“(…) a luta revolucionária não é a luta entre o capitalismo e o Espírito, mas entre o capitalismo e o proletariado” (Benjamin).
“Compreendi que a solidão não existe para nós quando a pessoa que amamos também está só, embora se encontre em um lugar diferente onde não podemos alcançá-la (…)” (Benjamin).
Benjamin foi um pensador heterodoxo cujas ideias foram ao mesmo tempo intensamente debatidas e interpretadas de uma forma que, desde nossa ótica, o próprio Benjamin rechaçaria. De origem judaica e dotado de uma notável cultura, começa como crítico e teórico da arte com raízes religiosas e românticas (seus primeiros textos expressam uma mística artístico-religiosa) e de inspiração kantiana, para se orientar, progressivamente, à esquerda; adotando, primeiro, um tipo de anarquismo teológico e, depois, um marxismo sui generis.
Trata-se mais de um intelectual e crítico da arte que de um militante ou teórico revolucionário. Ele próprio dizia que seu comunismo “não é mais que a expressão de certas experiências que tive em meu pensamento e na minha existência”.[1] No corpo de sua obra os textos sobre crítica literária são predominantes e pelos quais foi mais conhecido em sua vida. Nasceu no seio de uma família judia de banqueiros ricos, mas administrou mal sua fortuna e terminou em meio a dificuldades econômicas. Sua formação intelectual foi muito influenciada pelo Talmude e por um misticismo que nunca abandonou. Depois de iniciada a Primeira Guerra Mundial tornou-se pacifista de esquerda. A ideologia de sua juventude, como crítico literário e tradutor de autores como Marcel Proust e Charles Baudelaire, se baseava na tese de que “o homem se comunica na linguagem e não pela linguagem”. Uma posição inteiramente pós-moderna e idealista muito comum entre os círculos de críticos literários e da burguesia acadêmica que vive das palavras, de sua interpretação e entre a infinita discussão dos temas mais refinados e inalcançáveis. Mas a evolução intelectual retratada em seus textos, com toda a sua heterodoxia, vai evoluir para um marxismo muito pessoal, próprio de um intelectual pequeno-burguês saído dos círculos boêmios que vão se aproximando do marxismo. Isso fica particularmente claro em “O autor como produtor” e em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. No entanto, a pós-modernidade não reivindica essas obras, e sim suas “Teses sobre História”, que foram interpretadas como uma rejeição à visão marxista da história e à ideia de progresso em geral – não só a versão liberal, como também a posição de Marx a respeito. De fato, na atualidade, Benjamin é conhecido quase exclusivamente pelas “Teses sobre história”, quando estas eram uma coleção de comentários que anotou no final de sua vida em sua fuga dos nazistas e que não estavam destinadas à sua publicação tal como se encontravam.
O “marxismo” de Benjamin resultou de um processo eclético. O início de sua radicalização política pode ser visto em seu texto “Para uma crítica da violência” (1921), onde Benjamin defende a palavra de ordem de uma “greve geral insurrecional” como manifestação de uma “violência divina” teologicamente justificada. Depois, em 1924, visita a Itália fascista onde conhece a bolchevique e intelectual Asja Lacis e o intelectual marxista Ernst Bloch. Se excetuarmos “O autor como produtor”, onde Benjamin desenvolve ideias marxistas mais ortodoxas, ele combinava com frequência, na forma de “mosaicos” fragmentários, muitas vezes obscuros, as metáforas teológicas de um misticismo judeu, o materialismo histórico e a crítica de arte. Trata-se de uma interpretação muito pessoal de Marx que liga elementos contraditórios, como a água e o azeite. Benjamin é um autor que se encontrava em processo de evolução para a esquerda, processo interrompido por sua morte trágica, e nos parece que seu pensamento deve ser avaliado em sua dinâmica. Para muitos, Benjamin está a meio caminho entre a Escola de Frankfurt e um marxismo militante (valha a redundância). No entanto, sem negar as contradições de seu pensamento, é de nossa opinião que Benjamin, em seus anos de maturidade intelectual, se encontrava mais próximo do marxismo revolucionário que da pós-modernidade na qual frequentemente é inscrito.
Embora próximo a Horkheimer e Adorno, fundadores da Escola de Frankfurt, os quais lhe dariam apoio financeiro, não se considerou nunca membro dessa tendência. Quando se leem textos como “O autor como produtor” e “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, não é difícil saber a razão: Benjamin sustenta nestes textos um marxismo militante, ativo; fala do potencial revolucionário dos trabalhadores, defende com Brecht – amigo próximo de Benjamin – a favor de uma atitude ativa dentro dos círculos intelectuais, clama abertamente pela adesão à causa do proletariado; com isso, só poderia colidir com uma escola que falava do fim do potencial revolucionário do proletariado e cujas aspirações eram puramente especulativas. As diferenças podem se resumir na seguinte tese de Benjamin: “(…) a luta revolucionária não é a luta entre o capitalismo e o Espírito, mas entre o capitalismo e o proletariado”. [2] Essa é a atitude militante que se expressa também em um texto de Brecht:
“Então, de que serve dizer a verdade sobre o fascismo – que é condenado – se não se diz nada contra o capitalismo que o origina? Uma verdade deste tipo não tem utilidade prática. Estar contra o fascismo sem estar contra o capitalismo, rebelar-se contra a barbárie que nasce da barbárie equivale a reclamar uma parte do bezerro e se opor a sacrificá-lo”. [3]
Esse ímpeto ativo, impulsionado por sua visita a Moscou e por seu contato com os meios oposicionistas da intelectualidade na URSS, o leva a coincidir com algumas teses trotskistas no terreno da arte e a reivindicar, pelo menos parcialmente, a figura de Leon Trotsky frente à contrarrevolução stalinista, e a de Rosa Luxemburgo frente ao reformismo e à traição da socialdemocracia alemã.
É verdade que alguns fragmentos das Teses sobre história, escritos pouco antes de se suicidar em sua fuga do terror nazista, parecem retratar um autor que se aproxima do pensamento pós-moderno. O caráter contraditório dessas teses, que eram apenas reflexões íntimas e não um manifesto teórico, expressam tanto ideias próprias da fuga desesperada de um pensador sensível, como também outras onde apela à revolução. Vamos nos concentrar, no final deste ensaio, na crítica dessas teses porque são as ideias que mais foram retomadas desse intelectual de esquerda, sobretudo pela pós-modernidade. Antes, analisaremos algumas das obras de Benjamin que foram deixadas na obscuridade pela maioria de seus intérpretes. Não pretendemos estar de acordo com todas as ideias de Benjamin, nem mesmo aquelas das quais pretende levantar ideias marxistas; nossa intenção é discutir suas teses para aprofundar em alguns temas e abordar finalmente uma crítica às interpretações pós-modernas de um pensador que reivindicava Trotsky e Rosa Luxemburgo.
Benjamin, Moscou e a oposição antistalinista
O Diário de Moscou recolhe as impressões da visita de Walter Benjamin a Moscou entre 6 de dezembro de 1926 até o final de janeiro de 1927. Não se trata, propriamente, de um diário político, teórico ou ideológico; mas sim de impressões ao estilo jornalístico sobre a vida cotidiana em Moscou; mostram a fina atenção de Benjamin pelos detalhes da vida diária: pitorescos retratos das ruas de Moscou, do clima glacial, da arquitetura das ruas e catedrais (a de São Basílio, por exemplo), a comida típica, os produtos artesanais disponíveis nas prateleiras e nos mercados ao ar livre (as típicas “matrioskas”), a mendicância nas ruas, a falta de moradias, a forma de se vestir dos moscovitas etc. Em geral, trata-se do diário de um viajante boêmio e intelectual: são recorrentes os relatos sobre as visitas ao teatro, ao cinema, aos museus, às partidas de dominó e xadrez, à redação de artigos e, sobretudo, aos lances amorosos e flertes com Asja Lacis e a rivalidade oculta com Bernard Reich – parceiro sentimental de Asja naqueles tempos; ambos anfitriões de Benjamin em Moscou e ambos pertencentes à Intelligentsia próxima aos bolcheviques e, em especial, à oposição antistalinista (trotskista ou zinovievista). O triângulo amoroso é digno de um drama romântico desinteressante por si mesmo, se não fosse por estar salpicado de interessantes observações sobre a realidade na Rússia daqueles tempos.
A visita de Benjamin a Moscou teve vários objetivos: a redação de artigos jornalísticos para um jornal alemão (“Die Kreatur”) e, também, para a Enciclopédia Soviética Oficial (um artigo e uma exposição sobre Goethe, além de um projeto sobre uma “Enciclopédia materialista”) [4], estreitar laços com as organizações culturais russas VAPP (projeto frustrado pela evidente ascensão do burocratismo totalitário); conhecer de primeira mão a situação na Rússia pós-revolucionária, e, sobretudo, a julgar pelo diário em questão, reconquistar seu grande amor Asja Lacis (artista e revolucionária a quem havia conhecido em 1924); e escapar, de passagem, do espírito natalino capitalista. Como se vê, a visita de Benjamin não tem grandes pretensões e seu diário está escrito para ninguém mais além dele mesmo.
No entanto, para o nosso tema, esse diário é valioso porque, além de estar salpicado de interessantes reflexões, de polêmicas sobre o materialismo histórico, sobre Bukharin, Plekhanov, Proust etc., e de ser um documento interessante sobre a vida cotidiana durante a ascensão do stalinismo expressa, em diversos episódios notáveis, o processo de burocratização, sua influência venenosa na arte, o ambiente nascente de perseguição, deportação e antissemitismo e, sobretudo, a influência de Trotsky no entorno imediato de Benjamin. Ademais, oferece um testemunho do processo de reflexão e crítica de Benjamin que o aproximaria ainda mais do marxismo. Em seu diário são mencionados artistas destacados que já começavam a sofrer a censura stalinista. Em seus relatos semijornalísticos desfilam criadores como o cineasta Eisenstein, os escritores de obras teatrais Stanislavsky e Meyerhold (deportado em 1937, morto em um campo de concentração); o célebre poeta Maiakovski (empurrado ao suicídio em 1931) e o poeta trotskista Lélevich. Seu diário não dá respostas políticas aos problemas que detecta, mas faz uma descrição da enfermidade que seria “dissecada” e “diagnosticada” por Trotsky em sua obra “A revolução traída”. É evidente que Benjamin repelia o stalinismo e sentia simpatias pelos revolucionários da “etapa heroica” da revolução.
