Imagem: Internacional, por El Lissitzky (1923)

Os percalços da revolução

Recebi com um misto de surpresa e tristeza a notícia da cisão na Organização Comunista Internacionalista (OCI). Entendo que uma cisão sempre causa um certo trauma, afetando o conjunto da militância, e certamente é pior quando antigos camaradas mostram práticas que nada condizem com o que se espera da atuação dos revolucionários. Minha primeira mensagem, portanto, é de solidariedade com os camaradas que, permanecendo na luta pela construção do partido revolucionário, não se deixaram abalar pelas ações divisionistas da direção internacional e de seus representantes locais.

Os debates que motivam as ações da direção internacional para excluir a OCI não são recentes nem novidade para qualquer pessoa que tenha passado pela Internacional Comunista Revolucionária (ICR). Pelo contrário, são temas que a organização brasileira sempre apontou e se dedicou a fazer o debate de forma fraterna e com respeito às instâncias da internacional. O que me surpreende é o fato de a direção internacional ter resolvido agora entender que esses eram temas graves que poderiam motivar uma ruptura. E, também, que dirigentes que há tempos defendiam de forma consistente e coerente as posições da OCI passem, quase que da noite para o dia, a defender as posições da internacional. Certamente, a mudança de opinião faz parte da vida da militância, mas isso acontecer de forma tão rápida e brusca é algo que mostra a fragilidade com que esses camaradas encaram seu papel como dirigentes de uma organização revolucionária.

Parece que a ICR passa pelo mesmo problema relacionado ao seu crescimento que outras tantas organizações enfrentaram em momentos anteriores. Observando que havia um importante espaço para seu crescimento, o grupo que agora se chama ICR se lançou a uma importante campanha, procurando aglutinar segmentos diversos que se colocavam como comunistas. Essa campanha, correta em sua perspectiva, sempre colocou no horizonte a necessidade de entender que aproximaria um conjunto de jovens, ativistas, intelectuais e outros setores dos mais diversos e plurais. E que isso, no médio prazo, demandaria uma depuração, consolidando aqueles que se colocavam como compromisso a construção do partido revolucionário. Contudo, para a ICR, parece que a necessidade da depuração ficou em segundo plano, deixando-se levar pelo sucesso e pelo crescimento massivo momentâneo de suas seções. Com isso, veio a autoproclamação, se considerando a internacional do proletariado, suas seções se achando os partidos da classe trabalhadora de cada país e seu padrinho teórico, Ted Grant, sendo artificialmente alçado a maior de todos os dirigentes do trotskismo.

Esses delírios de grandeza cabem no papel, mas são incapazes de moldar a realidade. No mundo real, os partidos autoproclamados pela ICR continuaram a ser o que sempre foram, ou seja, pequenos grupos de propaganda com intervenção em setores da vanguarda. O fato de assumirem nomes pomposos e agitar chavões retóricos em nada mudou a realidade. Nesse ponto, a então seção brasileira teve mais clareza do que se passava na conjuntura, assumindo um senso de proporção e continuando no seu papel de ser uma corrente que contribuiria para a construção de um partido revolucionário, usando a campanha internacional não para destacar seus números em tabelas, mas para construir uma organização revolucionária. Quando mudou de nome, assumindo a identidade de OCI, teve o cuidado de não se autoproclamar um partido.

Outro problema relacionado ao crescimento sem depuração, que visava artificialmente se assumir como partidos com influência de massas, passou pela pluralidade que se viu entre os camaradas que iam se incorporando. Se, em cidades pequenas do Brasil, a procura era bastante plural – reunindo desde revolucionários legítimos até pessoas sem militância, que se referenciavam pelo modelo social-democrata escandinavo ou se informavam sobre marxismo por influenciadores digitais stalinistas –, é possível ter a dimensão da diversidade que apareceu nas grandes capitais europeias. Nesse cenário, haveria dois caminhos possíveis: o primeiro, deixar que a própria prática política fizesse uma depuração, por meio da intervenção em comum; e o segundo, incutir uma teoria oficial e construir, forçadamente, Ted Grant como o grande herdeiro teórico e político de Trotsky, ao mesmo tempo que incorporava elementos teóricos que pudessem ser palatáveis para essas novas camadas de militantes. Seria preciso, além disso, construir uma narrativa heroica do caminho que levou à construção da ICR, desde os primórdios da juventude de Ted Grant até a fundação da internacional autoproclamada.

