Neste ano do centenário do PCB, é importante retomar um dos momentos mais trágicos da sua política de colaboração de classes. O golpe de 1964 é resultado direto dos vacilos políticos e teóricos do PCB, que, diante de sua aliança com a burguesia “nacional” e confiando nas instituições do Estado, não preparou organizativa e politicamente os trabalhadores para enfrentar a ofensiva das classes dominantes.
Naquela conjuntura, a quase totalidade da esquerda defendia não apenas o governo João Goulart diante da ameaça de golpe, como também compartilhava com esses setores da burguesia uma estratégia nacionalista e de desenvolvimento do capitalismo. O PCB, bem como o recém-criado PCdoB, ambos stalinistas, e outros grupos menores, se colocavam como parte de um bloco com a burguesia e direcionavam a organização dos trabalhadores não para a luta independente por seus direitos ou mesmo para um governo próprio da classe, mas de adesão política ao governo João Goulart.
Joao Goulart havia sido eleito defendendo o programa centrado nas “reformas de base”, que colocou como prioridade das ações do governo quando assumiu a presidência após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961. Tratava-se de um conjunto de medidas que tinham como objetivo reestruturar as instituições políticas, jurídicas e econômicas do país. Entre as principais reformas estavam a agrária, a administrativa, a constitucional, a eleitoral, a bancária, a tributária (ou fiscal) e a universitária (ou educacional). Eram propostas de reforma do capitalismo dentro de uma perspectiva nacionalista. No Comício da Central, em 13 de março de 1964, João Goulart afirmava:
“O caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada, inteiramente superada pela realidade dos momentos em que vivemos”.1
Embora se pretendesse que fossem realizadas dentro do capitalismo, essas reformas certamente não eram o caminho para a “paz social”. As empresas imperialistas instaladas no Brasil não estavam dispostas a ceder e pagar o preço que Goulart propunha. Muito menos os latifundiários estavam dispostos a entregar suas terras, e havia uma perspectiva de guerra no campo. Boa parte da burguesia industrial estava junto com o imperialismo, do qual dependia. Assim, o programa de Goulart, ainda que o presidente não o desejasse, era uma declaração de guerra e só poderia ser aplicado derrotando a burguesia imperialista e a burguesia compradora e latifundiária na luta de classes. Mas não era esse o caminho desejado por Goulart.
O PCB, dentro de sua perspectiva de “revolução por etapas” e de que no Brasil ainda existia um modo de produção com características feudais, defendia que era preciso defender as “reformas de base” com um caráter estratégico. Luís Carlos Prestes, principal liderança do partido, afirmava em março de 1964, depois do Comício da Central:
“lutar pelo socialismo é lutar pela vitória da revolução nacional e democrática e acabar com os obstáculos que impedem o progresso de nosso país, é lutar pela expulsão de nossa terra dos monopólios imperialistas, é lutar pela revolução agrária. Temos consciência que é assim que estamos lutando pelo”.2
Portanto, seria preciso fazer uma revolução nacional que consolidasse o Brasil como nação capitalista e, numa etapa posterior, lutar pelo socialismo. Por isso o PCB tentava uma aliança com setores da burguesia que, concretamente, estavam do outro lado da barricada, desarmando politicamente os trabalhadores e o campesinato.
Essas análises etapistas desenvolvidas pelo PCB parecem ignorar o fato de que o Brasil vinha passando por um processo de desenvolvimento econômico e industrial nas décadas anteriores. Embora sem fazer uma revolução burguesa aos moldes dos países europeus, o Estado brasileiro cumpriu o papel de fomentar a industrialização e diversificar os diferentes ramos da economia. Com isso, no Brasil que chega a 1964, convivem formas de produção das mais diversas, com regiões e ramos da economia atrasados ao lado de uma indústria com setores bastante avançados. Como consequência, o desenvolvimento desigual e combinado colocava para o Brasil tensões internas que se chocavam com os interesses imperialistas.
Nesse contexto, para os militares, colocava-se no horizonte a defesa da segurança nacional, que, no âmbito interno, identificavam que estava ameaçada pelos partidos de esquerda e outras organizações dos trabalhadores e que se concretizava na disputa de dois projetos burgueses para o desenvolvimento do país. Um deles, cujo representante mais conhecido era o presidente João Goulart, apontava para um projeto de desenvolvimento da indústria nacional e centrado em medidas de melhoria das condições de vida da população por meio das “reformas de base”. João Goulart afirmou no Comício da Central, em março de 1964, que seu lema era “progresso com justiça e desenvolvimento com igualdade”.3 Esse projeto tinha o apoio da maior parte dos setores da esquerda e das organizações dos trabalhadores, que colocavam sua ação e programa a reboque desse campo burguês.
O outro campo burguês defendia um projeto de nação atrelado aos interesses do imperialismo, no qual a economia brasileira estaria dominada por países estrangeiros e empresas multinacionais. Esse projeto era defendido abertamente pela burguesia. Por exemplo, em novembro de 1961, a FIESP declarava “que a taxa de formação de capitais nacionais é reduzida e, portanto, devemos incrementá-la com recurso de fora”.4
O Exército, como em todos os países latino-americanos e na maioria dos países dominados, cumpria nisso um papel central. A maioria dos seus altos oficiais tinha se formado por meio de uma luta política ferrenha em seu interior contra a influência do PCB e de Prestes, que carregava uma aura de militar com larga experiência de batalha na “Coluna Prestes”, que era admirada e estudada. Essa influência era combatida por oficiais que se passaram à direita e tinham combatido na coluna, assim como por um programa de formação militar, política e ideológica conduzida pelo imperialismo dos EUA.
Um manifesto assinado por membros da cúpula militar em janeiro de 1963 afirmava que “o governo está violando a constituição permitindo que o comunismo ilegal desenvolva livremente sua atividade revolucionária e nitidamente contrária à carta magna do País”.5 Nesse período, havia mobilizações de trabalhadores em diferentes categorias, influenciadas por trabalhistas e comunistas e, mesmo no interior das Forças Armadas, um setor apoiava o projeto nacionalista.
O setor majoritário entre os militares, municiado pelo imperialismo dos EUA, acreditava que o projeto nacionalista poderia significar um primeiro passo para uma transição ao socialismo. O apoio do PCB ao governo João Goulart e o fantasma do comunismo colocavam os militares diante da necessidade de garantir a defesa da ordem burguesa e do alinhamento com os Estados Unidos. Em sua posse como presidente, em abril de 1964, Humberto Castelo Branco se referia ao golpe como um “remédio para os malefícios da extrema-esquerda”.6
Com a vitória em 1964, os militares iniciam o projeto de desenvolvimento marcado pela repressão e pelo maior atrelamento ao imperialismo. Nesse contexto, a esquerda se vê reprimida pelo novo regime e em crise diante do desastre teórico e político da maioria de suas análises. As diferentes organizações políticas até então existentes passam por um processo de fragmentação. PCB, PCdoB, Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP) e mesmo o pequeno Partido Operário Revolucionário (POR) trotskista sofrem por cisões das mais diversas, que, na maior parte dos casos, enfatizavam alguns dos erros cometidos. Contudo, mesmo diante desse processo de discussão, poucas organizações, sejam as já existentes ou as novas, fizeram um efetivo balanço sobre as razões da derrota de 1964.
O PCB continuou a apontar que o centro da política deveria ser a manutenção da unidade com a burguesia. Em seu balanço, o partido chegou a apontar que teria tido uma postura sectária ao exigir de João Goulart mais do que seria possível naquela conjuntura. Em resolução do congresso realizado em 1967, o PCB afirmava que o partido teria deixado “de lado a necessidade de formular soluções concretas para as questões colocadas na ordem do dia, e apresentar ao governo e às massas alternativas viáveis que contribuíssem para o encaminhamento dos problemas e avanços do movimento nacionalista e democrático”.7
Portanto, teria faltado ao PCB, segundo seu próprio balanço, ser ainda mais parceiro da governabilidade de João Goulart. O desdobramento político dos equívocos do PCB seria o de, durante a ditadura, defender uma frente “bem mais ampla do que era aquela que tínhamos em mira antes do golpe”, que tivesse a participação não apenas da “burguesia nacional”, mas até mesmo de “outros setores das classes dominantes, cujos interesses são contrariados pela política do governo ditatorial”. 8
Como consequência dessa política, o PCB procurou construir nos sindicatos a unidade com o sindicalismo “pelego”, ignorando as formas de expressão que surgiram de modo independente na base do movimento operário desde o final da década de 1960. Por outro lado, ao buscar a unidade com os setores “democráticos” da burguesia, o PCB acabou priorizando ações políticas por dentro do partido de oposição consentida pelo regime, o MDB. O processo de adaptação à legalidade burguesa levou o PCB à sua completa falência e ao abandono do marxismo, se mantendo atrelado ao PMDB mesmo diante do processo de construção do PT e da CUT, na década de 1980.
Contudo, não era apenas o PCB que manifestava equívocos políticos. Carlos Marighela, que foi um dos mais destacados militantes da luta armada durante a ditadura, não compreendeu todas as lições do golpe de 1964. Em debate ainda dentro do PCB, antes de ser expulso do partido e fundar a ALN, corretamente fez um balanço negativo da atuação do PCB diante do golpe, afirmando em 1966:
“a resistência tornou-se impossível porque nossa política – no essencial – vinha sendo feita sob a dependência da política do governo. Quer dizer, sob a dependência da liderança da burguesia, ou melhor, do setor da burguesia que ocupava o poder”.9
Contudo, mesmo com esse balanço, Marighela não abandonou a estratégia de unidade com a burguesia, afirmando:
“sustentamos – como antes – a necessidade de nossa aliança com a burguesia nacional, levando em conta não somente tudo o que dela nos aproxima, quando se trata de objetivos comuns na defesa de interesses nacionais, mas também tudo o que dela nos separa em questões de classe, tática, métodos, ideologia e programa”.10
Nos anos seguintes ao golpe, além da fragmentação das organizações de esquerda e da continuidade da política de unidade com a burguesia defendida pelo PCB, um elemento importante foi a aposta que pequenas organizações fizeram na luta armada. Essa forma de luta pouco avançou politicamente em suas ações, sendo marcadas por alguns assaltos a bancos ou em busca de armas, sequestros de diplomatas e, no campo, pela Guerrilha do Araguaia. Contudo, apesar disso, a luta armada acabou tendo um forte impacto negativo sobre uma esquerda fragmentada e incapaz de fazer uma análise coerente sobre o golpe.
Sob impacto da Revolução Cubana e de processos de libertação em outros países, uma parcela significativa da esquerda brasileira abandonou a luta pela organização dos trabalhadores e da juventude. O trabalho clandestino, fundamental no contexto de ditadura, passou a se centrar na organização de conspirações em pequenos círculos, na maior parte dos casos isolados das lutas cotidianas dos trabalhadores. Esses grupos tiveram pouca importância nas principais lutas travadas nos primeiros anos da ditadura, protagonizadas pela juventude e pelas greves operárias em Contagem e Osasco, especialmente em 1968. Esses grupos defensores da luta armada estava completamente desestruturados quando eclodiram as grandes lutas de massas na segunda metade da década de 1970.
Nesse contexto, em que o stalinismo continuava a defender o etapismo e a conciliação e a luta armada ganhava espaço na esquerda, novamente foram os trotskistas a dar a melhor resposta à situação política. Em 1971, a Organização Comunista 1º de Maio (OC1M) fazia uma caracterização das mobilizações ocorridas em 1968, em que teria se observado “a classe operária e os trabalhadores de um modo geral se manifestando em todo país, por cima e contra as direções pelegas, em assembleias, greves, passeatas e ocupações de fábricas. O movimento estudantil, ao qual se ajuntaram professores, intelectuais, jornalistas e artistas, interveio de forma radical, caminhando cada vez mais rumo à união de suas lutas com as da classe operária”.11
No documento, a OC1M também fazia uma avaliação da atuação do PCB:
“O pecezão que no período pré-golpe de 64 retinha os aparelhos que serviam de canais para a manifestação das massas, que era direção e atuava como freio dessas manifestações, com o seu comportamento pelego, decorrente de propostas puramente reformistas, esse pecezão, em 1968, recolheu sua cabeça ao casco para que as massas não a cortassem”.12
Esse documento de 1971 também buscava apresentar uma análise da luta armada, destacando seu impacto sobre setores juventude. Segundo a OC1M, essa concepção militarista “teve por causa a crítica incompleta, parcial, da atuação do PCB, de onde saíram os principais dirigentes das organizações guerrilheiras (Marighella, Mario Alves etc.) mas, fundamentalmente, a ausência de uma organização de direção revolucionária que permitisse agregar a jovem direção que se forjou após 1964”.13
Como alternativa, a OC1M, uma jovem organização trotskista, apontava que seria necessária “a constituição dos organismos independentes de combate da classe operária, os organismos de unificação, municipais, regionais, nacional, as oposições sindicais, os comitês de greve, os comitês de empresa, e sua organização máxima de direção revolucionária, o partido operário, indissoluvelmente fundamentado na concepção internacionalista da unidade do proletariado e da revolução, e da organização da IV Internacional”.14
Esse e outros grupos tiveram papel importante no processo de reorganização da esquerda, a partir de um balanço da experiência do golpe e dos erros cometidos pela esquerda diante do golpe e da ditadura, vindo a convergir na fusão e criação de organizações que participaram ativamente na construção do Partido dos Trabalhadores, em particular a Organização Socialista Internacionalista (OSI), fundada em 1976.
Na atual conjuntura, ao fazer um balanço da atuação do PCB e de maior parte das organizações de esquerda diante do golpe de 1964 e da ditadura, é possível tirar algumas lições. Em primeiro lugar, a necessidade da organização independente dos trabalhadores, que coloque como elemento estratégico o combate à ordem capitalista e a defesa da revolução. Em segundo lugar, o desastre que significa a conciliação de classes, enxergando a burguesia como aliados, como o fizeram o PCB em 1964 e o PT em 2002. Por fim, a necessidade de intervir na luta concreta dos trabalhadores, combatendo posturas voluntaristas, como a das guerrilhas durante a ditadura ou daqueles que no atual contexto preferem marcar posição e não disputar a consciência dos trabalhadores diante da candidatura presidencial de Lula. Esse é o básico não apenas para evitar um novo desastre político como o golpe de 1964, mas também para construir uma direção revolucionária dos trabalhadores, partindo da experiência da esquerda e do balanço de seus erros.1 João Goulart. Discurso no comício da Central. In: Carlos Fico. Além do golpe. Rio de Janeiro. Record, 2004, p. 286.
2 Novos Rumos, n. 264, 20-26 mar. 1964, p. 3.
3 João Goulart. Discurso no comício da Central. In: Carlos Fico. Além do golpe. Rio de Janeiro. Record, 2004, p. 286
4 FIESP. Posição sobre o capital estrangeiro. In: Carlos Fico. Além do golpe. Rio de Janeiro. Record, 2004, p. 234.
5 A Revolução de 31 de março. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966, p. 6.
6 A Revolução de 31 de março. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966, p. 33.
7 VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 52.
8 VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73.
9 Carlos Marighella. A crise brasileira. In: Caminhos da revolução Brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 237.
10 Carlos Marighella. A crise brasileira. In: Caminhos da revolução Brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 239-40.
11 OC1M. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão & Jair Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 388.
12 OC1M. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão & Jair Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 399.
13 OC1M. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão & Jair Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 416.
14 OC1M. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão & Jair Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 425.