Nesse ponto, salta à vista uma confluência superficial, mas não menos marcante, entre Benjamin e Trotsky: como aquele, Trotsky podia ser um agudo e penetrante observador de seu entorno cotidiano. Embora a escrita intimista e impressionista não fosse nunca o estilo literário com o qual se recorda ao dirigente revolucionário, a leitura de seu “Diário no Exílio” e suas impressões fragmentárias de sua passagem pela Espanha em 1916 [5], antes de ser deportado aos EUA, são uma mostra disso. Assim, por exemplo, de sua passagem por San Sebastián ficam as seguintes impressões que citamos como amostra: “Um mar severo, mas sem malícias; gaivotas, espuma, ar, espaço. O mar, com seu aspecto cativante, parece indicar que o homem nasceu para ser contrabandista; mas que circunstâncias acidentais o impediram de seguir o seu destino”.[6] Por outro lado, os livros da Biblioteca Central de Cádiz lhe confirmam o passado medieval da Espanha, pois “(…) seu exterior testemunha que há muito não foram folheados pela mão do homem (…) Foi aqui onde, pela primeira vez, tive o prazer de me convencer de que a traça não é um bichinho imaginário. (…) A maioria dos grandes volumes, editados em papel de linho antigo e excelente, estão metodicamente trabalhados pela traça erudita, a quem os habitantes de Cádiz deixaram um tempo bastante longo em seu labor (…) Os vestígios cilíndrico, desenhando linhas quebradas, ora sobem ora descem (…) Este trabalho esquenta o crânio do leitor com enigmas, particularmente quando a traça levou um algarismo ou uma parte de um nome próprio”.[7] Talvez se trate de traços superficiais e fugazes, mas não por isso deixam de ter sua suculência. Sem dúvida se trata de um gênero literário que tem seus encantos, sobretudo quando mostram outra faceta da sensibilidade de um personagem como Trotsky.[8]
A amada de Benjamin, Asja Lacis, é uma atraente veterana bolchevique, participante da revolução de 1917, foi diretora do teatro letão, assistente de Bertolt Brecht a quem apresentou a Benjamin, foi impulsora vanguardista de teatro para crianças proletárias (no qual promovia a improvisação e a imaginação), fundou, em 1918, um teatro infantil proletário [9] inspirado em Meyerhold e em Maiakovski, deportada por dez anos (1938-1948) a um campo de concentração no Cazaquistão. Bernhard Reich é jornalista, diretor de teatro alemão, seguidor de Kamenev na época em que este havia formado, junto com Zinoviev, a Oposição Unificada liderada por Trotsky. O fantasma da caça às bruxas anti-trotskista está muito presente no diário de Benjamin. É mencionada a morte de Mikhail Frunze [10] que, muito provavelmente, foi uma das primeiras vítimas mortais de Stalin (morreu em 1925 obrigado pelo partido a realizar uma cirurgia que lhe custaria a vida. Se colocarmos de lado o próprio Lenin, que provavelmente foi envenenado por Stalin [11], seria sua primeira vítima mortal). Na época em que Benjamin escreveu seu diário, as deportações em massa haviam começado; entre 1926 e 1928, milhares de pessoas foram enviadas ao exílio siberiano [12]. Trotsky foi afastado de suas responsabilidades em 1926, expulso do partido (junto com a oposição que liderava) em 1927 e banido para Alma Ata em 1928. Em 1928 havia tantos deportados que “(…) Em Moscou só ficaram viúvas”[13]. Em 1929 começam os fuzilamentos. Na época em que Benjamin visita Moscou a oposição unificada liderava comícios públicos que eram silenciados por provocadores e delinquentes enviados pela burocracia.
Benjamin relata que Reich leu para ele e para Asja os últimos discursos de Kamenev, e como Lélevich (seu verdadeiro nome era Gilelevich Kalmanson) se lamenta em uma conversa com Benjamin por não poder comparecer ao discurso que Trotsky daria na Comintern a favor de Zinoviev.[14] Benjamin menciona, como de passagem, uma entrevista com Olga Kameneva [15] – irmã de Trotsky e esposa de Kamenev –, que naquele momento trabalhava como funcionária da “União das Sociedades Soviéticas de Amizade e Relações Culturais com outros países”, seguramente a entrevista teve como tema tarefas tais como conferências e artigos; se a entrevista versou também sobre a oposição a Stalin é coisa que não se menciona em seu diário. Benjamim relata a conversa com um diretor de teatro, Bela Ilesh (escritor húngaro), que havia participado com Trotsky da batalha que derrotou o general branco Wrangel durante um dos episódios mais dramáticos da guerra civil no entanto, o regime o “degradou” convertendo-o de maneira forçada em diretor de teatro.[16] Em algumas partes do diário, Benjamin conta, aparentemente sem sequer percebê-lo, sobre a repressão que a própria Asja Lacis estava sofrendo nas mãos dos gendarmes stalinistas da arte – a julgar por seu diário, Benjamin parece estar mais preocupado com as mudanças de humor de Asja, que ele interpretava como menosprezo aos seus flertes, do que com o assédio a que ela estava sendo submetida. Asja era convocada a reuniões com um obscuro censor stalinista (um tal de Knorin) que parecia seguir seus passos provocando-lhe angústia e nervosismo.[17] Benjamin foi testemunha de como, já então, os oradores da Oposição eram silenciados nos eventos oficiais [18] e menciona as deportações de opositores desde a estação ferroviária de Yaroslavsky em Moscou.
É extremamente interessante a troca ponderada de opiniões de Benjamin com o oposicionista Reich; em suas conversas se desenham claramente muitas das características centrais da contrarrevolução política impulsionada por Stalin: o dogmatismo transformado em palavra de ordem em vez da crítica revolucionária, a “normalização” com o mundo capitalista (produto da “teoria” antimarxista do socialismo em um só país) e a asfixia dos comunistas no interior da Rússia, a desigualdade crescente como produto da NEP, os novos ricos que começam a emergir de suas tocas com suas elegantes roupas. Em suma, expressam-se em seus agudos comentários o processo de questionamento e efervescência dos setores mais vivos e sãos da sociedade russa contra a burocracia e a desigualdade, a crítica subterrânea e sufocada, mas não menos existente, em que se apoiava a oposição trotskista na URSS. Os debates de Benjamin com Reich são o tipo de discussões que ocorreram anos depois nos campos de concentração stalinistas, mediante uma acalorada correspondência entre diferentes regiões de deportados e em “escolas de formação” [19] improvisadas nesses campos de extermínio, polêmica com a qual a Oposição de Esquerda, já sem Kamenev e Zinoviev, que se inclinaram ante Stalin, elaborava seu programa e suas palavras de ordem. Benjamin expõe algumas de suas conclusões:
“Nas conversas com Reich venho expressando as disparidades que apresenta atualmente a situação russa. Com o exterior, o governo busca a paz para assinar tratados comerciais com os países imperialistas; mas, acima de tudo, trata de suspender no interior a atividade do comunismo militante, empenhando-se em lograr uma paz social a prazo fixo, em despolitizar a vida burguesa na medida do possível. Por outro lado, nas associações de pioneiros, no Komsomol, se dá à juventude uma educação “revolucionária”. O que significa que o revolucionário não lhes chega como experiência, mas na forma de palavras de ordem. Tenta-se suprimir a dinâmica do processo revolucionário dentro da vida estatal: querendo ou sem querer, foi reiniciada a restauração”. [20]
Para Trotsky, a burocracia bonapartista que “sugava” a força vital da revolução era um regime contraditório a meio caminho da “restauração” capitalista e do socialismo. Trotsky assinalaria posteriormente, em “A Revolução Traída”, que, se a classe trabalhadora não derrubasse politicamente a burocracia, esta preferiria se converter em capitalista antes de entregar o poder aos trabalhadores, aos que havia expropriado politicamente. Na época em que Benjamin escreveu a citação anterior, a Oposição ainda lutava dentro do partido pela reforma ou pelo regresso às ideias originais do bolchevismo. Mas a aguda reflexão de Benjamin era precisamente o tipo de discussões que ocorriam nas fileiras “trotskistas”. Broué cita a carta de um deportado que exemplifica o tipo de debates que animavam os campos de concentração nos anos 1930:
“(…) Quanta diversidade de opiniões, quanta liberdade em cada artigo! Quanta paixão e quanta franqueza na exposição de questões não só abstratas, como também em tudo aquilo que tocava a mais ardente atualidade! Podemos reformar o regime por vias pacíficas ou será necessário um levantamento armado, uma nova revolução? É Stalin um traidor de modo consciente (…) Sua política é reacionária ou contrarrevolucionária? (…) Os autores assinam com seu próprio nome”. [21]
Suas conversas no entorno que o receberia na Rússia – os círculos culturais e artísticos opostos ao stalinismo, muitos deles trotskistas que seriam desterrados e enviados a campos de concentração – versavam muito frequentemente sobre temas políticos, sobre a influência da burocracia na arte, sobre dialética e materialismo etc. Se bem que Benjamin se refira às vezes aos revolucionários com os quais discute como “fanáticos” [22], é claro que suas simpatias estão próximas a eles (Benjamin se qualifica já marxista) e muito longe do stalinismo que asfixia a criação cultural.
Sua rejeição ao stalinismo foi a razão pela qual Benjamin não ingressaria no Partido Comunista Alemão, mas provavelmente existiram razões de índole pessoal: nas páginas de seu diário se manifesta o debate íntimo de Benjamin sobre o seu ingresso no Partido e suas dúvidas, próprias da pequena burguesia de esquerda: sacrificar sua liberdade pessoal a uma burocracia? Entrar temporariamente e “experimentar”? Pode-se ser “independente” da organização proletária sem se passar para o lado da burguesia? Pode-se buscar o “proveito pessoal” sem se passar para o lado dos exploradores? Como se colocar do lado do proletariado sem se submeter a uma estrutura partidária? Como ser materialista dialético sem renunciar a um estilo de vida? [23]
Se bem que seus comentários sobre os bolcheviques (incluída Asja Lacis, seu amor platônico) denotem o travo do ceticismo de um simpatizante pequeno-burguês, é evidente que Benjamin está em um processo de reflexão que o levará a se aproximar, em seu regresso à Europa, de alguns textos de Trotsky e a manter a ideia de que o marxismo é estéril sem uma militância ativa. Esse ponto o separaria definitivamente – no terreno político – dos fundadores da Escola de Frankfurt – seus amigos – que mantinham uma cômoda posição contemplativa, puramente especulativa e de aberto desdém aos trabalhadores.
