Desde a sua campanha eleitoral, Jair Bolsonaro apresentou a universidade pública como um problema a ser combatido, pois supostamente estaria tomada por militantes de esquerda. Chegou a ser noticiada pela imprensa a preocupação de alguns assessores do então candidato de que as medidas a serem implementadas pelo governo poderiam causar o que chamaram de “rebelião” nas universidades. Se tal preocupação realmente existia, não se pode saber ao certo; mas a indicação de Ricardo Vélez Rodríguez como ministro mostrou quais os rumos que o atual governo pretende dar à educação no Brasil. Ao nomear um professor universitário sem experiência em gestão e seguidor das ideias reacionárias de Olavo de Carvalho, Bolsonaro deixou claro que são suas prioridades a pauta sobre “costumes” e a abertura das portas para a privatização, e que não dará importância à ampliação de investimentos na melhoria da educação. Ao apresentarem os professores como inimigos da educação e afirmarem que há recursos em exagero investidos neste campo, presidente e ministro mostram que está entre suas metas instalar um clima de perseguição no espaço acadêmico. Em suma, a composição do MEC foi uma declaração de guerra do novo governo às universidades.
Já nas primeiras semanas de governo ocorreram anúncios e ataques que deixaram explícita essa perspectiva para a educação. O caso mais emblemático foi o anúncio da chamada “Lava Jato da Educação”: trata-se de uma parceria entre os ministérios da Educação e da Justiça, cujo objetivo, segundo as palavras do próprio presidente da república via Twitter, é apurar “indícios de corrupção no âmbito do MEC em gestões passadas”. Tais indícios, de acordo com as poucas informações divulgadas, estariam relacionados a favorecimentos indevidos no Programa Universidade para Todos (ProUni), desvios de verba pública no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) envolvendo o sistema S (Senai, Senac, Sesi etc.), concessão ilegal de bolsas de ensino a distância, e irregularidades em universidades federais (sem mencionar que tipo de irregularidades ou quais universidades). Essa generalização de supostas denúncias, sem especificar quais são as instituições envolvidas, e sem explicar nada em detalhes, mostra a disposição do governo em fazer um amplo ataque a toda a educação em todos os níveis de ensino. Está claro que esse tipo de ação de Bolsonaro, Moro e Vélez tem fins muito mais midiáticos do que uma efetiva preocupação com o uso de recursos públicos.
A caçada a supostas irregularidades no funcionamento das instituições de ensino públicas e privadas influencia diretamente o funcionamento das universidades, principalmente diante da ameaça de não ter reconhecidos os resultados das eleições de reitoria que serão realizadas nos próximos meses. Em sua campanha, Bolsonaro e seus assessores insistiram no combate ao perfil ideológico dos reitores, sugerindo que as universidades federais estariam tomadas por gestores de esquerda. Embora essa avaliação dos atuais governantes não passe de um delírio, afinal o perfil dos reitores sempre foi e continua sendo bastante conservador, poderá afetar as poucas universidades que atualmente são de fato geridas por blocos formados por setores de esquerda, como é o caso da UFRJ e da UFAL. O ministro Ricardo Vélez, numa entrevista à revista “Veja”, defendeu que, para a escolha dos reitores, deveria ser criado um “banco de currículos e ter um comitê que escolhesse os três melhores candidatos”. Os nomes seriam apresentados ao ministro ou ao presidente, que escolheriam o dirigente máximo das instituições. Tal proposta lembra bastante os interventores indicados nos tempos da ditadura.
