Uma síntese da humanidade: Engels e “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”

Friedrich Engels fora conhecido nas fileiras do movimento operário como “O professor do proletariado” por suas contribuições substanciais para o materialismo histórico-dialético. Elas permitiram e continuarão possibilitando o desvelamento da realidade ocultada pela ideologia das classes dominantes, como faz o livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, responsável por apresentar sempre às novas gerações como se desenvolveu pilares da humanidade e as opressões geradas pelas mesmas. Assim, este artigo tem o intuito de introduzir a obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, escrita por Friedrich Engels em 1884.

Com o livro podemos nos apropriar integralmente de uma concepção materialista sobre a história, o desenvolvimento das primeiras sociedades, no qual lemos que são a produção e reprodução da vida nos meios de existência humana os fatores decisivos para nossa espécie. Ou seja, aprendemos que as fases de desenvolvimento humano acompanham os progressos obtidos na produção dos meios de existência.

Aqui, apresentaremos as seguintes sequências temáticas: os “estágios pré-históricos da cultura”, a família, o Estado e algumas reflexões possíveis sobre e a partir da obra de Engels.

Os “Estágios Pré-Históricos de Cultura”

O primeiro capítulo desta referência bibliográfica marxista é intitulado “Estágios Pré-Históricos de Cultura”. Nele, Engels busca uma síntese didática sobre o desenvolvimento do trabalho e os processos de organizações sociais empreendidas pelos humanos. 

Todos podem recordar-se de suas aulas de História no 1° ano do Ensino Médio nas quais, por exemplo, os professores tentam cumprir o currículo – destruído pela contrarreforma do Novo Ensino Médio – dizendo quanto ao surgimento e os primeiros humanos, povos e civilizações. Um conteúdo intrigante, porém, muitas vezes lecionado como um viés que retira do Trabalho a fundamental relevância para tais longos e árduos processos históricos. Já Engels, para o arrepio pós-moderno e acadêmico, consegue extrair e expor com uma didática exemplar esses momentos da vida humana. 

O Paleolítico, período normalmente datado de 4 milhões a 8 mil de anos atrás, é cunhado como o Estado Selvagem do humano. Neste momento, predomina a apropriação daquilo que há na natureza, pronto para ser utilizado, passando por produções artificiais do homem destinadas a facilitar tal apropriação. Quer dizer que seus primeiros instrumentos, suas confecções, derivaram de madeira, ossos, chifres e pedras.

O Neolítico, período que ocorreu de 8 mil a 4 mil anos, foi então a Barbárie humana. Nela, a criação animal, o desenvolvimento da agricultura, o incremento mais refinado da produção, a partir da natureza, ao trabalho humano foram elementos cruciais para a evolução. A pedra polida é, certamente, um salto gigantesco para a humanidade, aprimorando o corte à caça, produção e alimentação.

Mesmo na escola já nos surpreendemos com o quão recente é o que podemos caracterizar como civilização, ou a Era da Metalurgia. Esse período que passa a ser alcançado a partir de 4 mil anos inaugura as primeiras sociedades urbanas do Oriente Próximo, que começaram a desenvolver a metalurgia, ou seja, a utilização sistemática de metais para a fabricação de objetos. A produção de cobre passou a ser feita em larga escala, acrescentada, posteriormente, pela liga entre cobre e estanho geradora do bronze. 

Fora o bronze o responsável pela fabricação de instrumentos como espadas, lanças e martelos, aumentando também o poder bélico das novas sociedades, instituidoras da propriedade – logo, de suas proteções e expansões coercitivas. Já o ferro surge por volta de 1,5 mil anos a.C. contribuindo também para o aumento produtivo agrícola e do artesanato. Além destes fatores, é por volta dos 4 mil anos que uma das invenções mais elementares para a sociedade desenvolve-se, a escrita alfabética! Engels afirma a relevância desta ampliação e complexificação humana a partir dos produtos naturais, tal como da arte escalada pela humanidade.

Seria inevitável alguns trechos de Engels serem superados por pesquisas ulteriores, pois é justamente isto a ciência materialista. Alguns que podemos apontar diz sobre o fogo não ter sido usado no que o revolucionário chama de “fase média da selvageria”, mas já utilizado intencionalmente antes, sem ter também uma relação direta com o consumo de peixes, como supunha. Assim como a domesticação animal no Oriente ter sido contemporânea ao cultivo de plantas e não anterior. Engels também erra ao categorizar a civilização Inca como pertencente à fase média da Barbárie no momento da invasão europeia na América. Porém, sem equívocos, a apreciação geral de Engels demonstrou-se capaz de descrever os estágios fundamentais da evolução cultural humana.