Benjamin foi, talvez, o único que, em 1929, nos marcos do ataque e do silenciamento da oposição na URSS, ainda considerava possível citar Trotsky a propósito do surrealismo, como autoridade no terreno da política com os artistas ou reivindicar em seus diários suas leituras de “Minha Vida” ou “Aonde vai a Inglaterra?” [24]
Em seu retorno à Alemanha, Benjamin mostrará abertamente suas simpatias por Trotsky. Em uma conversa entre amigos em 1927, depois de uma apresentação em Berli – episódio relatado por Soma Morgenstern – Benjamin se coloca do lado dos que defendem Trotsky frente à figura de Stalin reivindicada por Brecht e outros:
No transcurso da noite (…) a conversa se tornou séria. O nome de Trotsky foi a causa (…) a discussão sobre este assunto dividiu o grupo. Brecht, junto a Klabund e esposa, estavam totalmente do lado de Stalin. Hardt e eu defendemos ciosamente a Trotsky. Quanto a Benjamin, uniu-se a nós (…) Enquanto Lenin viveu, Stalin era um homem de terceira categoria, no máximo. Que ele, comparado a Trotsky, que era então a glória da revolução triunfante, tivesse peso para se colocar contra Trotsky, que ele, um homem cauteloso, tenha se animado a fazê-lo, e que se tenha imposto, é uma prova de que o clima no país já se encontrava como se o partido se posicionasse por trás de Stalin e que um Stalin pudesse expulsar Trotsky da Rússia. Com este argumento, ganhei a ajuda de Benjamin e de Hardt, mas não ganhei a discussão. Porque as discussões – como o vi depois em Hollywood – são ganhas sempre por Bertolt Brecht (sic) e o fazia pondo-se a gritar, e o que não lhe cabia não era nada relevante”. [25]
Sobre sua aproximação e amizade, durante os anos 1930, a Bertolt Brecht – poeta e militante comunista – versariam as diferenças e desacordos com Theodor Adorno (um dos fundadores da Escola de Frankfurt). Efetivamente, Benjamin e Brecht pretendem lançar uma revista com o título “Krise und Kritik” (Crise e Crítica) com a qual aspiravam intervir dentro da intelectualidade radical defendendo, de uma perspectiva marxista, uma posição militante frente aos problemas de crise social, artística e cultural.[26] Chama a atenção as similaridades entre o projeto – nunca realizado – de Benjamin e Brecht e o Manifesto por uma arte proletária independente, projetado por Trotsky, Breton e Rivera – tampouco realizado depois do assassinato de Trotsky. Em ambos se apela aos intelectuais e criadores a se organizarem para lutar contra a ordem capitalista e o fascismo, pela independência criadora da arte frente a toda tentativa de dominá-la. Da mesma forma, Benjamin, em sua obra “O autor como produtor”, se pronuncia pela união entre a arte e a vida, projeto oposto à lógica do sistema capitalista e que lembra muito as opiniões de Trotsky sobre a reconciliação entre a arte e a vida, bem como a defesa das vanguardas russas que já começavam a ser sufocadas por Stalin.
O autor como produtor
“(…) a luta revolucionária não é a luta entre o capitalismo e o Espírito, mas entre o capitalismo e o proletariado” (Benjamin)
Este notável ensaio não dá lugar a dúvidas sobre a aproximação de Benjamin às ideias de Marx. Em nossa opinião, implica um salto do ceticismo de um simpatizante a um marxismo muito radicalizado, próprio de um recém-converso, inclusive até com excessos “ultraesquerdistas”. O texto é uma exposição do tema que Benjamin oferece em abril de 1934 no “Instituto para o estudo do fascismo de Paris”, onde exorta os artistas a se opor ao fascismo por meio da revolução. Todo o texto tem como leitmotiv justificar uma arte de tendência cujo “fio político condutor” seja a luta pelo socialismo, do ponto de vista do proletariado. A tese central do texto tenta se apoiar em uma análise materialista das relações sociais de produção para determinar o lugar do artista no processo de luta pela transformação da realidade, bem como a relação entre o conteúdo e a forma na arte revolucionária; acima de tudo, a relação do criador com seus meios de produção artísticos.
De acordo com Benjamin, se a revolução socialista implica a liquidação da forma clássica de produzir, a transformação que a revolução exige da arte implica que o autor se veja a si mesmo como um produtor, não só de objetos artísticos, mas de novas técnicas e meios produtivos para a arte. Não se deve trabalhar só sobre o produto, mas sobre os meios de produção. Somente isso poderá impedir que a transformação interna do artista, que pretende se unir à causa proletária, permaneça no mundo interno do autor e não transcenda mais além da produção de simples meios de consumo assimiláveis pela moda capitalista. O intelectual revolucionário deve trair suas origens de classe burguesas:
“Esta traição consiste, no caso do escritor, em um comportamento que o transforme, de abastecedor do aparato de produção, em engenheiro dedicado a adaptá-lo aos fins da revolução proletária. (…) Consegue impulsionar a socialização dos meios de produção intelectual? Descobre procedimentos para organizar os trabalhadores intelectuais no próprio processo de produção? Tem sugestões para a refuncionalização da novela, do drama, da poesia? Quanto melhor consiga canalizar sua atividade nestas tarefas, mais correta será a tendência e mais alta será, necessariamente, a qualidade técnica de seu trabalho. E, por outro lado, enquanto mais preciso seja o seu conhecimento do lugar que ocupa no processo de produção, menor será a tendência de se fazer passar por um ‘homem de espírito'”. [27]
Sem dúvida, as ideias de Benjamin a esse respeito estavam permeadas fortemente pelas vanguardas russas. A exigência de Benjamin de se concentrar na “literalização de todas as relações vitais” lembra muito as teses de Maiakovski sobre “fundir a arte à vida do povo” e a de “transformar a vida” de Tatlin.
Junto às influência vanguardistas, deve-se assinalar que Benjamin parece compartilhar as mesmas virtudes e limitações que aquelas. Benjamin cita em seu texto a resposta de René Maublanc quando lhe foi perguntado para quem escrevia. Partamos da contundente resposta para explicar o que, a nosso juízo, constituem as limitações da tese de Benjamin:
“Não cabe dúvida, disse Maublanc, que escrevo quase que exclusivamente para um público burguês. Seja porque estou obrigado a isso, como quando me encarregam de escrever um discurso para a distribuição de prêmios na escola secundária onde sou professor; seja porque, de nascimento burguês, de educação burguesa, de ambiente burguês, me inclino naturalmente por dirigir-me à classe a que pertenço, que melhor conheço e a qual sou quem melhor pode compreender. Isto não quer dizer que escreva para elogiá-la, para lhe dar um gosto ou para sustentá-la. Convencido de que a revolução proletária é necessária e desejável, creio que será tanto mais rápido, fácil e seguro, e tanto menos sangrenta, quanto menor seja a resistência da burguesia… O proletariado necessita hoje de aliados provenientes da burguesia assim como no século XVIII a burguesia necessitou de aliados provenientes da nobreza. Queria ser contado entre eles”. [28]
Na realidade, aos artistas progressistas, oriundos do meio burguês, não se lhes pode exigir muito mais que esta franqueza e seu envolvimento honesto no processo revolucionário desde sua trincheira cultural. Pedir uma arte radicalmente nova, como faz Benjamin, é pedir “laranjas à macieira”. A explicação disso, a nosso ver, se encontra nas críticas que Trotsky fez às vanguardas russas (em particular, ao Proletkult e a Maiakovski). Não é possível uma simultaneidade mecânica entre umas condições objetivas maduras para uma revolução social, a consciência política disso (entre um grupo de políticos ou artistas de vanguarda), e, por outro lado, uma sensibilidade e emoções novas, em um mundo que ainda não mudou os velhos modos de sentir. Se nas revoluções as condições objetivas se chocam contra a consciência das massas, é só porque esta última avança com muletas enquanto aquelas com pernas de pau. Se a consciência é sacudida nas revoluções, as formas inconscientes do sentimento (a base da sensibilidade estética) não se movem na mesma velocidade.
Depois da revolução, as massas pensam diferente; mas, em geral, sentem, amam e choram como antes. A consciência política pode ser revolucionária, mas as formas da sensibilidade, ao estarem enterradas no inconsciente, não podem se transformar mecanicamente ao mesmo ritmo que as condições sociais. Por isso, o apelo de Benjamin de criar, à maneira construtivista, novas formas produtivas para a arte, soa tão utópico, como o eram muitos dos excessos niilistas das vanguardas tão duramente criticadas, tanto por Trotsky quanto por Lenin. Inclusive o anterior é correto, como vimos, no marco de uma revolução socialista triunfante. Benjamin opina que se o autor se vê como produtor evitará criar “igrejinhas” separadas das massas, separadas da transformação da vida. Mas a renúncia às velhas formas de produzir arte, promovida por Benjamin, representa tão somente uma renúncia para o seu círculo intelectual – sua igrejinha – visto que as massas não podem renunciar a algo que, em geral, nunca possuíram e do que devem se apropriar, antes de pensar em uma verdadeira arte nova.
Mais mecânica ainda é a equivalência direta que Benjamin parece estabelecer entre uma nova técnica para a arte como sinônimo de uma arte mais progressista do ponto de vista estético. Esse mecanismo mostra, a nosso ver, as limitações do marxismo de Benjamin (nessa etapa de seu pensamento). Na realidade, como assinala Trotsky, à exceção da arquitetura, a literatura é o ramo da arte que menos relação guarda com a técnica: “um bom poema futurista pode ser escrito a lápis em papel ruim em algum povoado da província de Riazan”, assinalou ele. Na realidade, a qualidade de uma obra artística tem muito mais relação com a expressão estética de emoções sociais do que com a técnica com que se trabalha.
Isso não nega, naturalmente, a tese de Marx sobre o desenvolvimento das forças produtivas e a transformação da superestrutura. Em Grundrisse, Marx explica por que a épica antiga em sua expressão clássica não pode ser produzida em um mundo mecanizado e com arranha-céus, e, ao mesmo tempo, explica que a arte tem sua própria dinâmica. O cinema, a arquitetura, a música, a pintura estão vinculadas às capacidades técnicas de criação, mas essas constituem, apenas, o ponto de partida. A música “disco” não é de maior qualidade que a música romântica ou clássica pelo fato de usar um processador. Em última instância, é verdade que a superestrutura depende do desenvolvimento das forças produtivas, mas se trata de uma tese geral, que implica contradições e retroalimentadores, que não anulam a dinâmica própria da arte. Não existe uma relação direta entre técnica e arte da mesma forma que não existe uma relação direta entre genética e cultura, por mais que os seres humanos tenhamos genes.
Por outro lado, a tese de Benjamin, segundo a qual a tendência política implica uma tendência literária e, ao mesmo tempo, que a fidelidade entre ambas justifica a qualidade artística de uma obra, representa um axioma formal muito duvidoso. Na Revolução Russa existiram poetas improvisados que deduziram seus versos quase diretamente do marxismo e da luta de classes, mas isso não assegurava de forma alguma a qualidade artística de suas obras. Frente a essas era, em 99% dos casos, preferível que os trabalhadores lessem ao burguês Molière que aos torpes versos “proletários” de algum autor improvisado. Do ponto de vista político, o marxismo é superior ao pensamento burguês, mas, do ponto de vista estético, um bom marxista pode ser um péssimo artista. No político, os trabalhadores já têm a Marx, mas no artístico necessitam se apropriar de Balzac por mais que o pensamento deste tenha sido conservador. Não se exclui, naturalmente, a existência de obras de tendência (socialista) com qualidade artística notável. Sem dúvida, a poesia de Maiakovski era de tendência, mas antes de tudo tinha qualidade estética; o mesmo se pode dizer da obra de Diego Rivera. A música e poesia de Silvio Rodríguez é bela porque expressa poeticamente a Revolução Cubana e o amor, não pelo simples fato de ser revolucionária; para isso, já temos o pensamento marxista. A arte deve ser julgada em sua própria dinâmica, nas leis que ela própria se impôs. O autor, efetivamente, não cria na estratosfera e, portanto, expressa sentimentos, ideias e aspirações de classe; mas essas não constituem o critério central para se avaliar sua obra de um ponto de vista estético. A coisa muda, naturalmente, se pretendermos fazer uma análise histórica e social de um artista e sua obra, o que é legítimo e necessário. Só há que se tomar cuidado para não se confundir os planos, uma confusão frequente nas análises “marxistas” sobre a arte.