Para jovens ou militantes sem experiência e confusos, que achavam que socialismo era o modelo escandinavo ou que os stalinistas de YouTube são grandes marxistas, certamente seria fácil vender a história heroica da construção da ICR ou de um lendário dirigente como Ted Grant. Por certo, a corrente e seu dirigente histórico têm seus méritos e merecem um lugar na história do movimento operário, mas isso não apaga os erros cometidos ao longo de décadas, a começar pelo seguidismo que levou Ted Grant e seu grupo a buscar se aliar aos revisionistas, mesmo diante do combate travado pelos setores revolucionários na década de 1950. Outros setores do trotskismo seguiram, apesar das dificuldades, na defesa do legado de Trotsky. Esses não são elementos menores, afinal, dizem respeito a erros na construção da internacional e a como Ted Grant deixou de lado a aliança com setores revolucionários para seguir abraçado aos revisionistas, cujo principal nome viria a ser Ernest Mandel.

Para a ICR, o problema estava na seção brasileira, que, para o bem ou para o mal, tinha uma história própria, construída no enfrentamento com a ditadura e que havia cumprido importante papel como setor marxista mais coerente nas disputas travadas durante as décadas de 1980 e 1990 dentro do PT. Essa história de coerência na defesa do legado de Trotsky não tinha como ser encaixada na trajetória cheia de desvios, curvas e equívocos traçada por Ted Grant e seu grupo. Pelo contrário, os vacilos e oscilações da corrente internacional, que agora se chama ICR, ao longo de décadas, seriam sempre expostos quando comparados às ações não apenas dos camaradas brasileiros, mas também de outros setores do trotskismo internacional, como os que se insurgiram contra o revisionismo de Michel Pablo no começo da década de 1950. Ted Grant oscilava entre os dois setores e, mesmo tendo críticas pontuais à direção majoritária da 4ª Internacional, optou por seguir aliado a Mandel e aos revisionistas, sendo expulso apenas depois da fundação do SU, na década de 1960.

Como justificar esses e outros erros? Como explicar que as forças produtivas seguem crescendo, mesmo que o imperialismo seja uma época de crise permanente? Como defender que países dominados pelo capital financeiro possam ser imperialistas? Como defender a estratégia de dois Estados na Palestina? Como construir uma posição correta sobre a guerra da Ucrânia, mesmo tendo uma caracterização equivocada do estágio de desenvolvimento dos países envolvidos? Como proclamar partidos revolucionários sem base social concreta? Esses são erros que a OCI seguiria apontando e criticando na política da ICR, congresso após congresso, reunião após reunião, minando a tentativa de contar uma perfeita narrativa heroica por parte da internacional autoproclamada.

Não existe problema em ter cometido erros, nem mesmo em ter atuado em zigue-zague, corrigindo a tática e a política quando a conjuntura o exigiu. Os bolcheviques nem sempre acertaram. Lênin e Trotsky cometeram erros, mas foram capazes de enxergá-los e corrigi-los, entendendo que o central passava pela construção do partido revolucionário. Para a direção da ICR, o central não é corrigir seus erros e se dedicar a construir o partido, mas contar uma narrativa que engrandeça Ted Grant e Alan Woods. Para a ICR, é mais fácil tentar destruir uma seção nacional e fazer com que parte de seus dirigentes se transforme em camaleões políticos que mudam de posição quase que do dia para a noite, do que enfrentar o fato de que precisaria fazer um rigoroso balanço de sua história e não apenas proclamar a perfeição de Ted Grant e destacar os grandes momentos da corrente que levaram à fundação da ICR.

Nesse embate, a OCI certamente sai fortalecida. O grupo de dirigentes e militantes que deixou a organização mostrou sua falta de seriedade e de compromisso com a construção de uma organização revolucionária. Partem para uma aventura de juventude, tendo ideias mirabolantes e se deixando levar por promessas de um futuro que voa mais leve do que uma pluma. Esse futuro reserva para eles caminhos como aqueles seguidos por outras organizações que se deixaram levar pelo otimismo de momentos, sempre impressionadas com a facilidade que certas conjunturas permitiam para algumas de suas atividades, e deixaram de construir partidos que tivessem uma base teórica e política sólida.

Os revolucionários seguem espalhados por muitas organizações ou mesmo atuando de forma isolada, inclusive na fração que lamentavelmente deixou a OCI. Por sua vez, a OCI seguirá sendo um polo que aglutina os revolucionários e, com a paciência de quem entende a dinâmica da luta de classes e sabe diferenciar as facilidades da conjuntura dos percalços da revolução, seguirá construindo um embrião do que poderá vir a ser o partido da revolução.

Michel Goulart da Silva é doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), servidor técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).