Editorial da 29ª Edição do jornal Tempo de Revolução. Faça sua assinatura agora! Apoie a imprensa operária e independente.
Entre analistas burgueses e da esquerda oficial brasileira, predomina a ideia de que as “Jornadas de Junho de 2013” produziram o bolsonarismo. Para os marxistas, que compreendem a sociedade dividida em classes com interesses antagônicos, é possível concordar com essa ideia? A quem ela serve?
Há dez anos, nos primeiros meses de 2013, analisando a situação política mundial e nacional, a Esquerda Marxista constatou que uma explosão social estava em preparação no Brasil. Contra os prognósticos dos principais analistas burgueses, de que países como Turquia e Brasil eram modelos de estabilidade a serem seguidos naquele momento, os marxistas constatavam que as contradições acumuladas sob a superfície levariam a uma mudança abrupta de qualidade na situação, e que a onda de explosões políticas e sociais que vinha abalando o mundo após a crise econômica de 2008 fatalmente chegaria a países como Brasil e Turquia.
Não havia como prever qual seria a gota d’água que faria o copo transbordar, mas sabíamos que o copo estava cheio. Por isso, em seu congresso de abril de 2013, a Esquerda Marxista decidiu por lançar em 1° de maio daquele ano um novo órgão de imprensa semanal, o boletim “Foice & Martelo”. Sua periodicidade semanal – em contraste com o jornal mensal “Luta de Classes”, editado pela Esquerda Marxista até então – buscava armar os militantes para atuarem de maneira mais veloz diante dos acontecimentos, justamente por conta da perspectiva de que se aproximava uma explosão e aceleração da luta de classes.
Em maio de 2013 as massas tomaram as ruas da Turquia, surpreendendo a todos. Em junho foi a vez do Brasil.
Embora muitos digam que ninguém pôde prever junho de 2013, não foi bem assim, pois análises da Esquerda Marxista em relação aos movimentos que pouco antes haviam conseguido impor a revogação do aumento das tarifas do transporte público, em Porto Alegre e Teresina, davam indícios. Diante disto, no início de maio de 2013 a Esquerda Marxista chamou o Movimento Passe Livre (MPL) para dialogar. Na reunião bilateral com o MPL de São Paulo, explicamos que a sociedade brasileira estava à beira de uma explosão social, e que, diferente das mobilizações contra o aumento das tarifas de anos anteriores, daquela vez seria possível vencer. Para tal, apelamos ao MPL que eram necessários dois encaminhamentos: primeiro, deveria ser formada uma coordenação ampla do movimento, composta por todas as organizações, entidades e agentes políticos que estivessem contra o aumento, e que esta coordenação se utilizasse dos métodos organizativos próprios da classe trabalhadora (carros de som, assembleias com votação etc.). O segundo encaminhamento era que os atos fossem convocados para maio, antes do aumento das tarifas anunciado para 1° de junho. Infelizmente, o MPL se recusou a aceitar nossas duas propostas.
Diante disto, no final de maio de 2013 convocamos as primeiras manifestações contra o aumento das tarifas em São Paulo, dando o pontapé inicial ao movimento. O MPL foi convidado, mas decidiu não participar. Quando o movimento inundou as ruas, os métodos errados usados pelo MPL contribuíram para que sua direção se perdesse, a ponto de o próprio MPL ter se visto obrigado a retirar-se de uma manifestação realizada no dia 20 de junho, na Avenida Paulista, que havia sido empalmada pela extrema-direita com a ajuda da Polícia Militar.
Mas afinal, o que foi Junho de 2013?
Do final de maio até metade de junho, as manifestações contra o aumento das tarifas do transporte ocorreram em São Paulo mais ou menos como em anos anteriores, embora consideravelmente mais volumosas. A repressão brutal da Polícia Militar paulista sobre manifestantes, transeuntes, moradores e profissionais da imprensa na manifestação de 13 de junho foi a gota d’água que fez o copo transbordar. E quando o copo transborda, tudo o que estava acumulado e encheu o copo nos últimos anos começa a vir à tona, fazendo com que a última gota d’água deixe de ser a mais importante. As tarifas foram reduzidas, mas as pessoas continuaram saindo às ruas. Do dia para a noite, tudo se tornou urgente. De repente, quem nunca em sua vida havia participado de uma manifestação saiu às ruas querendo mudar o país, mudar o mundo. Milhões de pessoas foram às ruas nos dias e nas semanas seguintes, em centenas de cidades do Brasil.
