O Brasil que começou a ser pensado a partir da “revolução” de 1930 teria como marca, segundo aqueles mesmos “revolucionários”, a unidade em torno do Estado, devendo todos os cidadãos ser parte do projeto de nação então por eles proposto. Nesse sentido, o presidente Getúlio Vargas teria afirmado, em outubro de 1930, que “a Revolução vai realizar a obra de paz nacional que os chefes da política de reação não lograram obter”.
Os novos governantes falavam na necessidade de um projeto nacional centrado na unidade política, econômica e cultural, sendo encarada como estranha qualquer forma de dissenso; procurava-se ocultar as posições que não corroborassem a ideia de que o Estado seria o agente político primordial da nação. E buscava-se também ocultar que a “revolução” não passava de um golpe em meio à disputa entre frações da burguesia.
O pequeno grupo trotskista então constituído, a Liga Comunista (LC, que em 1934 passou a se chamar Liga Comunista Internacionalista e assumiu a sigla LCI), era uma das expressões de dissenso daqueles anos. O trotskismo era um movimento político criado na década de 1920, a partir das lutas internas no Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Sua origem se encontra na Oposição de Esquerda, surgida de críticas às políticas interna e externa da burocracia controlada por Stalin, especialmente a partir de 1923. No Brasil, o grupo foi criado a partir de cisões do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo em suas fileiras figuras como Joaquim Barbosa (ex-secretário do PCB para assuntos sindicais), João da Costa Pimenta (importante dirigente sindical), bem como Lívio Xavier e Mario Pedrosa.
Em janeiro de 1931, no documento intitulado “Aos trabalhadores do Brasil”, a LC afirmava que a “revolução” ocorrida poucos meses antes não passava de uma mudança de setor hegemônico burguês no controle do Estado. Neste documento a LC afirmava que, “no Rio Grande do Sul, a burguesia já se sentia bastante forte para arrebatar o governo da União das mãos do PRP [Partido Republicano Paulista]. Em Minas Gerais, a oligarquia dominante, com [Artur] Bernardes à frente, lutava pela hegemonia política que estava sendo exercida por São Paulo”. Segundo a análise da LC, a burguesia de um estado, se consegue conquistar essa hegemonia política, “dispõe de instrumentos mais aperfeiçoados para a exploração da massa oprimida”.
Segundo a LC, sob discurso de unidade da nação, “foi apeado do governo federal o partido mais representativo dos interesses da burguesia monopolizadora de São Paulo”. Os novos governantes, representantes da burguesia gaúcha “baseada na policultura, pecuária e indústrias correlatas”, necessitavam “assegurar mercados internos para a sua produção”, o que os levava a proclamar um “nacionalismo econômico”, “favorável ao povo” e “pelo barateamento da vida”.
Segundo os trotskistas, os “generais da revolução”, a serviço dos interesses da burguesia, colocavam como sua “missão histórica” a manutenção “da unidade burguesa do Brasil” e da “centralização do poder político, sob a forma de ditadura manifesta ou mascarada”. Portanto, sua “missão” passava por “manter essa unidade num país em que o desenvolvimento das forças produtivas, nos diferentes estados, se faz desigualmente, acelerado o processo de desagregação pela invasão do capital financeiro internacional”, livrando “a ‘pátria brasileira’ do desmembramento”.
Segundo documento da LC, escrito poucos meses depois, “a unidade nacional burguesa foi mantida graças à vitória da ‘Aliança Liberal’ [de Getúlio Vargas]. Suprimidos do cenário político alguns figurões mais comprometidos, o acordo geral da burguesia está sendo restabelecido à custa de uma opressão maior das classes pobres, reduzidas às mais duras condições de vida”. Nesse sentido, conclui a LC: “Esse acordo geral será no Brasil burguês a última forma conciliatória entre a centralização do Estado, processo econômico de desenvolvimento capitalista, e a forma federativa, garantia da unidade política”. Segundo os trotskistas, “a falência financeira do Estado, a redução das reservas de ouro, como efeito da política monetária do governo perrepista [referência ao PRP], a crise econômica da superprodução agrária e industrial, agravarão o grau de dependência do estado brasileiro à economia mundial imperialista”.
Como análise dos desdobramentos políticos, a LC aponta que “nenhuma fração da burguesia, por mais liberal que seja o rótulo, pode efetivar as promessas democráticas. A luta de classes é mais poderosa do que as abstrações do liberalismo político”. Nesse sentido, os trotskistas são claros em afirmar que “a burguesia não tem mais interesse direto na realização das reivindicações democráticas”, concluindo que o proletariado, a “classe verdadeiramente revolucionária”, em função do caráter internacional da sua luta contra a burguesia, é a única que “pode lutar pela liberdade, pela democracia”.
Partindo dessa análise, pode-se perceber algumas questões importantes para entender o período, e que mostram uma percepção apurada que tinham os trotskistas da conjuntura. Em seu documento combateram a noção de que o projeto dos supostamente revolucionários de 1930 seria consensual e que toda a nação caminharia unida rumo a um novo país. Em sua análise, os trotskistas mostraram que ao novo governo interessava a defesa dos interesses dos setores burgueses que representavam, e não os de uma “nação” em abstrato. Essa constatação é demonstrada pela repressão a algumas das lutas dos trabalhadores, ocorrida logo nos meses seguintes à “revolução”. No projeto de nação defendido pelos “revolucionários” de 1930 os operários deveriam ser apenas coadjuvantes.
Os trotskistas também mostraram que o novo governo não se caracterizava como uma efetiva ruptura em relação ao período anterior, mas a resposta política de alguns setores da burguesia diante das necessidades de superação das crises em curso, em especial as consequências daquela de 1929. Os setores burgueses procuraram se acomodar à nova situação, estabelecendo novas relações econômicas e políticas. Essa construção do consenso por parte das diferentes frações da burguesia foi fundamental para o apoio ao golpe que deu origem ao Estado Novo, em 1937. O projeto de industrialização que começava a se estruturar naquele contexto parece ter contrariado somente os interesses políticos de poucos setores oligarquias.
Os trotskistas também apontavam que a condução do processo político realizado pelos diferentes setores da burguesia não respondia às demandas dos trabalhadores. Por isso, era tarefa dos trabalhadores lutar por questões bastantes elementares como a liberdade de organização, a jornada de trabalho de oito horas, o direito de greve, entre outras. Muitas das reivindicações que a memória histórica atribuiu ao getulismo vinham mobilizando o proletariado desde o começo do século e fizeram parte das lutas travadas pelos trabalhadores ao longo das décadas de 1920 e 1930. Essas conquistas não foram uma manifestação de interesses democráticos da burguesia, mas conquistas das lutas de décadas por parte dos trabalhadores.
O Estado getulista, diferente do que pretendia o discurso dos vitoriosos da “revolução” de 1930, não era um consenso entre todos os brasileiros nem representava o conjunto da “nação”. Além disso, a história das conquistas dos trabalhadores é marcada por lutas e pela repressão do Estado. Não se resume, portanto, a concessões do governo “revolucionário”, mas é parte de uma história de suas mobilizações e lutas.