Não obstante o exposto, Benjamin compartilha, naturalmente, das virtudes das vanguardas artísticas revolucionárias: em primeiro lugar, sua franca oposição ao capitalismo e sua entrega consciente (pelo menos no plano teórico) à causa revolucionária. Do anterior, deriva sua obsessão pela experimentação, sua rejeição a formas e conteúdos ossificados que sobrevivem a si mesmos, sua preocupação com a vinculação entre a arte e a vida. Nessa via as coincidências com Trotsky aparecem, talvez, com mais relevo que as discrepâncias. Trotsky defendia, também, pela fusão da arte com a vida, só que Trotsky advertia que essa fusão não é automática e requer premissas materiais, adverte que na primeira etapa da revolução o papel progressista da arte não consiste em criar uma “arte proletária”, mas em ser absorvida como cultura geral pelo povo. A insistência de Benjamin em que o autor é um produtor está, sem dúvida, relacionada à intenção de que os artistas se vejam como parte do proletariado e vinculem sua criação à sua causa. Essa interpretação do artista, embora com mais cores propagandísticas do que teóricas, era uma característica muito saudável das vanguardas e seu ideário político. Assim, por exemplo, a cultura do México popular deve essas ideias a gigantes como Diego Rivera, que fundou, em 1922, junto a David Alfaro Siqueiros [29] e a José Clemente Orozco, o “Sindicato de Pintores e Escultores” que impulsionaria o Muralismo como corrente artística revolucionária, seu impacto foi mundial e suas ideias na arte devem ser lembradas e reivindicadas. As teses do “sindicato” eram da mesma natureza que as ideias de Benjamin: os artistas são trabalhadores, deve-se renunciar à arte do cavalete, a arte deve se associar à vida (os murais), a arte deve ser coletiva, os artistas devem lutar por uma sociedade sem classes e por uma sociedade socialista. [30]
Os defeitos mecanicistas que se podem encontrar em “O autor como produtor” são polidos em sua obra posterior “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, sobretudo no que se refere à dialética entre subjetividade e bases produtivas. O que é certo é que Benjamin matizou posteriormente sua posição linearmente determinista. O anterior se confirma em sua correspondência com Werner Kraft datada de 1938, onde se discute o papel da tradição nos artistas de vanguarda, especialmente na obra de Brecht. Kraft expõe suas dúvidas a Benjamin:
“(…) coloca-se o problema de se o poeta é capaz de criar sem qualquer tradição e contra toda tradição. Ainda não tenho uma resposta satisfatória. Talvez você tenha achado muito revelador para mim que precisamente Trotsky, em seu importante escrito ‘Literatura e Revolução’, pressuponha que é óbvia a conexão correta entre revolução e tradição”. [31]
A essas questões – muito sugestivas quanto à aproximação de Benjamin com Trotsky, pois Kraft remete Benjamin a uma obra familiar da qual este seria um maior conhecedor – Benjamin responde assinalando o seu acordo com Trotsky e explica que Brecht não carece de raízes na tradição, especialmente a poesia popular bávara e o barroco do sul da Alemanha. [32]
A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica
Em seu famoso texto “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (1936), Benjamin realiza um estudo original e audaz sobre os efeitos que sobre a superestrutura artística exerce a infraestrutura econômica do capitalismo. Não se trata mais de um estudo mecanicista, mas de um estudo dialético que compreende as contradições entre uma tecnologia que se desenvolve em ritmo galopante e, por outro lado, a consciência (incluída a estética) lerda e preguiçosa que se arrasta atrás dos acontecimentos e os entende “post festum”. Essa notável tese sobre o desenvolvimento desigual entre o material e o “subjetivo” podes ser encontrada, naturalmente, em Marx e nos escritos de Trotsky (“História da Revolução Russa”). Um dos inconvenientes na compreensão do texto é o estilo extremamente obscuro de Benjamin e a utilização de conceitos teológicos ou místicos (a “Aura”, por exemplo) que podem levar a ambiguidades.
Benjamin aborda as obras artísticas para sublinhar as condições histórico-sociais que incubam seu surgimento e nas quais se forjam as formas de sensibilidade e percepção em que são contempladas. “Dentro de grandes espaços históricos de tempo se modificam, junto com toda a existência das coletividades humanas, o modo e a maneira de sua percepção sensorial. Tais modo e maneira em que essa percepção se organiza, o meio em que acontecem, estão condicionados não só natural como também historicamente”.[33] Trotsky aborda a obra artística a partir de um ângulo similar: “Uma forma artística nova, considerada de um amplo ponto de vista nasce para responder a novas necessidades (…) O poeta pode encontrar o material para sua arte tão só em seu ambiente social e transmitir os novos impulsos da vida por meio de sua particular consciência artística”. Essas coincidências iniciais, bastante sumárias, são a expressão do ponto de vista marxista de ambos. Se as coincidências se baseassem apenas nesse ponto, a poderíamos considerar um truísmo. A coincidência, no entanto, vai mais além: ambos se negam a reduzir a arte a um puro e simples símbolo social.
Benjamin não se contenta em estabelecer os fundamentos sociais da evolução da obra de arte; interessa-se, acima de tudo, por estudar a forma específica como a arte é percebida, ou seja, sua forma peculiar (estética) que faz da arte um produto peculiar. Para se referir a ela Benjamin utiliza o conceito de “Aura”: uma forma específica de apreciação artística nas sociedades pré-capitalistas modelada pela tradição na qual a obra de arte está inserida. A “Aura”, como percepção estética tradicional, está sendo destruída pelas formas de reprodução massiva e em série do capitalismo. Marx havia afirmado em “O Manifesto Comunista” que a produção capitalista destrói o véu de santidade dos produtos mais sublimes, que todo o tradicional é dissolvido no cálculo egoísta e no mesquinho afã de lucro. Benjamin sustenta, igualmente, que todo o contexto sacramental em que a arte era produzida, desde os tempos primitivos – como pensamento mágico – até a arte “transcendental” da Idade Média (as Virgens imaculadas) é profanado pela reprodução em série de mercadorias.
Embora Trotsky não se ocupe do aspecto tradicional da arte pré-capitalista, é marcante a convergência entre Benjamin e Trotsky que consiste em sublinhar a especificidade da obra de arte não só como produto histórico social, mas também como objeto de percepção e de gozo estético. Assim, em polêmicas estabelecidas no Comitê Central, Trotsky enfatizou, frente aos teóricos da arte proletária, a peculiaridade da obra artística. A Raskolnikov recriminou-o que “Nas obras artísticas, ignora precisamente o que faz com que sejam artísticas (…) o que dá valor à Divina Comédia, segundo ele, é que permite compreender a psicologia de uma classe determinada em uma época determinada. Mas propor o problema dessa forma é simplesmente apagar a Divina Comédia do terreno da arte (…) a transforma desse modo imediatamente em um simples documento histórico, visto que, enquanto obra de arte, a Divina Comédia se dirige ao meu próprio espírito, aos meus próprios sentimentos e deve lhes dizer algo”. Trotsky, à sua maneira, identificava muito bem o que Benjamin conceituava com o termo de “Aura” (para esta compreensão, devemos ampliar e forçar o conceito de “Aura” à recepção estética da obra e não tanto sua vinculação com o tradicional).
Benjamin pinta um panorama da história dos meios de reprodução da obra de arte que vai desde a fundição e cunhagem do mundo antigo até a imprensa, a fotografia e ao cinema do mundo capitalista. Não se trata de um anseio romântico pela aura perdida da arte, como um leitor pós-moderno ou romântico pode pensar, mas de um estudo objetivo dos efeitos que têm sobre a obra de arte os meios modernos de sua reprodutibilidade. Efetivamente: os efeitos da técnica sobre a arte transformam o objeto artístico, a percepção artística, trata-se de efeitos revolucionários e potencialmente emancipadores. Nas palavras de Benjamin:
“A técnica reprodutiva desvincula o reproduzido do âmbito da tradição (…) conduz a uma forte comoção do transmitido, a uma comoção da tradição, que é o reverso da crise atual e da renovação da humanidade”. [34]
Não existe um pingo de romantismo por mais que se fale de uma “Aura” em extinção, a análise não é pós-moderna, é marxista.
A dissolução da “Aura”, ao mesmo tempo em que destrói os fundamentos da produção e da contemplação da arte, cria o potencial para uma nova forma de produção e de sensibilidade estéticas, a produção em massa e a contemplação à disposição das massas. Benjamin nos diz que: “A reprodutibilidade técnica da obra artística modifica a relação das massas com a arte. De retrógrada, frente a um Picasso, por exemplo, se transforma em progressiva, por exemplo, frente a um Chaplin. (…) a pretensão por parte da obra de arte de chegar às massas”. [35] Mas Benjamin não percebe o potencial de uma forma reformista, compreende que entre o potencial e o real se levanta a barreira da produção capitalista e a alienação que bloqueiam as novas formas revolucionárias da percepção. A percepção estética das massas está limitada: “A orientação da realidade às massas e destas à realidade é um processo de alcance ilimitado tanto para o pensamento quanto para a contemplação”. Benjamin encontra, à sua maneira, uma contradição que clama por sua resolução: a contradição entre o potencial emancipatório da arte, a possibilidade de uma nova relação estética com o mundo que se trata de realizar e, por outro lado, a impossibilidade de seu nascimento nos limites do capitalismo.
Então, o que palpita na tese de Benjamin é a aspiração de derrubar essas barreiras, de derrubar o capitalismo. Sem dúvida, e teria assinado a seguinte tese programática escrita por Trotsky e Breton, contida no “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”:
“Aquilo que desejamos é:
A independência da arte – pela revolução
A revolução – para a libertação definitiva da arte”.
Essas inspiradoras palavras estão escritas como um apelo aos artistas para que defendam sua atividade frente ascensão do fascismo. A mesma preocupação é a que motiva o texto de Benjamin: a preocupação com a ameaça que paira sobre um dos produtos mais preciosos da humanidade, a arte.
“A guerra imperialista é um levante da técnica, que cobra do material humano as exigências às quais a sociedade subtraiu seu material natural. Em vez de canalizar rios, dirige a corrente humana ao leito de suas trincheiras; em vez de espalhar grão desde seus aeroplanos, espalha bombas incendiárias sobre as cidades; e a guerra química encontrou um novo meio para acabar com a aura.
Sua autoalienação alcançou um grau que lhe permite viver sua própria destruição como um gozo estético de primeira linha. Este é o esteticismo da política pelo que o fascismo propugna. O comunismo lhe responde com a politização da arte.” [36]
A ambos os pensadores os une o apelo militante para enfrentar a decadência do capitalismo (que ameaça destruir a humanidade e a cultura). Esse ponto de convergência, o nó que une as duas reflexões sobre o estético, não pode ser ignorado. A essência revolucionária das reflexões de Benjamin, pelo menos nessa etapa, foi ignorada pela maioria dos comentaristas.
Teses sobre a história
“A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, mas somente do porvir. Não pode começar sua própria tarefa antes de se despojar de toda veneração supersticiosa do passado (…) deve deixar que os mortos enterrem seus mortos, para tomar consciência de seu próprio conteúdo. Ali, a frase transborda o conteúdo; aqui, o conteúdo transborda a frase” (Marx, O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte).