O despertar de parcelas das massas para as ruas deve sempre ser visto com bons olhos pelos militantes revolucionários. Mas é preciso compreender: o copo transbordou em um momento de despolitização; não foi resultado de um processo de construção política da nossa classe do período anterior. Pelo contrário, os que saíram às ruas para expressar sua indignação eram, em sua maioria, jovens vítimas de um processo de enorme retrocesso político impulsionado principalmente pela política de colaboração de classes levada a cabo nos anos anteriores pelo PT, que havia chegado ao governo aliando-se a inimigos históricos da classe trabalhadora.
Uma vez que esses governos de coalizão entre o Partido dos Trabalhadores e a burguesia deram sustentação aos velhos políticos de sempre, pois resumiam o debate eleitoral entre candidatos do PT e da oposição de direita – sem se diferenciarem politicamente – a quem administrava melhor o aparelho de Estado; uma vez que os governos do PT aplicaram a política do imperialismo, recebendo os senhores da guerra, Bush e Obama, de braços abertos; ficava difícil cobrar das massas um elevado nível de consciência de classe. Como exigir daqueles que saíram às ruas em junho de 2013 que diferenciassem o PT do PSDB?
Vale lembrar que a repressão brutal da PM aos manifestantes de junho foi comandada pelo então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, na ocasião do PSDB, mas teve o apoio do petista Fernando Haddad, que era o prefeito da capital paulista, e do ministro da Justiça de Dilma, José Eduardo Cardoso.
O clima nas manifestações era de “fora todos”, mas longe de ter algo a apresentar para colocar no lugar, proporcionando à burguesia um terreno fértil para trabalhar para manipular uma parcela dos manifestantes. A responsabilidade disso foi, em parte, do MPL, que escolhido pela imprensa burguesa que percebeu sua inconsistência, como a “liderança” do movimento teve nas mãos a possibilidade de dirigir o movimento de massas. Mas, não esteve à altura da tarefa exatamente por sua política e seus métodos. Até Dilma em pânico “elegeu” o MPL como a “liderança” do movimento, inclusive levando-os a Brasília para “negociar”. Mas, a maior responsabilidade é do PT! A história nos diz: a política de colaboração de classes, em última instância, conduz ao fascismo.
A imprensa burguesa jogou fundo para despolitizar e bloquear as palavras de ordem militantes da esquerda. A juventude que saiu às ruas em junho de 2013 não era “fascista” ou “de direita”, como alguns analistas da esquerda oficial tentam demonstrar. Grupelhos de extrema-direita intervieram nas manifestações, todos vimos. Mas, este não era o caso da massa de jovens. No fundo, os jovens que estavam a participar pela primeira vez de manifestações políticas queriam ter mais acesso aos serviços públicos: queriam saúde, educação, transporte, lazer. E querer isso não significa ser “de direita”; pelo contrário: são de esquerda (ainda que eles próprios não soubessem disso)! Mesmo que naquele momento a maior parte destes jovens não tivesse a compreensão de que é o sistema capitalista que os impede de ter acesso a tudo isso; afinal, a ideologia predominante na sociedade é a ideologia da classe dominante.
Eles concluíram que para defender seus interesses não poderiam deixar as coisas para os políticos, mas deveriam agir por si mesmos. Isso mostra um instinto revolucionário correto. Aqueles que menosprezam o movimento como “meramente espontâneo” mostram sua ignorância sobre a essência de uma revolução que é, precisamente, a intervenção direta das massas na política. Essa espontaneidade tem uma força enorme, mas em certo ponto pode tornar-se uma fraqueza fatal ao movimento.
Geralmente o movimento de massas é marcado por confusões em seu estágio inicial, e é apenas através da experiência prática da luta que as massas podem superar suas fragilidades. Mas para que tenham sucesso, é absolutamente necessário passar pela confusão e pela ingenuidade iniciais, pois com isso é possível crescer, amadurecer e chegar às conclusões corretas. A consciência da juventude estava em disputa em junho de 2013 e está em disputa até hoje.