A Família

No segundo capítulo de “A Origem da Família…”, Engels se preocupa em destruir mitos, ritos e sonhos, ao menos os da tradicional família burguesa, uma longa dança teatral, romântica e trágica. Com base nos estudos de Lewis Morgan (1818-1881) sobre os iroqueses (nativos da América do Norte), identificou os momentos dos estágios evolutivos e as condições que permitiram a transformação dos primatas em Homo Sapiens. Também caracterizou os sistemas de parentesco e formas de matrimônio que levaram à formação da Família, descrevendo as suas fases, bem como os modelos criados ao longo do processo de desenvolvimento humano. 

Para Engels, na passagem da selvageria para a Barbárie, ao final do “comunismo primitivo”, a humanidade fez nascer a opressão de classe com o advento da propriedade privada. Não somente outros homens transformados em escravos, mas, essencialmente, a opressão feminina com a violenta subordinação da mulher ao direito paterno com o intuito de garantir a transmissão de sua linhagem e propriedade.

Também aponta para a invenção do incesto como passo decisivo na organização da família propriamente dita. Porém, neste estágio primitivo, as relações carnais eram reguladas por uma promiscuidade tolerante ao comércio sexual entre pais e filhos e entre pessoas de diferentes gerações, não havendo ainda as barreiras impostas pela cultura nem relações de matrimônio ou descendência organizadas de acordo com sistemas de parentesco culturalmente definidos. Por isso, ainda não seria possível falar em família nesse período.

Citando diretamente o antropólogo evolucionista Morgan, aos três estágios pré-históricos de cultura correspondem, por sua vez, a três modelos de família: 

I – A Família Consanguínea: expressão do primeiro progresso na constituição da família, excluia pais e filhos de relações sexuais mútuas. Porém, davam-se, necessariamente, na transformação de irmãos e irmãs em marido e mulher, revelando que a reprodução da família se dava através de relações carnais bilaterais e endógenas.

II – As Famílias Panaluana e Sindiásmica (que significa união entre dois indivíduos): nesta, foram excluídas as relações carnais entre irmãos e irmãs, criando a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, manifestando-se como um tipo de matrimônio por grupos. Com este modelo, são instituídas as gens, um círculo fechado de parentes consanguíneos por linha feminina, que não se podem casar uns com os outros. Tais relações consolidavam-se por meio de instituições comuns, social e religiosa, que o diferenciava-as das outras gens da mesma tribo. 

As proibições em relação ao casamento tornaram cada vez mais inviáveis as uniões por grupos, substituídas pela Família Sindiásmica. Nesta, já se observava o matrimônio por pares, embora a poligamia e a infidelidade permanecessem como um direito dos homens. Das mulheres exige-se agora rigorosa fidelidade, sendo o adultério cruelmente castigado. Entretanto, ainda se considera a linhagem feminina, o que garante o direito materno em caso de dissolução do matrimônio.

III – A Família Monogâmica: para Engels, a família sindiásmica permitirá o desdobramento até a Família Monogâmica. Anteriormente, predomina o que podemos chamar de “economia doméstica comunista”, na qual há certa hegemonia da mulher dentro da gens, mesmo que já existisse a divisão sexual do trabalho como primeira forma de divisão do trabalho.

Entretanto, quanto mais as relações perdiam seu caráter primitivo por força do desenvolvimento das condições econômicas, tanto mais opressivas as relações se tornaram para as mulheres. Reforçando: para elas estava reservado o papel do matrimônio com um só homem, renunciando às disposições derivadas do matrimônio por grupos, o que ao homem nunca foi legalmente proibido, como para as mulheres.

Assim, da mesma forma que o matrimônio por grupos é o símbolo do estado Selvagem, a família sindiásmica é o da Barbárie e a monogamia da Civilização. Mas foi preciso que as mulheres efetuassem a passagem ao casamento sindiásmico para que os homens introduzissem a rígida monogamia, com efeito, somente para as mulheres. 

Isso foi possível porque no matrimônio sindiásmico, além da verdadeira mãe, passa a existir a figura do verdadeiro pai, que se torna o proprietário, não só da sua força de trabalho, mas dos meios de produção e dos escravos. À medida que a posição do homem ganhou mais importância em função do aumento das riquezas, tal vantagem passa a interferir na ordem da herança e da hereditariedade, provocando a abolição do direito materno em substituição à filiação masculina e ao direito hereditário paterno.