O destino dos pensamentos intimistas de Benjamin, retratados em suas “Teses sobre a História”, foi similar ao destino das reflexões de Gramsci, consignadas nos “Cadernos do Cárcere”: foram a oportunidade para que os políticos e filósofos da Realpolitik e os intelectuais do establishment encontrassem um Benjamin e um Gramsci domesticados pela política do status quo. Em particular, as ‘Teses sobre a História” são interpretadas no sentido oposto ao “espírito” do marxismo. No caso de Gramsci se afirma que os “Cadernos do Cárcere” revelam um político “realista”, estadista, teórico da abstração pura (sociedade civil versus sociedade política), da moderação (própria da esquerda pós-moderna) e da construção de uma “hegemonia” cultural gradualista como substituta de uma prática revolucionária (para que promover uma greve se podemos organizar uma obra teatral?). Um Gramsci diferente do que fundou o PCI, do que editou o “Ordine Nuovo”, do que atuou pela unidade operário-camponesa: diferente do que teorizou sobre a incapacidade da burguesia de tirar a Itália de seu atraso feudal (a “Questão Meridional”) e do que tratou de aplicar as lições da Revolução de Outubro em terras italianas (especialmente no que diz respeito aos “sovietes” italianos: os conselhos de fábrica de Turim). As reflexões de Benjamin, por seu lado, são interpretadas para apresentar um Benjamin pós-moderno de mãos dadas com Heidegger – embora Benjamin sempre tenha desprezado este filósofo, inclusive antes de que se unisse aos nazistas –, com Feyerabend, com Lyotard. Um Benjamin contrário à noção de progresso (particularmente de um conceito de progresso baseado no pensamento de Marx), ao intelecto racional do processo histórico, teórico do pessimismo pós-moderno; enfim, contrário ao materialismo histórico de Marx e às teses, defendidas pelo próprio Benjamin, sobre a necessidade da revolução, expostas em “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” e, sobretudo, em sua obra “O Autor como Produtor”.
A academia burguesa tem um olfato canino para absorver tudo o que é obscuro, ambíguo e confuso, principalmente se provêm de pensadores de esquerda, que possam aportar ferramentas para desviar as massas – seja de forma consciente ou inconsciente – da causa revolucionária. Não são casuais o culto a figuras obscuras e sinistras como Foucault (pederasta cínico), as interpretações reformistas de Gramsci ou contrarrevolucionárias que se fazem do pensamento de Lukács. Joseph Dietzgen afirmou em certa ocasião que a filosofia oficial não era uma ciência, mas uma salvaguarda contra o socialismo. As teses de Benjamin foram muito aproveitadas pela pós-modernidade, pois nelas parecem misturar-se a água e o azeite: o messianismo judeu com o marxismo, uma espécie de misticismo com o materialismo histórico, o desejo da revolução com o desejo de frear o avanço da história, como as de Michael Lowy [37] ou Stefan Gandler, mas as interpretações pós-modernas são as predominantes. Um exemplo “clássico” desse tipo de interpretações é representado por “Meia-noite na História”, de Reyes Mate, uma interpretação debateremos aqui.
E, no entanto, as reflexões de Benjamin, que foram publicadas com o título enganoso, imposto por Theodor Adorno, de “Teses sobre a História”, não foram escritas para propor uma “teoria” da história, mas como impressões sobre a ascensão do fascismo e a traição da socialdemocracia, aforismos que expressavam todo tipo de opiniões mais ou menos desconexas. Começou a escrevê-las no final de 1939, poucos meses antes de sua peregrinação para escapar da França, onde as autoridades estavam entregando os judeus à Gestapo. É um amontoado de pensamentos e reflexões, escritas de forma dispersa nas margens de folhas de papel (inclusive em folhas de jornal) como pensamentos ao voo, enquanto seu autor peregrinava fugindo dos nazistas. Até onde sabemos, não foram pensadas para sua publicação, daí sua natureza dispersa, fragmentária, contraditória, oracular. Parece que Benjamin estava consciente do caráter ambivalente de suas teses e de que estas poderiam gerar confusão, estava consciente de que dá-las a conhecer era como “abrir de par em par as portas à incompreensão entusiasta” [38] no entanto, peregrinou com elas fugindo do fascismo como se fossem sua posse mais preciosa. [39] Embora agudas e interessantes, não têm o objetivo de apresentar uma visão teórica integral e coerente razão pela qual, da mesma forma que uma garrafa vazia, podem ser enchidas com conteúdos de classe contraditórios. O próprio Benjamin as descreveu como “(…) um punhado de ervas colhidas em passeios pensativos” e não como “um conjunto de teses”. [40] Expressam um estado de ânimo próprio de quem foge para salvar sua vida e que será forçado a cometer o suicídio. [41] As “Teses sobre a História” de Benjamin foram publicadas por Theodor Adorno (1942), dois anos depois do suicídio daquele, ainda que não tivessem o objetivo de se dar a conhecer tal e como foram escritas.
É por isso que constitui um abuso escandaloso da academia burguesa apresentar esses pensamentos como o non-plus ultra da teoria histórica e inclusive como uma superação da concepção marxista da história. Mas os autores pós-modernos, como Reyes Mate veem mesmo nelas “o arcabouço teórico para se poder interpretar a história de uma nova maneira e, portanto, o seu tempo e o nosso”. [42] E, no entanto, esse mesmo autor aceita que “(…) na imagem do ‘Anjo da História’, Walter Benjamin está se representando a si mesmo (…) a impotência que adjudica a este ser celestial expressa seu sentir frente ao que estava vivendo e que termina levando-o a tirar a própria vida com umas pastilhas de morfina“. [43] Bolivar Echeverria comentou que não há que se descartar o impacto que produziu a assinatura do tratado de não-agressão firmado por Stalin com Hitler, em 1939, no deteriorado estado anímico de Benjamin. [44]
A linguagem metafórica e religiosa confere às teses de Benjamin força estilística (daí, seu aspecto sedutor) diretamente proporcional à sua obscuridade. O estilo obscuro e oracular pode ser interpretado como se interpretavam as profecias da esfinge ou como se faz com os horóscopos das revistas que se leem quando se está na sala de espera do dentista: cada um lhe confere o significado que já traz na mente ou que deseja encontrar. Podem-se encontrar fragmentos que parecem sustentar o pensamento pós-moderno como outros que apelam à revolução e, no entanto, estes últimos são deliberadamente ignorados pelos intérpretes pós-modernos, embora sejam dominantes no texto.
Benjamin contra Benjamin
Teses que parecem apelar à revolução social convivem com outras onde Benjamin cai presa do desânimo. A vida de Benjamin foi atravessada por períodos de profundo declínio anímico, seu espírito se debatia entre a depressão suicida e o entusiasmo. A tese XIII critica o conceito de progresso em geral rechaçando, como parece, a esperança de que um novo sol pós-capitalista possa surgir no firmamento. As interpretações dominantes, que convertem Benjamin no “profeta do fim apocalíptico da história” e em opositor das “utopias revolucionárias”, derivam do que, talvez, é a tese mais sugestiva e citada do texto: a tese IX, conhecida como o “Anjo da História”, que se inspira em um quadro de Klee, pertencente à coleção de arte de Benjamin, que era um inflexível colecionador de arte e livros raros.
Há um quadro de Klee que se chama “Angelus Novus“. Nele se apresenta um anjo que parece como se estivesse a ponto de se afastar de algo que o deixa perplexo. Seus olhos estão demasiadamente abertos, a boca aberta e as asas estendidas. E esse deverá ser o aspecto do anjo da história. Voltou o rosto para o passado. Onde para nós se manifesta uma cadeia de dados, ele vê uma catástrofe única que amontoa incansavelmente ruína sobre ruína, lançando-as a seus pés. Gostaria muito de se deter, despertar os mortos e recompor o que foi despedaçado. Mas do Paraíso sopra um furacão que se enredou em suas asas e que é tão forte quanto o anjo. Esse furacão o empurra irresistivelmente para o futuro, ao qual dá as costas, enquanto montes de ruínas crescem diante dele até o céu. Esse furacão é o que nós chamamos de progresso. [45]
Stefan Gandler, por seu lado, interpretou essa tese como uma imagem crítica do capitalismo, de um modo de produção em que os seres humanos avançamos para o abismo, um produto de relações sociais fetichizadas e de forças cegas e anárquicas que não controlamos, o “anjo da história” são os seres humanos dirigidos pelo capitalismo à guerra mundial que ameaça converter a civilização em uma pilha de escombros que tocam o céu:
“Então, o Anjo da História, que caminha de costas, é a sociedade burguesa com sua formação de produção capitalista, industrial e organizativa (no sentido de uma organização fora do controle da sociedade, somente nas mãos de alguns, ou seja, uma organização instrumental), se afasta de suas velhas promessas de liberté, égalité, fraternité. A cada passo, cimenta cada vez mais profundamente as estruturas de exploração (…)”. [46]
Mas a interpretação mais óbvia leva o pessimismo a alturas hiperbólicas. A história é uma coleção de catástrofes sem sentido, o progresso é a ilusão com que os homens ocultam o seu caminho ao abismo. É impossível prever o futuro porque avançamos para ele cegos, o progresso nos leva cada vez mais longe do paraíso e, portanto, mais próximo do inferno. Mais que uma teoria da história, estamos diante de um estado de ânimo que desemboca no pântano do pós-modernismo.
