A greve de policiais militares no Ceará expressa mais um exemplo da crise das instituições do Estado no Brasil. Foi bastante emblemático disso o episódio envolvendo o senador Cid Gomes, que levou um tiro enquanto pilotava uma retroescavadeira na tentativa de furar o bloqueio de policiais encapuzados em um batalhão da Polícia Militar (PM) em Sobral. O episódio mostra como os diferentes setores da burguesia têm dificuldades de mostrar respostas a isso.
Desde o dia 18 de fevereiro, parte dos policiais militares do estado do Ceará parou as atividades, e homens encapuzados invadiram quartéis, depredaram e esvaziaram pneus de veículos da frota em protesto contra a proposta de reajuste da categoria apresentada pelo governador Camilo Santana (PT). No sábado, dia 22, havia nove batalhões fechados. Em meio à paralisação dos agentes, 88 assassinatos foram registrados em apenas três dias. O governo do Ceará afastou 168 policiais militares que participam da paralisação no estado. Os policiais pressionam o governo por aumento salarial. A proposta do governo é aumentar o salário dos atuais R$ 3,2 mil para R$ 4,5 mil, em aumentos progressivos até 2022. O grupo de policiais que realiza as manifestações reivindica que o aumento para R$ 4,5 mil seja implementado neste ano.
Pelo menos outros cinco estados passam por processo de negociação de aumento salarial de policiais e bombeiros militares (Paraíba, Espírito Santo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Piauí). No estado da Paraíba, policiais fizeram paralisação, saíram às ruas e esvaziaram pneus de viaturas. Eles também tentaram impedir a saída de policiais em serviço de batalhões e o trabalho de militares em um bloco de carnaval. No Espírito Santo, onde também existe um processo de negociação de aumento salarial com as forças de segurança do estado, ainda há a lembrança de quando a população capixaba vivenciou uma crise na segurança pública causada por uma paralisação da PM, justamente por reivindicação salarial, em 2017.
Como ocorre sempre, uma greve dessa natureza acaba colocando a esquerda diante de polêmicas, mais precisamente frente ao dilema de apoiar ou não a mobilização política dos policiais. Esse fenômeno sempre mostra o grau de adaptação dessas organizações ao Estado. Tornou-se comum, por exemplo, a posição do PSTU em apoiar essas greves. Em nota, o partido afirma: “A luta por melhoria salarial é justa e deve ser direito de todos os servidores, inclusive de policiais e bombeiros” (PSTU, “Toda solidariedade à luta dos policiais e bombeiros militares do Ceará”). Outras organizações, mesmo não apoiando a greve, não escondem seu apoio a mobilizações políticas de policiais. A Resistência, tendência interna do PSOL, afirmou: “Paralisações anteriores da PM e de bombeiros foram corretamente apoiadas porque além da reivindicação de salários, adotavam os métodos tradicionais de greve, como reuniões e assembleias” (Esquerda On Line, “A complexa situação da greve da PM no Ceará”). Na mesma nota, a Resistência chega a se solidarizar com Cid Gomes, que, quando era governador do Ceará, utilizou a mesma polícia para reprimir uma greve de professores.
Essas e outras posições mostram que setores da esquerda olham para esse tipo de mobilização como legítima de trabalhadores. Contudo, não pode haver dúvida para os marxistas sobre a natureza do Estado como um órgão para gerir os interesses da burguesia e o papel cumprido pelo seu braço armado com a finalidade de proteger a propriedade privada e reprimir qualquer ameaça que se coloque contra a institucionalidade. Segundo Lenin, “os métodos de violência mudaram, mas em toda a parte existiu um Estado, existiu em cada sociedade um grupo de pessoas que governavam, mandavam, dominavam e que, para conservarem o seu poder, dispunham de um aparelho de coerção física, de um aparelho de violência, com as armas que correspondiam ao nível técnico da dada época” (“Conferência na Universidade Sverdlov”, 1919). Portanto, os profissionais que atuam nos órgãos militares não podem ser considerados um segmento da sociedade que merece o apoio político dos marxistas.
Mostra-se um grave equívoco entender que a greve de policiais seja a mesma coisa que as greves operárias. Numa greve os trabalhadores reivindicam aumento de salário ou melhoria em suas condições de trabalho. Caso esse raciocínio seja utilizado para analisar a mobilização política dos policiais, significa, ao considerar legítima suas reivindicações, que se apoia melhores condições para reprimir, seja por meio de equipamentos melhores ou salários mais condizentes com suas aspirações. Não é fortuito que qualquer aumento de salário para policiais e militares seja muito mais frequente que para outros profissionais empregados pelo Estado.
Outra justificativa para apoiar uma greve de policiais militares passa por uma interpretação psicológica, considerando que muitos teriam uma origem operária. Trotsky responde isso: “O fato de que a polícia tenha sido originariamente recrutada em grande número entre os operários socialdemocratas não esclarece muita coisa. Mesmo aqui, a consciência é determinada pelo ambiente. O operário que se torna um policial a serviço do Estado capitalista é um policial burguês, não um operário. Nos últimos anos, esses policiais lutaram muito mais contra os operários revolucionários do que contra os estudantes nazistas. Tal treino não deixa de produzir os seus efeitos. E acima de tudo: cada policial sabe que o pensamento do governo pode mudar, mas a polícia continua” (“Que Fazer? Questão Vital para o Proletariado Alemão”, 1932). Qualquer análise psicológica sobre a polícia brasileira mostra uma corporação formada por pessoas com mentalidade autoritária, voltada para posições reacionárias, além de ser composta por frações corruptas, e que veem em sua corporação um exemplo de superioridade moral em relação a qualquer coisa.
Muitas organizações de esquerda afirmam que é fundamental fazer um trabalho político junto aos militares, mas confundem o tático e o estratégico. Possivelmente numa situação revolucionária se ganhará parte desses setores, fazendo com que rompam com as forças de repressão. Contudo, esse processo se dará totalmente por fora dos órgãos militares, significando a ruptura desse segmento tanto do ponto de vista da instituição como da consciência de classe. Em hipótese alguma isso significa exigir a democratização ou melhor estrutura para as instituições militares em funcionamento dentro do capitalismo, como ocorre nas atuais reivindicações de policiais. Trotsky, analisando a preparação das atividades da insurreição, afirmava que “no período de preparação da revolução, opomo-nos ainda claramente às forças (polícia, exército) da classe dominante” (“Problema da guerra civil”, 1924).
No cenário oposto, dos críticos à greve de policiais, entre os erros da esquerda coloca-se o pavor que uma parcela tem de qualquer coisa que lembre o bolsonarismo. Pela análise desses segmentos, a atual mobilização de policiais poderia significar o embrião de um braço armado do fascismo, semelhante ao que foi no nazismo a SS. Contudo, parecem esquecer que o ideário reacionário dos militares nasceu muito antes de Bolsonaro, num conjunto de ideias e imagens anticomunistas elaboradas há décadas, e que, depois do final da Guerra Fria, se voltou para o combate aos movimentos sociais. Além disso, diferente da fantasiosa retórica antissistema de Bolsonaro, os policiais são ardorosos defensores da lei e da ordem, em sua greve não defendendo uma ruptura institucional, mas reivindicando que o Estado valorize seu papel como leais agentes da repressão.
Portanto, não seria equivocado afirmar que a greve de policiais militares não é outra coisa que não a disputa entre frações do Estado burguês diante de sua própria falência. Essa disputa ganha maiores proporções com o aprofundamento da crise, especialmente se for considerado que o setor mais reacionário da sociedade enxerga que o PT do governador Camilo seria uma ameaça “comunista”. Não há para a esquerda nada que se possa ganhar em apoiar qualquer um desses bandos burgueses. Pelo contrário, a defesa da mobilização política de policiais mostra a incapacidade da esquerda, em todas as suas variantes, de fazer com que sua política supere os marcos da institucionalidade burguesa.
O trabalho dos revolucionários inclui a preparação da insurreição, que tem seus desdobramentos práticos militares, mas isso não significa que devemos fazer o esforço de nos infiltrarmos em um dos setores mais reacionários da sociedade para, dali de dentro, cooptar para a revolução alguém. Se existe algo a ser feito, é começar a construir os organismos de autodefesa dos trabalhadores, inclusive em suas ações militares. Essa discussão está colocada de forma clara no programa de fundação da IV Internacional, quando afirma: “Em cada greve e em cada manifestação nas ruas deve-se propagar a ideia de criação de destacamentos operários de autodefesa. É necessário inscrever esta consigna no programa da ala revolucionária dos sindicatos. Em todas as partes onde seja possível, começando pelas organizações de jovens, é necessário constituir na prática milícias de autodefesa, adestrando-as no manejo das armas” (Trotsky, “Programa de Transição”, 1938). Se na agitação e na propaganda, diante de uma situação revolucionária, policiais e militares romperem com suas corporações, certamente serão bem-vindos à luta. Contudo, qualquer ação que essas pessoas venham a tomar estará subordinada aos organismos de discussão e deliberação dos trabalhadores, não às instituições do Estado capitalista.
Se o capitalismo e seu Estado estão se decompondo, levando pelo ralo o pacto da Nova República, não há para os revolucionários outra tarefa que não a de mobilizar os trabalhadores para derrubar o sistema. Pelo contrário, a defesa de melhores condições de trabalho para profissionais de órgãos de repressão pode levar unicamente à manutenção a ordem política e social vigente. Os trabalhadores precisam fortalecer seus partidos e sindicatos e organizar comitês de autodefesa, se protegendo das ações repressivas da polícia e dos ataques dos governos que defendem o sistema capitalista apodrecido. Essa ou qualquer outra greve de policiais somente nos interessa na medida em que podemos fazer claramente um debate estratégico com os trabalhadores e deixa claro dentro da esquerda quem são aqueles que não olham o futuro para além da institucionalidade burguesa.