eu, no segundo volume de “A História da Revolução Russa (A Revolução de Outubro)”, que está no prelo. No caso presente, a questão da revolução permanente nos interessa apenas na medida em que Stalin a vincula ao nome de Rosa Luxemburgo. Veremos em seguida como o infeliz teórico conseguiu armar para si mesmo uma armadilha mortal.

Depois de recapitular a controvérsia entre mencheviques e bolcheviques sobre a questão das forças motrizes da revolução russa e depois de comprimir magistralmente uma série de erros em poucas linhas, que sou obrigado a deixar sem exame, Stalin escreve:

“Qual foi a atitude dos social-democratas de esquerda alemães, de Parvus e Rosa Luxemburgo, em relação a essa controvérsia? Eles inventaram um esquema utópico e semimenchevique da revolução permanente… Subsequentemente, esse esquema semimenchevique da revolução permanente foi apropriado por Trotsky (em parte por Martov) e transformado em uma arma de luta contra o leninismo.”

Eis aí a inesperada história da origem da teoria da revolução permanente, de acordo com as últimas pesquisas históricas de Stalin. Mas, infelimzente, o investigador esqueceu de consultar seus próprios trabalhos eruditos anteriores. Em 1925, esse mesmo Stalin já se havia pronunciado sobre a questão em sua polêmica contra Radek. Eis o que escreveu então:

Não é verdade que a teoria da revolução permanente… tenha sido apresentada em 1905 por Rosa Luxemburgo e Trotsky. Na realidade, essa teoria foi apresentada por Parvus e Trotsky.”

Essa afirmação pode ser consultada na página 185 de “Problemas do Leninismo”, edição russa de 1926. Esperemos que figure em todas as edições estrangeiras.

Assim, em 1925, Stalin declarou Rosa Luxemburgo inocente da comissão de pecado tão capital como o de participar na criação da teoria da revolução permanente. “Na realidade, essa teoria foi apresentada por Parvus e Trotsky.” Em 1931, somos informados pelo mesmo Stalin que foram precisamente “Parvus e Rosa Luxemburgo… os que inventaram um esquema utópico e semimenchevique da revolução permanente.” Quanto a Trotsky, ele era inocente da criação da teoria; apenas a teria “apropriado”, e ao mesmo tempo com… Martov! Mais uma vez Stalin é apanhado com a boca na botija. Talvez escreva sobre questões das quais não entende absolutamente nada. Ou estará conscientemente embaralhando cartas marcadas no jogo com as questões fundamentais do marxismo? É incorreto colocar a questão como uma alternativa. Na realidade, ambas as coisas são verdade. As falsificações stalinistas são conscientes na medida em que são ditadas, em cada momento, por interesses pessoais inteiramente concretos. Ao mesmo tempo, são semiconscientes, na medida em que sua ignorância congênita não impõe qualquer freio às suas propensões “teóricas”.

Mas os fatos permanecem fatos. Em sua guerra contra o “contrabando trotskista”, Stalin encontrou um novo inimigo pessoal: Rosa Luxemburgo! Não hesitou um momento sequer antes de mentir sobre ela e vilipendiá-la; e mais ainda, antes de pôr em circulação suas doses gigantescas de vulgaridade e deslealdade, nem sequer se deu ao trabalho de verificar o que ele mesmo havia dito sobre o mesmo assunto seis anos antes.

A nova variante da história das ideias da revolução permanente foi ditada, antes de tudo, pela ânsia de fornecer um prato mais picante do que todos os precedentes. É desnecessário explicar que Martov foi arrastado pelos cabelos em nome de uma maior “picância” da culinária teórica e histórica. A atitude de Martov frente à teoria e prática da revolução permanente foi de antagonismo inalterável, e nos velhos tempos enfatizava mais de uma vez que as concepções de Trotsky sobre a revolução eram rejeitadas tanto pelos bolcheviques quanto pelos mencheviques. Mas não vale a pena deter-se nisso.

O que é verdadeiramente fatal é que não existe uma única questão maior da revolução proletária internacional sobre a qual Stalin não tenha conseguido expressar duas opiniões diretamente contraditórias. Todos sabemos que em abril de 1924 ele demonstrou conclusivamente, em “Problemas do Leninismo”, a impossibilidade de construir o socialismo em um só país. No outono, em nova edição do livro, substituiu essa demonstração por uma prova — isto é, uma proclamação nua e crua — de que o proletariado “pode e deve” construir o socialismo em um só país. Todo o resto do texto permaneceu inalterado. Sobre a questão do partido operário-camponês, das negociações de Brest-Litovsk, da direção da Revolução de Outubro, da questão nacional etc., etc., Stalin conseguiu apresentar, num espaço de alguns anos, às vezes de alguns meses, opiniões mutuamente excludentes. Seria incorreto atribuir tudo isso a uma má memória. A questão vai mais fundo. Stalin carece completamente de qualquer método de pensamento científico, não possui critérios de princípios. Aborda cada questão como se ela tivesse nascido apenas hoje e estivesse separada de todas as demais. Suas sentenças dependem inteiramente de qualquer interesse pessoal que lhe seja mais premente e urgente no momento. As contradições que o condenam são a vingança direta de seu empirismo vulgar. Rosa Luxemburgo não lhe aparece na perspectiva do movimento operário alemão, polonês e internacional do último meio século. Não, para ele ela é, cada vez, uma figura nova e, além disso, isolada, sobre a qual é compelido, em cada nova situação, a perguntar a si mesmo: “Quem vem aí, amigo ou inimigo?” O instinto infalível sussurrou desta vez ao teórico do socialismo em um só país que a sombra de Rosa Luxemburgo lhe é irreconciliavelmente hostil. Mas isso não impede que essa grande sombra continue sendo a bandeira da revolução proletária internacional.

Rosa Luxemburgo criticou muito severa e fundamentalmente — e incorretamente — as políticas dos bolcheviques em 1918, de sua cela de prisão. Mas mesmo nesse seu trabalho mais errôneo, podem-se ver suas asas de águia. Eis sua avaliação geral da insurreição de Outubro:

“Tudo o que um partido poderia oferecer de coragem, de visão revolucionária e de consistência em uma hora histórica, Lênin, Trotsky e os outros camaradas deram em boa medida. Toda a honra revolucionária e a capacidade que faltavam à social-democracia do Ocidente estavam representadas pelos bolcheviques. Sua insurreição de Outubro não foi apenas a salvação efetiva da Revolução Russa; foi também a salvação da honra do socialismo internacional.”

Pode essa ser a voz do centrismo?

Nas páginas seguintes, Luxemburgo submete a severa crítica as políticas dos bolcheviques na esfera agrária, seu slogan da autodeterminação nacional e sua rejeição da democracia formal. Nessa crítica, podemos acrescentar, dirigida igualmente contra Lênin e Trotsky, ela não faz absolutamente nenhuma distinção entre suas posições; e Rosa Luxemburgo sabia ler, entender e captar nuances. Não lhe ocorreu sequer, por exemplo, acusar-me do fato de que, ao estar solidário com Lênin na questão agrária, eu teria mudado minhas concepções sobre o campesinato. E ademais, ela conhecia essas concepções muito bem, já que eu as havia desenvolvido em detalhe em 1909 em sua revista polonesa. Rosa Luxemburgo encerra sua crítica com a exigência de que “na política dos bolcheviques o essencial deve ser distinguido do acidental, o fundamental do acessório.” O fundamental, para ela, é a força da ação das massas, a vontade para o socialismo. “Nisso,” escreve, “Lênin e Trotsky e seus amigos foram os primeiros, os que avançaram como exemplo ao proletariado do mundo; são ainda os únicos até agora que podem gritar com Hutten: ‘Ousei!’”

Sim, Stalin tem motivos suficientes para odiar Rosa Luxemburgo. Mas tanto mais imperiosa, portanto, se torna a nossa tarefa de resguardar a memória de Rosa da calúnia de Stalin, que foi apanhada pelos funcionários contratados de ambos os hemisférios, e de transmitir às jovens gerações do proletariado essa imagem verdadeiramente bela, heroica e trágica em toda a sua grandeza e força inspiradora.

TRADUÇÃO DE JESSICA STOLFI