Para Reyes Mate, intérprete pós-moderno, as teses de Benjamin se orientam contra a noção de progresso da civilização em geral e não unicamente da sociedade contemporânea (capitalista, agregamos nós):
“(…) Agora como ontem, de fato, é verdade que, para os oprimidos, o estado de exceção é uma situação permanente. Nem a multiplicação do estado social de Direito, nem o avanço da democracia liberal, nem o prestígio do discurso sobre os direitos humanos, nem o crescimento da riqueza mundial por obra e graça da globalização econômica, conseguiram mandar ao sótão dos pesadelos a contundente afirmação da tese VIII, a saber, que todos esses progressos se fazem nas costas de uma parte da humanidade”. [47]
Não tivemos que esperar Reyes Mate para saber que a história da civilização até os nossos dias, como assinalou Marx em “O Manifesto Comunista” – não foi mais que a história da opressão de uma classe sobre outra; nesse sentido, o progresso técnico que trouxe consigo as civilizações se fez com o sangue, o suor e as lágrimas dos explorados. Mas o pós-modernismo exclui de imediato qualquer possibilidade de superar a exploração do homem pelo homem, pois, como assinala Foucault, as “relações de poder” são imanentes ao ser humano. Reyes Mate interpreta Benjamin no sentido de que “o letal era a lógica do progresso”. [48]
É necessário entender a concepção marxista do progresso para desenredar as torpes afirmações de Reyes Mate e da corrente pós-moderna. Marx e Engels não se baseavam em considerações sentimentais ou subjetivas para sustentar sua tese sobre a existência do progresso na história, mas que o concebiam em termos materialistas: desde o ponto de vista do controle que um modo de produção determinado dá aos homens sobre a natureza; ou, em outros termos, desde o ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas e da capacidade destas em desenvolver a produtividade do trabalho. Esse critério não é arbitrário porque reflete o especificamente humano: a produção da vida por meio do trabalho e da produção de ferramentas. Desde esse ponto de vista, é claro que o capitalismo, apesar de sua moral individualista e egoísta, é infinitamente superior ao comunismo primitivo em suas forças produtivas e, portanto, na produtividade do trabalho humano. Não temos o direito de afirmar, por acaso, que um computador ou um satélite artificial é tecnicamente superior a um machado de pedra? Mas o progresso histórico é contraditório e está cheio de contrastes Engels assinalava a esse respeito o seguinte:
“Sendo a exploração de uma classe por outra a base da civilização, seu desenvolvimento é constantemente antinômico. Todo progresso na produção é, ao mesmo tempo, um retrocesso para a classe oprimida, ou seja, para a maioria. Todo benefício para alguns é necessariamente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação obtido por uma classe é um novo elemento de opressão para outra”. [49]
Mas como o pós-moderno não concebe alternativa ao capitalismo, tampouco pode conceber outra noção de progresso que não seja a vulgar versão liberal e se revolve indignado contra esse boneco de palha. A ideologia dominante no período de ascensão do capitalismo foi o liberalismo e o reformismo junto à crença no progresso linear e ininterrupto (durante o prolongado auge do pós-guerra – 1945-1974 – presenciamos uma nova ascensão das ideias reformistas cuja base material se evaporou). A ideologia dominante burguesa durante o período de decadência senil do capitalismo, além do empirismo estreito (positivismo), é a ideologia pós-moderna: o irracionalismo, o misticismo, a arbitrariedade e o pessimismo decadentes. O capitalismo é já incapaz de progredir, de entender racionalmente o seu entorno (fazendo exceção da ciência positiva necessária para a valorização do capital), de produzir ideias originais, de produzir sistemas filosóficos. Portanto, seus ideólogos sustentam que todo progresso é impossível e que estamos diante do fim da história e do fim das ideologias e que todo aquele que contradiga isto não é mais que um utopista irremediável. No entanto, o fato de que o capitalismo esteja em decadência e seja incapaz de progredir não quer dizer que, derrubando o capitalismo, todo progresso seja impossível. Trotsky era perfeitamente consciente do desenvolvimento contraditório do progresso histórico. Sua célebre teoria do desenvolvimento desigual e combinado, da qual se desprende, por sua vez, sua concepção da “evolução permanente”, se baseia no desenvolvimento contraditório e desigual do capitalismo:
“Os sábios liberais – que já não existem – descreveram comumente o conjunto da história da humanidade como uma sucessão linear e contínua de progresso. Era falso. A marcha do progresso não é retilínea, é uma curva quebrada, ziguezagueante. Às vezes a cultura progride; outras vezes, declina. Houve a cultura da Ásia antiga, houve a cultura da Antiguidade, da Grécia e de Roma, depois a cultura europeia começou a se desenvolver e, agora, a cultura americana nasce nos arranha-céus”. [50]
A ideia pós-moderna de que o progresso na história não existe, nunca existiu e nunca existirá é útil ao establishment capitalista porque concebe como inútil toda luta contra a decadência capitalista, pois o declínio seria inerente à própria história. Mas se algumas reflexões contidas nas “Teses sobre a História” foram escritas em um contexto de perseguição e de declínio anímico, é aceitável converter um estado anímico em uma teoria de toda a história? Se a imagem do Anjo é a metáfora de uma guerra mundial, de uma terrível e particular conjuntura, é aceitável ir além dos limites da metáfora e projetá-la ao passado e a todo futuro previsível? Mesmo que sustentemos – como é a nossa convicção – que a metáfora é aplicável ao conjunto do capitalismo enquanto modo de produção – e mesmo ao conjunto das civilizações clássicas – é válido entender a decadência do capitalismo como a decadência de todo futuro possível?
Para os pós-modernos não basta interpretar Benjamin como um anunciador de desgraças de sua corrente decadente. Também querem encontrar nele uma nova teoria que substitua ao Marx do “século XIX”. Reyes Mate – fazendo-se uma piada de mau gosto – quer encontrar uma estrutura para uma nova teoria histórica, ademais de uma nova teoria do conhecimento. Esta consistiria em colocar no centro da realidade histórica aos mais débeis, aos que mais sofrem. Nas palavras de Reyes Mate:
“Se Marx fazia do proletariado o sujeito da história é porque já ocupava, no sistema capitalista de produção, o lugar central do sistema. Era o seu poder que fascinava Marx. Mas o sujeito benjaminiano é central por sua debilidade. É o lúmpen, o que sofre, o oprimido, o que está em perigo, mas que luta, protesta, se indigna. Esse é o sujeito que pode conhecer o que os demais (o que oprime ou manda ou o que fica à margem) não podem conhecer. Seu plus cognitivo é um olhar carregado de experiência e projetado sobre a realidade que todos habitamos (…)”. [51]
Essa “nova” teoria da história, melhor dizendo, essa farsa sentimental, está longe de ser nova. Em essência, é a mesma posição política que adotavam personagens como Bakunin que cifravam sua estratégia nos vagabundos e lúmpens, precisamente por serem os setores que mais sofrem as consequências do sistema capitalista de produção. Independentemente do que “fascinava a Marx”, para este, pelo contrário, o centro da questão não estava no grau de sofrimento subjetivo, mas nas relações sociais objetivas, nas relações de produção reais que fazem funcionar o sistema e que são as únicas sobre as quais se pode pensar seriamente em sua derrubada definitiva. Os lúmpens não desempenham nenhum papel no funcionamento da sociedade, por isso são desclassificados vivendo nos “poros” da sociedade moderna, vivendo das migalhas e da caridade pública. Pode-se ficar indignado por sua situação – deveríamos – mas esse é um tema diferente. Marx deposita sua atenção central na classe trabalhadora – não por algum tipo de “fascinação”, como opina Reyes Mate – ao ser a verdadeira produtora de riqueza e mais-valia, a razão de ser do capitalismo (isso não significa que Marx pensasse que a classe trabalhadora por si só poderia produzir uma mudança radical, sempre teve em mente a unidade dos setores explorados da população). Pode-se estar de acordo ou não com isso, no entanto deve-se reconhecer que a análise de Marx vai ao núcleo do funcionamento do capitalismo enquanto a de Bakunin – e a alternativa que nos deixa a interpretação de Reyes Mate – é vaga e totalmente estéril.
É impressionante que Reyes Mate afirme tão categoricamente que Benjamin se distanciou da certeza presente em Marx sobre o papel revolucionário dos trabalhadores, quando é o próprio autor que resgata variantes pouco conhecidas das teses de Benjamin onde este afirma exatamente o contrário, por exemplo: “ao conceito de sociedade sem classes há que se devolver seu verdadeiro rosto messiânico e isso no interesse da própria política revolucionária do proletariado”. [52] Mas a coerência pode se danar quando quem escreve é um pós-moderno.
O messianismo de que fala Benjamin é a atitude ativa e militante requerida para se ver em todo momento um momento revolucionário e não esperar a revolução como se espera um eclipse. É similar à famosa frase em subtítulo do jornal “Avanti”, dirigido por Gramsci: “ou dormir a sesta ou fazer a revolução”. E ainda quando outras teses pudessem sugerir ambiguidades nesse ponto [53] pelo menos, se esperaria uma interpretação menos categórica que a feita por Reyes Mate a respeito.
Embora a abordagem de se “ver em todo momento um momento revolucionário” seja correta no terreno da agitação – e seja parecida ao aforismo de Gramsci “ou dormir a sesta ou fazer a revolução”, teoricamente é uma consigna vazia, simples voluntarismo. Uma organização revolucionária em suas perspectivas deve diferenciar cuidadosamente cada uma das etapas de um processo para traçar uma estratégia adequada de aproximação ao movimento dos trabalhadores. Deve-se diferenciar, por exemplo, o momento de se lançar à greve ou de se preparar para ela, o momento de ampliar cuidadosamente o alcance da organização entre a classe trabalhadora ou apelar por uma insurreição etc. Trata-se de realizar uma avaliação sóbria do nível de organização e consciência para se propor as tarefas que nos ajudem a nos prepararmos para derrubar a burguesia. A frase “cada momento é um momento revolucionário” carece de sentido se não se coloca esta consigna em seu justo lugar. Gramsci sabia bem disso, pois não só era um intelectual, como também um militante revolucionário, um dirigente operário.
Embora muitas das teses benjaminianas sejam de difícil interpretação, algumas são bastante contundentes e transparentes. Benjamin, na tese XIII, por exemplo, contrapõe à traição do reformismo socialdemocrata o genuíno marxismo encarnado pela Liga Espartaquista de Rosa Luxemburgo e o faz de forma explícita:
“O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida quando combate. Em Marx aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora, que leva a seu termo a obra de libertação em nome de tantas gerações de vencidos. Esta consciência, que por curto tempo voltou a ter vigência com o movimento Spartacus, foi sempre desagradável para a socialdemocracia“. [54]
É claro que Benjamin está reivindicando Rosa Luxemburgo, sua corrente, e a contrapõe à traição da socialdemocracia reformista. Luxemburgo foi condenada a ser assassinada Noske, braço executor de Ebert; foi assassinada pelos próprios dirigentes do Partido Socialdemocrata Alemão ao que havia pertencido a grande mártir e aos que havia criticado – desde um ponto de vista marxista – seu reformismo e sua adaptação parlamentar ao sistema capitalista. O jovem Partido Espartaquista, cindido do PSDA, era a única alternativa real que tinha a revolução alemã de 1919 e, por isso, o regime o descabeçou assassinando a mais lúcida de seus dirigentes. Diz muito, ao contrário das bobagens que escreve Reyes Mate, que Benjamin apele à Rosa Luxemburgo, uma revolucionária integral que baseava sua política e perspectivas no potencial revolucionário da classe trabalhadora. Na interpretação de Reyes Mate, a referência clara ao grupo de Rosa Luxemburgo é embaçada por outra mais geral e vaga, onde só resta a referência ao Espártaco da antiguidade e onde, sem nenhuma base, se afirma que: “A tese não convida à refundação do Luxemburguismo, mas ao resgate da consciência de solidariedade com os oprimidos”. [55] Embora esse último esteja correto, também o é que Benjamin está contrapondo claramente à socialdemocracia as tradições revolucionárias do grupo de Rosa Luxemburgo. Por isso, compartilhamos a opinião exposta no texto “O Anjo da evolução”, no qual se coloca:
“A interpretação de Reyes Mate sobre a tese XI, no sentido de que Benjamin está se referindo a uns oprimidos diferentes dos trabalhadores braçais e mais aos que sofrem extremamente, os marginados cujos nomes são indígenas, negros, judeus, árabes etc., o leva a esvaziar de conteúdo a referência à Liga Espartaquista”. [56]
Belas teses como a IV mostram que, em suas cavilações íntimas, Benjamin continua mantendo a esperança na derrubada do capitalismo e o convencimento de que toda derrota é transitória:
“(…) Essa sutileza e espiritualidade (exigidas pelo materialismo histórico) incessantemente questionam cada vitória que coube aos que dominam. Como as flores voltam sua coroa para o sol, também assim tudo o que foi, em virtude de um heliotropismo de estirpe secreta, tende a se dirigir para esse sol que está por sair no céu da história. Com esta, a mais inaparente de todas as transformações, deve saber se entender o materialista histórico”. [57]
Devido à tradição judaica da qual provinha e à influência da religião, Benjamin fala de “tempo messiânico” como uma metáfora da revolução, da redenção socialista. O messianismo de Benjamin pode ser discutível como se queira, mas a clara referência ao potencial revolucionário dos produtores, que reside nesse conceito, não deixa muito espaço a dúvidas. O messianismo de Benjamin apela à necessidade de uma redenção revolucionária – um tema que corre como um fio condutor das 18 teses; retoma a tradição judaica talvez no sentido do messianismo original do movimento cristão (presente em tendências comunistas como as dos essênios e zelotes) que pretendia se libertar da opressão romana por meio de uma revolta popular de escravos, prostitutas e artesãos. Para Benjamin, a revolução é o juízo final (Tese III), onde todas as lições do passado se tornam presentes para uma humanidade redimida: “Cada um dos momentos em que ela [a humanidade] viveu se converte em citações da ordem do dia, e esse dia é precisamente o juízo final”. [58] Talvez encontremos aqui nexos entre o pensamento de Benjamin e a Teologia da Libertação, embora, ao contrário desta última, Benjamin promulgue por um messianismo deslindado da religião; isto o deixa claro na tese XVII, quando afirma que: “Marx secularizou a ideia de tempo messiânico na sociedade de classes. E fez bem” [59], talvez porque o messias que se espera não seja a divindade sobrenatural, mas a ação “messiânica” revolucionária das massas oprimidas e do proletariado, os mesmos que foram traídos por suas lideranças políticas. Por essa razão, Benjamin afirma em sua tese II: “Para nós, como para cada geração precedente, não foi dada uma débil força messiânica sobre a qual o passado tem direitos. Não se pode despachar esta exigência de forma ligeira. Quem professa o materialismo histórico sabe disso”. [60] O “tempo messiânico” seria a sociedade sem classes pós-revolucionária e o messias a revolução anticapitalista e antiburocrática tão desejada. Pode-se questionar o uso dessa imagem e as confusões que pode gerar (e que geraram de fato), mas o sentido revolucionário da metáfora é claro para quem quiser ver.