Foram os romanos a designar o termo “família” para este inédito organismo social onde o chefe masculino controla a mulher, os filhos e os escravos. Surge o patriarcado, o poder concentrado dos homens demarcando a passagem da família sindiásmica à monogamia, entre a fase média e superior da barbárie, como aponta Engels. Cabe apenas ao homem a possibilidade de romper os laços do matrimônio, bem como o exclusivo direito à traição. Isto evidencia o porquê de Engels considerar a monogamia como a escravidão de um sexo pelo outro, ou, parafraseando-o, o homem o burguês, a mulher o proletário. É a forma celular da sociedade civilizada. 

A monogamia é apresentada como resultado de condições econômicas, uma conquista da propriedade privada superando a propriedade comum primitiva. A antiga liberdade sexual não deixou de existir com o matrimônio sindiásmico nem com a monogamia, mas agora possui proprietário, quem pode praticá-lo: o dono, o homem.

Em alguns trechos, Engels relembra a expressão de Morgan sobre as relações extraconjugais de homens com mulheres solteiras, o Heterismo. Essas relações floresceriam como nos diversos períodos da Civilização até o ponto de tornar-se prostituição, além, evidentemente, do próprio adultério. Estava condenada a liberdade feminina dos ultrapassados matrimônios por grupos.

Entendemos que essa compreensão do surgimento material da opressão às mulheres refuta as interpretações liberais e conservadoras que reputam a misoginia e o machismo a um suposto fundamento biológico, como Stuart Mill defendia ser pela “força física” dos homens.

Por isso, Engels afirma que o matrimônio só poderá se realizar com uma real liberdade quando forem suprimidas as condições de propriedade e, em nosso tempo, a produção capitalista. Então, o matrimônio já não teria outra motivação determinante que não uma mútua inclinação afetuosa, o amor.

O Estado

Em “O Estado e a Revolução”, escrito por Vladimir Lênin em 1918, podemos compreender que o Estado possui a ilusória função de mediar as contradições das sociedades de classes, mas que seu caráter é, essencialmente, garantir as necessidades das classes dominantes. Seu destacamento armado assegura os interesses dos exploradores contra os explorados, como a Polícia Militar, no Brasil. 

O revolucionário russo não retira essa explicação do mundo das ideias, mas da história e da fonte crucial que é esta obra de Engels. Nas seções dedicadas ao Estado, vemos que, assim como a família e as classes, essa “entidade”, como gostava de acreditar Thomas Hobbes, não são eternos. Não há nada abstrato nas relações sociais, como a “natureza humana”, a “competição”, o “patriotismo”, a “monogamia”. 

Assim como Lênin entendeu, Engels explicou que o Estado foi criado para assegurar a propriedade da terra, a principal forma de riqueza conhecida até o aparecimento do capitalismo. Essa propriedade seria uma resposta à “escassez”. Mas a desigualdade de riquezas é decorrente da divisão social do trabalho, do surgimento da moeda e da usura, capazes de proporcionar a concentração da propriedade do solo em poucas mãos, as quais passaram a exercer um controle cada vez maior sobre os meios de produção. Surgiram então os grandes latifúndios, a hipoteca, a disponibilidade dos bens imóveis…

Novamente, a utilização da força militar independente, impondo seu poder coercitivo exógeno à massa de escravizados, com exceções, como alguns destes cativos na Grécia Antiga que cumpriam a função repressora, foi nevrálgica para a constituição do Estado. Suas funções de controle social possibilitaram a arrecadação de tributos, a formação de uma camada que os administrava, uma burocracia superior às demais pessoas. 

Essa concepção aprofundada na obra de Engels não deixa margem para qualquer deturpação do marxismo e do horizonte comunista. Nossa luta deve ser incessante contra o Estado e uma burocracia privilegiada, controladora das forças de repressão e de saque das riquezas sociais. Para Engels, só poderemos falar de liberdade quando o Estado, esse leviatã histórico, deixar de existir como tal, podendo, toda a organização da sociedade, esta sim livre e dos trabalhadores, ser chamada de “comunidade”.

Leia Engels

Todos esses pontos aqui comentados de forma introdutória de “A Origem da família, da propriedade privada e do Estado” buscam apenas expressar como este é um livro rico de ideias teóricas e de consequências políticas práticas. Não se trata de uma obra acadêmica, em que a teoria ocupa um lugar confortável de pretensa reflexão científica pura e neutra. Ao contrário, faz parte da concepção de que a ciência e a filosofia devem servir à ação humana, à compreensão para a transformação da realidade.

Leia Engels, forme-se no marxismo e lute conosco pela revolução, no Brasil e no mundo!