Herdeiros de junho?
Junho de 2013 abriu uma situação política completamente nova no Brasil. Até aquele momento, a burguesia nacional e o imperialismo toleravam o PT no governo em coalizão com partidos burgueses. E essa tolerância se dava porque o PT prometia garantir paz social através do controle do movimento operário e social, para que os capitalistas seguissem saqueando o país e explorando os trabalhadores. Junho de 2013 mostrou que o PT não era mais capaz de garantir coisa alguma. A classe trabalhadora e a juventude nas ruas não podiam ser controladas pelos mecanismos que o PT dominava, e isso fortaleceu os setores mais antipetistas da burguesia.
O pacto que possibilitou a nova república nascida do fim da ditadura militar ruiu.
A burguesia, sempre temerosa em relação às massas, ficou apavorada com as massas de junho, com as casas legislativas atacadas e incendiadas, com os parlamentares fugindo pelos fundos. Depois da burguesia agitar por todos os meios as pautas anticorrupção entre os manifestantes, o Poder Judiciário respondeu às ruas de junho com a Operação Lava-Jato.
A Operação deflagrada em 2014 foi a resposta de um setor da burguesia e do imperialismo às ruas de junho. O impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro como principal líder do movimento anti-Lula e anti-PT são consequências não de junho de 2013, mas da reação da burguesia a junho de 2013.
Portanto, só podemos afirmar que o bolsonarismo de massas teve sua origem com as Jornadas de Junho de 2013 se o fizermos de maneira dialética, pois foi consequência não como sua continuidade, mas como sua negação.
A continuidade de junho de 2013 e sua verdadeira herança pôde ser vista no aumento do número de greves nos anos seguintes, no movimento de ocupações de escolas pelos estudantes, no movimento pelo Fora Temer e depois pelo Fora Bolsonaro, apesar de todo esforço dos aparatos de direções e organizações da classe trabalhadora para conter esses movimentos.
Junho de 2013 abriu uma nova situação, que encontrou inclusive expressão eleitoral, com o aumento das votações nas candidaturas do PSOL e um derretimento eleitoral do PT e de partidos burgueses mais tradicionais, como o PSDB.
É fato que a extrema-direita também cresceu eleitoralmente. Mas isso não foi consequência direta das ruas de junho, e sim da reação burguesa às ruas de junho, que fortaleceu a polarização política. Mas a extrema-direita teria conseguido crescer sem a ajuda da polícia, dos infiltrados, de toda a imprensa e da burguesia que buscou criminalizar o PT?
E, mais importante, esta mesma extrema-direita teria conseguido crescer se a esquerda oficial tivesse se colocado ao lado das ruas de junho?
A resposta do governo Dilma às ruas de junho foi a proposta de uma “Constituinte por uma reforma política”. Ou seja, mudar algo no sistema para preservá-lo. Mas o que as ruas queriam era derrubar o sistema. Já a direção do PSOL, à medida em que o apoio eleitoral ao partido foi crescendo, buscou se mostrar cada vez mais moderada e apta a participar do sistema.
O sentimento antissistema das ruas de junho acabou encontrando respaldo no discurso demagógico de Bolsonaro. Menos por mérito deste e mais como resultado das escolhas erradas da esquerda oficial e da esquerda que tinha potencial para substituí-la.
Na era inaugurada por Junho de 2013, passada uma década, o povo trabalhador brasileiro carece de uma direção revolucionária de esquerda. Lula e Alckmin tentam se apresentar como os salvadores da República burguesa. A direção do PSOL cada vez mais submete o partido ao governo de coalizão. A oposição bolsonarista tende a se beneficiar da ausência de uma oposição de esquerda ao governo.
Hoje, construir a direção revolucionária do proletariado brasileiro é a tarefa central dos marxistas. Isso passa também pelo combate para que o PSOL mantenha sua independência frente ao governo. Mas, principalmente, passa por ajudar as novas gerações da classe trabalhadora a se organizarem e lutarem por suas reivindicações. Outros junhos virão, não necessariamente no mesmo mês.