Neste domingo (04/10) foi anunciada a escolha do documentário “Libelu – Abaixo a ditadura” como melhor filme da mostra competitiva do festival É tudo Verdade. Dirigido por Diógenes Muniz, o documentário conta parte da história da organização de juventude Liberdade e Luta, impulsionada a partir da criação da Organização Socialista Internacionalista (OSI), em 1976. Mais conhecida como Libelu, expressão inicialmente falada por outros grupos políticos que buscavam questionar a seriedade dos militantes da Liberdade e Luta, a organização deixou de existir em 1982. Posteriormente o processo de organização da juventude por parte dos trotskistas passou por outros momentos, partindo da experiência de construção da Libelu, diante da mudança na situação política e como parte do processo de consolidação da intervenção no Partido dos Trabalhadores (PT).
O documentário foi realizado a partir de depoimentos de pessoas que tiveram algum tipo de participação nos primeiros anos da Liberdade e Luta, como Ricardo Melo, Júlio Turra, Markus Sokol, Josimar Melo, José Arbex, Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Cleusa Turra, Antônio Palocci, entre outros. Esses nomes mostram em parte a importância política que a organização teve em seu contexto, apesar da trajetória assumida por parte de seus membros. Mostram também como o documentário conta duas histórias, uma que narra os principais acontecimentos da trajetória política da Liberdade e Luta e outro em que antigos militantes que abandonaram a luta revolucionária falam de seu passado como algo distante ou mesmo estranho.
O documentário, cuja narrativa intercala entrevistas atuais com gravações de vídeo realizadas na época, mostra a fundação da Libelu associada a um momento específico da ditadura, mais precisamente os anos posteriores à derrota da luta armada e a retomada das mobilizações de massas no Brasil. Os entrevistados apontam que a fundação da Liberdade e Luta estava associada ao processo de mobilizações estudantis de massas ocorrido a partir de 1975. O ponto alto dessa luta foi sua vitória na eleição do DCE da USP, em 1978.
Naquele contexto a Libelu se tornou uma das mais importantes organizações estudantis do período final da ditadura. Esse peso conquistado pela organização estava ligado, entre outras coisas, ao fato de se diferenciar das demais organizações, a maioria de orientação stalinista. O trotskismo, que orientava as formulações teóricas da Liberdade e Luta e da OSI, conseguia analisar corretamente a situação política nacional e internacional, o processo de crise da ditadura e a dinâmica da luta de classes.
Os entrevistados destacam também a defesa que a Libelu fazia de uma arte que não fosse uma mera manifestação de estética propagandista. Os trotskistas são conhecidos por defender a necessidade da liberdade da arte. Um dos entrevistados afirma que era uma lição de Trotsky, seguida pelos militantes da organização, a ideia de que a arte se legitima por ser arte, não por ser um panfleto. O documentário se remete ao famoso cartaz com um gato azul e os dizeres “nem todos os gatos são pardos”. Essa é possivelmente a imagem mais famosa associada à Liberdade e Luta.
O documentário destaca o papel desta organização de juventude na luta contra a ditadura, mostrando como a organização foi alvo de críticas por membros do governo. Segundo mostra-se no documentário, a Liberdade e Luta chegou a ser citada em programas de ficção e em entrevistas na televisão e ganhou destaque de capa e inclusive uma matéria crítica (e mentirosa) na revista IstoÉ. No contexto de sua luta, seja nas falas da esquerda reformista ou da burguesia e seus lacaios, a Libelu era vista como o grupo mais “radical” e, diante do seu rápido crescimento, os ditadores de plantão a enxergavam como algo perigoso. No documentário a repressão ganha um rosto: o coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública de São Paulo.