Para Benjamin, as noções vulgares do marxismo conduzem ao conformismo e à passividade e é, por isso, que se opõe à ideia de progresso. Talvez seja a tese XI a mais contundente nesse tema:
“O conformismo que desde o início encontrou espaço na socialdemocracia, não contamina somente sua tática política, mas também suas ideias econômicas. Foi uma das causas de seu fracasso. Nada corrompeu tanto o movimento operário alemão quanto o convencimento de que nadava a favor da corrente. Para os trabalhadores alemães o desenvolvimento técnico era a inclinação da corrente a favor da qual pensaram que nadavam. Só havia que dar um passo para cair na ilusão de que o trabalho industrial, situado na onda do progresso técnico, representava um trabalho político. (…) Esta concepção marxista vulgarizada do que é o trabalho não pergunta com a calma necessária como afeta o produto do trabalho ao trabalhador enquanto este não pode dispor dele. Reconhece unicamente os avanços no domínio do homem sobre a natureza, mas não os retrocessos da sociedade”. [61]
É verdade que o desenvolvimento das forças produtivas por si mesmo nunca gerará automaticamente o advento do socialismo, acreditar nisso seria tão ridículo quanto acreditar que os processos históricos ocorrem à revelia dos homens. O outro fator que reitera Benjamin – como o fez Marx, que sempre esteve ocupado com os temas organizativos, de consciência e propaganda – é o fator subjetivo: o grau de consciência, organização, a qualidade da estratégia e da tática; sem estes fatores, o triunfo de uma revolução socialista é impossível. Mas também o seria se o desenvolvimento das forças produtivas não gerasse condições materiais que tornassem factível tal revolução. Os processos talvez como nenhum outro são dialéticos ou são captados em suas contradições ou não se entenderá nada. A consciência seria impotente – por mais que se a desejasse subjetivamente – se flutuasse no vazio ou se a revolução socialista fosse tentada nos tempos de Nabucodonosor. É necessário colocar as coisas em sua justa dimensão: o desenvolvimento das forças produtivas é o fator decisivo em última instância do desenvolvimento histórico, mas este não significa nada sem a ação das massas, sem a luta de classes, luta onde se colocam em jogo fatores subjetivos, de consciência – fatores muito sutis, como dizia Benjamin – que determinam o curso de tais batalhas. É necessário ver as duas faces da moeda, qualquer desequilíbrio neste ponto nos deixa em um determinismo mecânico ou em um voluntarismo subjetivo estéril. Em todo caso Benjamin não se opunha a uma noção de progresso em uma sociedade que tivesse derrubado o sistema capitalista: “Nada pode ser… progresso [dizia ele] se isso não supõe um aumento da felicidade e da realização daqueles que sofreram o destino imperfeito”. [62]
Benjamin também nos sugere “organizar o pessimismo”, pois pensar que “nadamos a favor da corrente” nos leva, segundo ele, à passividade ou ao conformismo que surge da crença de que o processo histórico nos guiará automaticamente. É uma opinião. Mas o pessimismo na realidade é paralisante e não é um estado de ânimo que permita organizar qualquer coisa em nenhum aspecto da vida, nem sequer é útil para amarrar os cadarços. Centrar-se nos estados de ânimo para avaliar a pertinência do marxismo ou da ação revolucionária é querer colocar alicerces em um pântano sem fundo. Na realidade, o marxismo não se funda em nenhum estado emocional ou trauma existencial – como o faz o existencialismo ou a pós-modernidade que se baseiam em estados subjetivos e opiniões individuais – mas na análise sóbria, científica, materialista e dialética da realidade. Nisso fundamenta o seu otimismo, na realidade inevitável da luta de classes e no papel do proletariado na produção social. Nem rir, nem chorar, mas compreender – dizia Spinoza.
Além da tese IX, há outra frase de Benjamin muito citada pelos pós-modernistas:
“Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas, talvez, se trate de algo completamente diferente. Talvez as revoluções sejam o golpe de mão no freio de emergência que o gênero humano, que viaja nesse trem, produz”. [63]
Os pós-modernos imaginam que é possível deter o infernal “trem do progresso”, fonte de todo o mal. Mas a história não pode ser detida porque se desenvolve objetivamente apesar dos lamentos e gritos da pós-modernidade. E embora não seja possível deter a história, é possível sim compreendê-la e intervir conscientemente nela. Se os explorados se unissem para derrubar o sistema capitalista, lograriam um enorme progresso na história, um avanço gigantesco. Grande parte da história da humanidade avançou a partir de revoluções: desde a revolução neolítica, a luta de Espártaco, a Revolução Francesa ou a Revolução Russa. A história se deteve momentaneamente nos períodos de obscuridade, como em grande parte do Ocidente durante a Idade Média e depois da queda do Império Romano. Aos pós-modernos falta a lógica mais elementar: se fosse possível deter o trem da história, esta se deteria no sistema capitalista dominante. Exatamente o sonho de Fukuyama: o fim da história e o domínio eterno do capitalismo.
Apesar das interpretações pós-modernas, na maioria das reflexões contidas nas “Teses sobre a História” Benjamin transmite a ideia de que é necessário recuperar a memória histórica dos oprimidos, “ver em cada momento um momento revolucionário”, fala do “tempo messiânico” como uma metáfora teológica do socialismo. Pode-se afirmar que a tese central de suas “Teses sobre a História” pode se resumir a: é fundamental que o autêntico marxista “escove a história a contrapelo” [64] ou, em outras palavras, se oponha resolutamente à ideologia burguesa e que veja, mesmo nas mais belas obras da cultura das sociedades de classe, documentos da barbárie. [65] Suas teses, cremos, são teses sobre a redenção em termos revolucionários, metáforas sobre este tema. Benjamin sustenta a necessidade de conservar o marxismo sobretudo no contexto de ascensão da barbárie fascista. Acima de tudo critica à socialdemocracia e ao stalinismo que pactuou com Hitler.
É necessário, no entanto, deixar claro que é inútil buscar nesses escritos uma teoria revolucionária séria. Embora a ideia de uma redenção revolucionária se imponha nas teses, trata-se afinal de impressões de um intelectual. Compará-las com as “Teses sobre Feuerbach” de Marx é totalmente exorbitante. As teses do jovem Marx formam uma só peça e sua integridade consiste na superação revolucionária do materialismo contemplativo de Feuerbach. As teses de Benjamin são obscuras e francamente contraditórias. Sem dúvida deseja a revolução, mas parece desprezar o desenvolvimento das forças produtivas, que é a base material de tal revolução; apela desesperadamente à revolução, mas pretende frear, ao mesmo tempo, o trem da história. Depois de tudo, o próprio Benjamin afirma que não se trata de teses que exprimam uma teoria acabada, mas sim um diálogo íntimo, um desafogo… já dizia Freud que nos desafogos encontramos tendências contraditórias. Trata-se de comentários, não realmente de postulados teóricos sérios. Na nossa opinião, essas teses devem ser lidas sob chaves literárias, como comentários que têm como virtude “irradiar sugestões”. [66]
Em contraste com o pesado e viscoso pessimismo pós-moderno, o marxismo é otimista porque sabe que as dores da humanidade não são mais que o anúncio de que é necessário superar o sistema, assim como as dores do parto anunciam o nascimento. É otimista porque apela à luta, à ação revolucionária onde os oprimidos nos tornamos conscientes de nosso poder e ganhamos confiança em nossas próprias forças. A atomização, o individualismo e sentimentalismo pós-modernos são depressivos e paralisantes. Por isso a burguesia promove essa pílula envenenada como substituto do marxismo.
Comparemos o “Anjo da História” a dois textos que Trotsky escreveu quase no início de sua atividade revolucionária e no final de sua vida (justo antes de ser assassinado). O primeiro deles foi escrito quando Trotsky estava na prisão e tinha apenas 20 anos de idade, palavras com as quais o jovem Lev Davidovich recebeu o século XX:
“Morra a utopia! Morra a fé! Morra o amor! Morra a esperança! Troveja o século XX com salvas incendiárias e com o barulho das metralhadoras.
Rende-te, patético sonhador. Aqui estou eu, teu longamente esperado século vinte, teu futuro.
Não, responde o otimista invencível: és somente o presente”. [67]
Enquanto Benjamin parece querer deter o trem da história com uma “freada de emergência”, Trotsky olha para o futuro e pretende criar a organização necessária para acelerar sua marcha. Esse otimismo foi referendado em seu testamento político, um texto escrito em 27 de fevereiro de 1940, a semanas de seu assassinato, quando Trotsky tinha 60 anos de idade:
“Minha pressão arterial (que continua se elevando) engana aos que me rodeiam sobre meu estado de saúde real. Sinto-me ativo e em condições de trabalhar, mas, evidentemente, se aproxima o desenlace. Estas linhas serão publicadas depois de minha morte (…)
Fui revolucionário durante meus quarenta e três anos de vida consciente e durante quarenta e dois anos lutei sob as bandeiras do marxismo. Se tivesse que começar tudo de novo, trataria, naturalmente, de evitar este ou aquele erro, mas, no fundamental, minha vida seria a mesma. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e, em consequência, um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente, embora sim seja mais firme que em minha juventude.
Natasha se aproxima da janela e a abre desde o pátio para que entre mais ar em meus aposentos. Posso ver a brilhante faixa de grama verde que se estende por trás do muro, acima o céu claro e azul, e o sol brilha por todos os lados. A vida é formosa. Que as futuras gerações a livrem de todo mal, opressão e violência e a desfrutem”. [68]
Depois de peregrinar entre os Pirineus, Benjamin foi retido no posto fronteiriço de Portbou (Espanha), na fronteira da Espanha com a França, detido pelas autoridades espanholas, visto que levava um passaporte que não lhe permitia sair da França para a Espanha, de onde planejava chegar aos Estados Unidos. Viajava com umas pastilhas de cianureto, pois sabia que, se caísse nas mãos dos nazistas um judeu de esquerda, marxista, como ele, lhe esperava o pior dos destinos. Esgotado e desesperado, se suicidou na tarde de 25 de setembro de 1940. Tinha 48 anos de idade. Tragicamente a passagem pela Espanha foi concedida ao grupo que viajava com Benjamin uns dias depois. Em 1994 foi criado um memorial em sua homenagem em Portbou.
Notas:
[1]Carta a Gershom Scholem de 1934, citado en: Buck-Morss, S., Walter Benjamin, escritor revolucionário, Buenos Aires, Interzona, 2005, p.59.
[2]Benjamin, “El autor como productor“, presentación y traducción por Bolivar Echeverría, México, Itaca, 2004, p.14.
[3] Bertolt Brecht, “Las cinco dificultades para decir la verdad, en El compromiso en literatura y arte” (traducción de J. Fontcuberta), 1973.
[4]Véase la carta de Benjamin a Gerhard Scholem del 10 de diciembre de 1926.
[5]Trotsky, “En España“, Akal, Madrid, 1976. También se han publicado con el título “Mis peripecias por España“.
[6] Trotsky, “En España“, Akal, Madrid, 1976, p. 14.
[7] Ibid., pp. 99-100.
[8] El Che, como lo atestiguan sus “Diarios de motocicleta”, también fue un agudo escritor de impresiones.
[9] Asja Lacis explica a sua visão de um teatro revolucionário da seguinte forma: “Queria ser um bom soldado da revolução e mudar a vida nessa direção, e de facto, lá fora, a vida transformava-se, o teatro saía para a rua e a rua entrou no teatro”.
[10] Benjamin, Walter, “Diario de Moscú“, Madrid, Taurus, 1988, p. 16.
[11] Véase las sospechosas condiciones de la muerte de Lenin y las sospechas de Trotsky en el Stalin de Trotsky.
[12] A chocante E brutal perseguição da oposição é descrita em detalhes em todas as suas etapas na obra de Pierre Broue: “Comunistas contra Stalin, Massacre de uma geração”. Este trabalho reforça a hipótese de que Frunze, Comissário de Guerra, foi assassinado por Stalin já em 1925.
[13] Broue, Pierre, “Comunistas contra Stalin, Masacre de una generación“, Malaga, Sepha, 2008, p. 127. En: https://proletarios.org/books/Pierre-Broue-Comunistas-contra-Stalin-Masacre-de-una-generacion.pdf
[14]Benjamin Walter, “Diario de Moscú“, Madrid, Taurus, 1988, p. 21.
[15]Ibid., p. 30.
[16]Ibid., p. 28.
[17] Ibid., p. 30.
[18] Ibid., p. 82.
[19] Broue, Pierre, Comunistas contra Stalin, masacre de una generación, Malaga, Sepha, 2008, p. 215. En: https://proletarios.org/books/Pierre-Broue-Comunistas-contra-Stalin-Masacre-de-una-generacion.pdf
[20]Benjamin, Walter, Diario de Moscú, Madrid, Taurus, 1988, p. 66.
[21]Broue, Pierre, Comunistas contra Stalin, masacre de una generación, Malaga, Sepha, 2008, p. 215. En: https://proletarios.org/books/Pierre-Broue-Comunistas-contra-Stalin-Masacre-de-una-generacion.pdf
[22] Ibid., p.21.
[23] Ibid., p. 94.
[24]Diaz, Ariane, “Ensayo sobre Benjamin y Brecht historia de una amistad”, en: www.herramientas.com.ar/revista-herramienta-n-39/benjamin-y-brecht-historia-de-una-amistad-de-erdmut wizisla
[25] Wizisla, Erdmut, “Benjamin y Brecht historia de una amistad“, Paidos, Buenos Aires, 2007, pp.71-72.
[26]Ibid., p. 138.
[27]Benjamin, W. “El autor como productor“, Traducción Bolivar Echeverría, en: http://www.bolivare.unam.mx/traducciones/El%20autor%20como%20productor.pdf
[28]Ibid.
[29] Enquanto David Alfaro Siqueiros era um gênio como muralista, pessoalmente ele era um aventureiro e fanático sem qualidades morais. Julio Glockner é enfático nisso -citando de passagem o julgamento de Octavio Paz: “Qualquer pessoa que tenha informações mínimas sobre o que aconteceu em 24 de maio de 1940” – referindo-se ao ataque a Trotsky e sua família liderada por Siqueiros – “ler com indignação o que se faz na autobiografia de Siqueiros” – afirma que não era intenção assassinar Trotsky, mas apenas “apreender seus arquivos” – “e descobrirá um homem arrogante, falso e vaidoso, incapaz de ser honesto em assuntos como delicado como sua participação no atentado contra Trotsky e sua família, iludindo sua participação na tentativa de assassinato com anedotas de rancho e entretendo a atenção do leitor com opiniões medíocres que buscam refletir teoricamente sobre a realidade social de seu tempo. É claro que sobre o cruel assassinato de Leon Davidovich três meses depois não há uma única palavra em suas memórias, tamanha é a estatura moral de alguém que se propôs a educar o povo com seu trabalho. Octavio Paz lembra em entrevista que eles eram amigos quando eram jovens, mas ela se separou dele por causa do atentado que custou a vida do secretário de Trotsky, Robert Sheldon Harte” – que, além de ter participado do assalto (ainda que , foi assassinado) não era secretário, mas guarda-costas – “Siqueiros – diz Paz – foi um stalinista inveterado toda a sua vida, irredimível: foi um dos poucos que aplaudiu a entrada de tanques russos em Praga. Não seria honroso esconder o outro lado da moeda: ele era um militante que sofreu prisão e perigo por suas crenças. Ele era um homem apaixonado e um egomaníaco; em sua vida e em sua pintura abundam os relâmpagos da verdade e os relâmpagos do teatro. Um temperamento mais mediterrâneo que mexicano, uma espécie de ítalo-espanhol. Três pessoas em uma: um artista rebelde dirigido por um empresário napolitano, ambos sob a direção espiritual de um teólogo obtuso” (págs. 44-45)
[30] Segundo Paco Ignacio Taibo II, essas teses nunca foram publicadas como manifesto, mas seu conteúdo está expresso nas memórias de Diego Rivera e Alfaro Siqueiros. Veja o livro “Arcanjos”.
[31] Citado en: Wizisla, Erdmut, “Benjamin y Brecht historia de una amistad“, Paidos, Buenos Aires, 2007, p. 212.
[32] Ibid., p. 212.
[33]Benjamin, Walter, “La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica“, parágrafo IV, traducción por Bolivar Echeverría, México, Itaca, 2003, p. 45.
[34]Ibid., parágrafo III, pp. 44-45.
[35] Ibid., parágrafo XV, p. 82.
[36] Ibid., parágrafo IV, pp. 98-99.
[37] Löwy, Michael; Walter Benjamin, “Aviso de incendio“, México, Fondo de Cultura Económica, 2001.
[38]Citado por Reyes Mate en: “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 13.
[39]Cf. Reyes Mate, “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 16.
[40] Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia y otros fragmentos“, edición y traducción por Bolivar Echeverría, Contrahistorias, México, 2005, p. 6.
[41]Véase la introducción de Bolívar Echeverría en: Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia y otros fragmentos“, edición y traducción por Bolivar Echeverría, México, Contrahistorias, 2005, p. 5-16.
[42]Reyes Mate, “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 19.
[43] Los pormenores del éxodo de Benjamin hasta su trágico suicidio son reseñados por Reyes Mate, Op cit. pp. 15-18.
[44]Bolivar Echeverría (compilador), “La mirada del ángel“, México, UNAM, 2005, pp. 10-11.
[45]Ibid., Tesis IX, p. 23.
[46]Gandler, Stefan,”Fragmentos de Frankfurt“. México, Siglo XXI, 2009, p. 66.
[47] Reyes Mate, “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 12.
[48]Ibid., p. 14.
[49]Federico Engels, “El Origen de la familia“, Editores Mexicanos Unidos, México, 1982, p.204.
[50] Trotsky “Radio, ciencia técnica y sociedad”, en “Literatura y revolución, otros escritos sobre la cultura y el arte”, Tomo II, pp. 78-79.
[51]Reyes Mate, “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 20.
[52]Citado por Reyes Mate: “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, pp. 23-24 (el subrayado es mío).
[53]“O trapeiro [diz Benjamin] é a figura mais provocativa da miséria humana. É o lumpemproletariado em duplo sentido: veste-se de trapos e vive deles”. Embora aqui o lumpen seja um símbolo de miséria, não se afirma que é o sujeito revolucionário que Marx viu no proletariado.
[54]Benjamin, W., “Tesis sobre historia y otros fragmentos“, Traducción Bolivar Echeverría, México, Itaca, 2008, p. 48. (el subrayado es mío).
[55]Reyes Mate, “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 205.
[56] Sánchez Ángel, Ricardo, “El ángel de la revolución”, Práxis Filosófica, número 27, julio-diciembre, 2008, Universidad del Valle, Colombia, p.128.
[57] Benjamin, “Tesis sobre historia y otros fragmentos“, Tesis IV, edición y traducción por Bolivar Echeverría, México, Contrahistorias, 2005, p. 19.
[58]Citado por Reyes Mate: “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 81.
[59]Ibid., p. 23.
[60]Ibid., pp. 67-68.
[61] Citado por Reyes Mate: “Media noche en la historia“, Madrid, Trotta, 2006, p. 181.
[62]Ibid. p. 42.
[63] Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia y otros fragmentos“, edición y traducción por Bolivar Echeverría, Contrahistorias, México, 2005, p. 37
[64] Ibid., Tesis VII, p. 21.
[65] Ibid., Tesis VII, p. 22.
[66] Bolivar Echeverría, introducción a: Walter Benjamin, Sobre el concepto de historia y otros fragmentos, edición y traducción por Bolivar Echeverría, Contrahistorias, México, 2005, p. 16.
[67]León Trotsky, “La era de la revolución permanente“, Juan pablos editor, México, 1998, p.44.
[68] Trotsky, “Testamento”, en: “La era de la revolución permanente“, México, Juan Pablos, 1998, pp. 363-365.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE
PUBLICADO EM ARGENTINAMILITANTE.ORG