Essas ações do novo governo não surgiram do nada. Nos últimos anos vem sendo realizado um profundo ataque à autonomia das universidades. Tem sido recorrentes assédios sistemáticos do Ministério Público e do Poder Judiciário em busca de supostas irregularidade, como a investigação sobre desvios de verbas no ensino à distância da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que levou ao suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier. Outro caso emblemático tem sido o uso de denúncias sem consistência para forçar a retirada de um campus do Instituto Federal Catarinense (IFC) de dentro de um assentamento da reforma agrária, onde residem cerca de mil e quinhentas famílias, na cidade de Abelardo Luz, no oeste de Santa Catarina, alegando ingerência do MST na gestão do campus. Para completar esse quadro, entre outras situações pode-se citar a ação ilegal da Justiça Eleitoral dentro das universidades durante a última eleição presidencial, em busca de materiais que denunciavam justamente a escalada autoritária em andamento.
Assim como as perseguições, o problema da eleição de reitoria nas universidades não é exatamente uma novidade. Ainda no governo Temer houve ameaças de desrespeitar o resultado de algumas consultas realizadas em universidades, como na UNIFESP e na UFABC. Coube também ao governo Temer o trabalho sujo de atacar a autonomia na escolha dos reitores nas universidades, no final de seu mandado. Por meio da Nota Técnica nº 400, de dezembro de 2018, o governo sinaliza que serão invalidados processos de consulta à comunidade universitária que adotem votação paritária entre docentes, técnicos administrativos e estudantes. O referido documento aponta que consultas com “peso dos docentes diferente de 70% será ilegal, e deve ser anulada, bem como todos os atos dela decorrentes”. Essa orientação é um ataque frontal a um processo normalmente realizado nas universidades, por meio de consultas prévias, com paridade entre os três segmentos, organizado por seus representantes (em algumas instituições, pelos sindicatos e entidades estudantis), que depois é submetido à apreciação do colegiado superior da instituição (cuja composição é de 70% de docentes). O colegiado superior então delibera pela conformação da lista tríplice, referendando como vencedor o candidato mais votado na consulta prévia. A nota técnica de Temer proíbe expressamente este processo. Numa crítica direta a essa forma de escolha dos reitores, pactuada desde o final da ditadura entre os segmentos que vivem o espaço universitário, Ricardo Vélez, referindo-se aos reitores, afirma que “o sindicato, que é da CUT, o elege e ele fica refém”. Nessa mesma entrevista, concedida à revista “Veja”, o ministro aproveitou para criticar o ANDES, representante dos docentes das universidades, se referindo ao sindicato como “monstrengo que persegue o reitor”.
Como se não bastasse atacar o princípio da autonomia das universidades, no pacote de Bolsonaro há ainda a possibilidade de cobrança de mensalidades. Paulo Guedes teria inclusive apresentado os cálculos do que o governo poderia arrecadar, caso as universidades federais passassem a cobrar mensalidade dos alunos de maior renda. Em paralelo, com a vigência da Emenda Constitucional Nº 95, que impõe o teto de gastos à educação e outras áreas, as universidades não têm a possibilidade de realizar novos investimentos ou receber mais recursos em sua matriz orçamentária. Com o orçamento hoje vigente, as instituições federais de ensino conseguem no máximo se manter em funcionamento, o que, no médio prazo, impedirá principalmente investimentos em manutenção de prédios e equipamentos. Em pouco tempo casos como o incêndio no prédio do Museu Nacional poderão se tornar corriqueiros. E como se não bastasse esse cenário trágico, a possibilidade das terceirizações ilimitadas, também herança do governo Temer, deve ampliar nas instituições de ensino a presença de fundações privadas e até mesmo de empresas, cujos funcionários poderão assumir serviços dos mais diversos, como arquitetura e projetos, comunicação institucional e informática.
O cenário apresentado e pretendido pelo governo Bolsonaro, dando continuidade aos ataques iniciados por Temer, é de uma universidade elitizada, com parte de seus serviços realizados por entes privados, sem autonomia didático-científica e com reduzido espaço de participação da comunidade acadêmica em suas decisões. O ensino de qualidade, principal marca das universidades e dos institutos federais, deve estar voltado apenas para uma parcela da população, e a produção de conhecimento, além de responder diretamente aos interesses do capital, não deverá ser socializada para o conjunto da sociedade. O projeto de Bolsonaro e seu ministro, expressando sua subserviência aos interesses do capital internacional, prevê a transformação das universidades federais em centros de excelência em ensino e pesquisa voltados para a formação de uma elite acadêmica e social. Não seria permitido, portanto, aos trabalhadores e à população pobre acessar esse tipo de instituição.
Esse projeto nefasto, que impede o acesso da maioria da população à educação superior e entrega a produção do conhecimento aos interesses privados, somente poderá ser barrado pela luta organizada dos trabalhadores e da juventude. Contudo, a esquerda reformista vacila diante desses ataques. Como principal exemplo disso podem ser citadas as ações dos governos do PT, que, além de escoar dinheiro público para setores privados por meio de programas como o PRONATEC e o PROUNI, não fez nada em relação à democracia interna das universidades. Pelo contrário, os governos de Lula e Dilma não se dispuseram a pôr fim à legislação vigente, herança do governo FHC, que impõe a lista tríplice e o maior peso dos docentes nos processos eleitorais das universidades. Lula e seu ministro Haddad se limitaram a incorporar tais reivindicações dos trabalhadores em educação e dos estudantes somente no processo de criação dos institutos federais, sem tocar no processo de escolha de reitores nas universidades.
O outro problema da esquerda reformista é a defesa do atual projeto de universidade, mostrando sua completa adaptação às instituições burguesas. Diante dos ataques às liberdades democráticas e aos direitos dos trabalhadores, cabe aos marxistas defenderem essas conquistas. Contudo, a esquerda reformista confunde a defesa da manutenção de conquistas imediatas com a aceitação das atuais estruturas das universidades, que dificultam a participação da comunidade acadêmica e são coniventes com o processo de privatização em curso. Cabe aos marxistas a defesa de uma refundação completa das universidades, e não a sua reforma por meio de ações como cotas, ampliação de vagas em órgãos colegiados e a fiscalização das ações das fundações privadas e empresas terceirizadas. Essa estratégia de reformas do espaço universitário é um caminho para a derrota.
O espaço universitário expressa as contradições da sociedade capitalista e, com mediações das mais variadas, a exploração de classe da burguesia. Esse modelo de universidade tem como tarefa mais evidente a formação de força de trabalho, também cabendo a ela auxiliar o capital no processo de produção de mercadorias, desenvolvendo não apenas novas tecnologias, como também métodos de pesquisa e diagnósticos sobre diferentes aspectos da sociedade. Para responder aos interesses do capital, a universidade, ainda que pública e gratuita, precisa ser um espaço elitista, de liberdades democráticas restritas e que controla a participação política de trabalhadores e de estudantes. Essa universidade não interessa aos trabalhadores, devendo ser colocada como tarefa imediata a derrota do projeto de Bolsonaro e Vélez, o que se concretiza no combate à Lava Jato da Educação e ao avançado processo de privatização.
Cabe aos marxistas, ao mesmo tempo que lutam em defesa das liberdades democráticas e dos direitos conquistados, apontar para um novo projeto de universidade, que seja pública, gratuita e para todos. Um programa de reivindicações imediatas passa pela defesa da eleição direta de reitores, pela ampliação de vagas para todos os jovens que queiram cursar uma universidade, por uma política de permanência que atenda todos os estudantes, pela defesa intransigente da autonomia didático-científica das universidades, contra qualquer cobrança de mensalidade e taxas e contra todas as formas de privatização. Esse programa mínimo deve estar associado à luta por uma transformação profunda do espaço universitário, plenamente voltado aos interesses da sociedade e não do capital privado, que garanta o apoio integral à vida estudantil, a ampla socialização do conhecimento produzido e por uma gestão baseada na permanente mobilização da comunidade nas decisões e na gestão. Essa luta somente será vitoriosa se estiver associada à luta mais ampla pela derrubada do Estado burguês e pelo fim do capitalismo.