Um dos destaques da atuação política de sua militância, apontado com precisão no documentário, foi o papel da Libelu na ampla difusão da palavra de ordem “Abaixo a ditadura”. A Liberdade e Luta foi a primeira organização a levantar essa palavra de ordem, que, embora tenha ganhado rapidamente o apoio das massas, foi combatida pelas demais organizações de esquerda. Como desculpa diziam que os trabalhadores não estariam prontos para a consigna ou que defendê-la faria com que piorasse a perseguição e a repressão contra a esquerda. Isso é bastante semelhante ao que aconteceu com o “Fora Bolsonaro” na conjuntura atual, combatido não apenas pelos reformistas e stalinistas, mas inclusive por setores da esquerda que em outro momento ajudaram a construir a Libelu.
A questão das trajetórias dos antigos militantes da Liberdade e Luta é algo apresentado com destaque no documentário. A maioria seguiu rumos profissionais ou mesmo político diversos, vindo inclusive a trabalhar em órgãos da grande mídia ou migrando para posições de direita, como Magnoli, ou assumindo o papel de gestor do capital, como Palocci. Um elemento discutido no documentário é justamente a participação de antigos militantes da organização no governo Lula, embora esclareça que eles não representavam a Libelu, e haviam abandonado a tradição política e teórica trotskista.
Um tema pouco trabalhado no documentário é a relação da Liberdade e Luta com o PT e a OSI, que aparece em brevemente. Não há menção ao fato de a experiência e a história da Libelu ter impulsionado a construção de outras organizações nos últimos trinta anos, como a Juventude Revolução e a Juventude Marxista, bem como uma nova Liberdade e Luta. Com isso, a importância da relação da construção de uma organização de juventude com um partido revolucionário é pouco trabalhada, bem como a atuação militante dentro do espaço que era a expressão política dos trabalhadores organizados, o PT. Além disso, a reflexão sobre a relação dos antigos militantes da Libelu com o governo Lula é apresentada de forma bastante apressada, limitando-se a comentários rasos sobre a presença dessas pessoas em alguns cargos e sobre a figura de Palocci.
Apesar de suas limitações, o documentário permite importantes reflexões, como sobre o papel central das organizações de juventude na formação dos revolucionários, se constituindo como escola na construção de quadros nas lutas dos trabalhadores. Embora entre os entrevistados a maior parte não tenha seguido na militância revolucionária, outros tantos quadros formados naquela conjuntura seguiram na luta pela construção de um partido trotskista, seja em um primeiro momento na OSI, seja na Esquerda Marxista, herdeira dessa história. Coube à Esquerda Marxista, além de manter viva a tradição revolucionária, fundar em 2016 uma nova organização de juventude que retoma a tradição da antiga Libelu e carrega o nome Liberdade e Luta.
Possivelmente o principal limite do documentário está na opção política de não colocar em cena aqueles que seguiram pelo caminho da revolução. Os únicos entrevistados que seguiram militando são Sokol e Turra, dirigentes da tendência O Trabalho, que, a despeito de sua história de luta, abandou a teoria trotskista para se tornar um apêndice do reformismo petista. Além disso, o documentário em muitos momentos parece estar mais interessado em entender as motivações que levaram Reinaldo Azevedo, que sequer militou na Libelu, e Demétrio Magnoli a se tornarem reacionários e Antônio Palocci, que teve pouco importância como dirigente da Libelu, a ter se integrado politicamente à ordem burguesa. Os revolucionários que seguem lutando pela construção do partido revolucionário e pela derrubada do capitalismo não têm voz no documentário.
A história da Liberdade e Luta é uma lição para a organização revolucionária, seja por mostrar a importância fundamental dos acertos teóricos e políticos, seja por expor o resultado das pressões que a sociedade capitalista impõe sobre os militantes. Por isso a importância da coerência teórica e da defesa dos princípios, algo que motivou a geração que construiu em seus primeiros anos a Libelu. Mesmo que muitos daqueles militantes tenham seguido o caminho mais fácil — se deixando cooptar pela institucionalidade burguesa ou mesmo migrando para o outro lado da trincheira —, uma geração de revolucionários se forjou na Liberdade e Luta no final da ditadura e permanece construindo o partido revolucionário. Esse é a herança teórica e política da Esquerda Marxista, que nos remete ao poema de Paulo Leminski, citado no documentário: