Nas últimas semanas o governo Bolsonaro intensificou os ataques contra as instituições de ensino superior, afetando diretamente institutos e universidades federais. A política de bloqueio do orçamento afeta atividades básicas de funcionamento dessas instituições, que serão obrigadas a realizar cortes inclusive em atividades relacionas a ensino, pesquisa e extensão. Diante desses ataques, está em jogo a manutenção do já precário funcionamento público da educação superior.
Os trabalhadores das universidades acabam assumindo as mais variadas posições políticas diante dos ataques promovidos pelo governo, e o fato de terem uma formação acadêmica que se destaca no conjunto da sociedade gera uma particularidade: a maior parte desses trabalhadores se enxergam como intelectuais, ou seja, um segmento social que não se vê como parte de nenhuma classe e, por isso, teria a possibilidade de analisar de forma mais precisa, talvez até mesmo neutra, os problemas sociais e as disputas políticas que permeiam a sociedade. Embora sejam assalariados que, como qualquer trabalhador, precisam cumprir horários e produzir algum tipo de mercadoria, esses intelectuais se consideram – e muitas vezes assim são considerados pelo conjunto da sociedade – uma espécie de elite privilegiada em meio à exploração capitalista.
Essa constatação sobre o caráter de classe e postura assumida pela intelectualidade não é novidade. Em 1939, Trotsky se referia à “pequena-burguesia educada academicamente”, apontando que “seus preconceitos teóricos já tomaram uma forma acabada, desde os bancos da escola. Por conseguirem aprender uma grande quantidade de conhecimentos, tanto úteis como inúteis, sem ajuda da dialética, acreditam que podem continuar, sem problemas, a viver sem ela. Na verdade, prescindem da dialética somente à medida que não verificam, não limpam e não afiam teoricamente seus instrumentos de pensamento, e na medida em que não conseguem romper com o estreito círculo de suas relações cotidianas. Quando se veem confrontados com grandes acontecimentos, perdem-se facilmente e reincidem em seus hábitos pequeno-burgueses de pensamento” (Trotsky, Uma Oposição Pequeno-Burguesa no Socialist Workers Party, 1939).
Claro que há uma parcela de trabalhadores da educação superior que, embora também sejam vistos como intelectuais, encaram a universidade para além da atual institucionalidade e que, além de manter uma ativa prática política, entendem que somente a unidade dos trabalhadores na luta pelo socialismo poderá transformar efetivamente as instituições de ensino. Essa parcela da intelectualidade entende que são trabalhadores e que não são eles o centro da transformação revolucionária, ainda que possam cumprir algum papel auxiliando na mobilização do conjunto da classe. Contudo, esse setor, além de ser pouco numeroso, é marginalizado dentro do meio acadêmico, sendo seus representantes acusados de “doutrinadores” e “ideológicos” não apenas pela extrema direita, mas inclusive pelas parcelas “conservadora” e “crítica” da intelectualidade, que têm em comum, ainda que de diferentes formas, o combate ao marxismo e à revolução.
Parte dos “intelectuais conservadores” vem se posicionando de forma completamente covarde diante dos ataques vindos dos últimos governos, em especial a partir do segundo mandato da presidenta Dilma. Como resposta aos ataques, buscam se adaptar às políticas implantadas, propondo medidas que sirvam de paliativo diante da destruição da educação pública e gratuita. Esses setores não se importam com a ampliação do funcionamento de fundações privadas ou de empresas terceirizadas nas instituições de ensino públicas. O princípio básico das ações desses setores passa centralmente por não enfrentar as políticas governamentais, recuando a cada ataque, não se importando com a corrosão do caráter público e gratuito das universidades e institutos federais.
Convivendo nos mesmos espaços que os “intelectuais conservadores”, há outro grande grupo que poderíamos chamar de “intelectuais críticos”. Esse setor, diante dos ataques que vêm sendo perpetrados, rapidamente se posiciona contra as medidas do governo e se lança em suas redes sociais a manifestar sua indignação. Parte deles, inclusive, auxilia na análise da conjuntura política e do impacto que os ataques podem ter sobre as instituições de ensino. Contudo, esse setor apresenta pelo menos dois limites. Um primeiro limite tem a ver com o fato de não ter qualquer prática política, sem sequer se dedicar ao cotidiano da construção de seus sindicatos, participando de assembleias apenas de forma esporádica, normalmente quando se discute algo que lhe interessa diretamente. Sua atuação se dá muito mais em espaços paralelos, como fóruns de debate em que participam inclusive os gestores das instituições, que basicamente visam discutir a manutenção das instituições como estão agora, limitando-se à luta contra os ataques imediatos.
Um segundo limite dos “críticos” tem a ver justamente com a perspectiva que possuem sobre as instituições, ou seja, não enxergam a necessidade das mobilizações para além da resistência aos ataques conjunturais. Entendem que os ataques sofridos pelas instituições de ensino são nocivos unicamente na medida em que afetam seus próprios interesses, ao ameaçá-los enquanto elite produtora de conhecimento institucionalizado. Esses setores “críticos” pensam estrategicamente na melhoria da educação superior nos marcos do Estado capitalista, atuando politicamente de tal forma a se tornar gestores das instituições e, com isso, passar a aplicar uma política de limitadas reformas nos marcos da sociedade burguesa.
Ainda que esses setores “críticos” sejam aliados no combate aos ataques conjunturais promovidos pelo governo, sua luta se limita a uma melhoria superficial do espaço universitário como existe hoje. Escrevendo em 1910, Trotsky alertava para o processo de absorção da intelectualidade pelo capitalismo, recrutando “as forças intelectuais mais talentosas, aquelas com poder de iniciativa e força de raciocínio” (Trotsky, Intelligentsia e Socialismo, 1910). Trotsky apontava que a intelectualidade “depende para sua sobrevivência dos pagamentos provenientes do lucro industrial, da renda da terra ou do orçamento estatal, e, portanto, se configura como direta ou indiretamente dependente das classes capitalistas ou do Estado capitalista” (Trotsky, Intelligentsia e Socialismo, 1910).
Essas reflexões de Trotsky, aplicadas ao contexto atual das universidades, nos permite entender que tanto o intelectual “conservador” que se esconde atrás de suas mesas como aqueles que criticam superficialmente os problemas da universidade não estão fazendo outra coisa que não defender seus próprios interesses materiais. Além de não se reconhecerem como trabalhadores, querem se distanciar da rebelião que vem sendo gestada entre os demais trabalhadores. Trotsky apontava que “tais pessoas não querem e não podem ver que seus uniformes de trabalho só se distinguem dos macacões dos operários pelo corte mais caprichado” (Trotsky, Intelligentsia e Socialismo, 1910).
A postura de parte dos intelectuais “críticos” em combater o marxismo e a revolução está relacionada à incapacidade deste setor de se ligar ao movimento concreto da classe trabalhadora, suas lutas e suas organizações, entendendo que a mera exposição retórica de suas opiniões pode ter algum impacto na realidade, sem que precisem se somar à mobilização da classe. Trotsky apontava que a intensificação da luta entre o trabalho e o capital impede que os intelectuais cruzem “o campo em direção ao partido dos que defendem os trabalhadores. As pontes entre as classes estão quebradas e, para atravessar de um lado a outro, seria necessário saltar sobre um abismo que se torna a cada dia mais profundo” (Trotsky, Intelligentsia e Socialismo, 1910).
Mesmo com a profundidade dos ataques mais recentes promovidos pelo governo e pela situação de calamidade em que se encontram as universidades e institutos federais, é pouco provável que a intelectualidade lute para transformar radicalmente o espaço acadêmico. Uma parcela deve aprofundar seu processo de absorção pelo capital, cada vez mais buscando financiamento privado para seus projetos. Os intelectuais “críticos”, quando muito, organizarão palestras e atividades dentro dos muros das universidades, falando para eles próprios, enquanto pensam em formas de minimizar o impacto dos ataques sobre seus projetos, nem que para isso seja preciso legitimar o corte de bolsas para seus orientandos ou ser conivente com a demissão e os ataques a outras categorias, em especial os trabalhadores terceirizados.
O fato de construir mobilizações dentro das universidades não é de todo negativo, afinal propicia aos membros da comunidade acadêmica, em especial os estudantes, espaços de debate e formação. Essas atividades, além de permitirem a difusão de informações sobre a situação da instituição, podem se tornar espaços para pensar a universidade para além da atual institucionalidade. Contudo, estão longe de ser um espaço de organização da luta unitária dos setores que constroem a universidade, sendo mais limitados até mesmo que a atuação sindical.
Para combater os atuais ataques, a mobilização mais imediata passa pela luta contra os cortes, defendendo que, no mínimo, emergencialmente, o orçamento aprovado para o ano seja respeitado. Contudo, essa luta é insuficiente, na medida em que os cortes não são uma ação conjuntural do atual governo, mas a concretização da política do capitalismo para a privatização da educação superior. Seria um erro limitar o programa à reivindicação do cumprimento do orçamento aprovado, sendo preciso colocar no horizonte a luta pela educação pública, gratuita e para todos, garantindo vagas nas universidades a todos os jovens e a todos os trabalhadores da educação a estrutura necessária para a efetiva realização de seu trabalho.
É pouco provável que a intelectualidade “crítica” e muito menos a “conservadora” avance nesse sentido. Caberá aos estudantes, setor mais fragilizado no meio universitário, ainda sem os vínculos materiais que imobilizam a intelectualidade, levar essa luta até o final, construindo a unidade com os demais setores explorados no embate contra o capital. Por isso uma das lutas que se fazem necessárias no atual cenário passa pela garantia da plena autonomia de organização dos estudantes, apoiando inclusive materialmente suas mobilizações. Quanto aos intelectuais, cumprirão um importante papel se derem o apoio que os estudantes precisam e não atrapalharem a dinâmica de mobilização dos mais jovens. Essas mobilizações, se unificadas aos combates contra os demais ataques aos trabalhadores, podem colocar na ordem no dia não apenas a derrota das políticas do atual governo, mas sua derrubada e a luta pelo socialismo.